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Lula, Genoino, José Dirceu e Palocci, após tanto lutarem sob a luz, renderam-se ao comodismo e ao conforto da caverna
 

Nesse episódio da “reforma” previdenciária,
a mídia tem feito
o papel de papagaio, repetindo à exaustão
os números oficiais

No mito da caverna, de Platão, os habitantes da caverna, acorrentados, estão de costas para sua entrada, com as percepções limitadas às sombras resultantes da incidência da luz nos objetos que são exibidos por manipuladores. Um dia, um dos habitantes que consegue libertar-se e conhecer a realidade externa volta para o interior da caverna com a missão de esclarecer os companheiros, mas é rejeitado. Preferem manter-se na escuridão e o matam. Alusões podem ser feitas ao julgamento e condenação de Sócrates e, por extensão, à tarefa político-pedagógica do conhecimento.

A realidade política brasileira contemporânea pode ser interpretada como um mito da caverna às avessas. No período pós-ditadura militar, o poder político e a elite dominante cristalizaram-se dentro da caverna por meio da manipulação, sobretudo pela instrumentalização ideológica, com o propósito de perpetuação do status quo. O governo, preso às diretrizes sombrias do FMI, passou a praticar a cartilha do neoliberalismo, com a retórica da globalização e a serviço do sistema financeiro internacional. Com a política de juros altos vieram o crescimento das dívidas externa e interna, a recessão, o arrocho salarial, o aumento da miséria e da pobreza, o desemprego e o aprofundamento da desigualdade e da injustiça social.

Do lado de fora, após um longo e doloroso processo de libertação, um segmento da sociedade brasileira, politicamente representado pelo PT, esforçava-se para mostrar a luz aos habitantes da caverna. Pregava o rompimento com a ideologia instaurada, mas esse discurso não ecoava. A intensidade de sua luz amedrontava os olhos da maioria habituada ao mundo das sombras.

Seguiu-se um período de adaptação em que a luz foi ofuscada por um discurso mais ameno, evidenciado na campanha do “Lula lá” e na Carta aos Brasileiros e concretizado na coligação com o PL e no conluio com Sarney. Assim o PT, que havia sido resultado da libertação, retornou à caverna e instalou-se no poder.

Entretanto, em vez de iluminar a caverna, a chama petista ofuscou-se de vez. Lula, Genoino, José Dirceu e Palocci, após tanto lutarem sob a luz, renderam-se ao comodismo e ao conforto da caverna e sua obscuridade que, a despeito de suas limitações e contradições, traz segurança, ainda que racionalizada. Para o BC veio o representante dos banqueiros e, em conseqüência, o continuísmo da política econômica. O discurso passou a ser o mesmo de FHC, recheado com o ataque à aposentadoria do servidor público, a mando do mercado financeiro interessado nos fundos complementares.

Nesse episódio da “reforma” previdenciária, a mídia tem feito o papel de papagaio, repetindo à exaustão os números oficiais, supostamente deficitários, sem qualquer averiguação ou reflexão.

Mas, como têm muito poder de persuasão, as trevas acabam por convencer de que a aposentadoria integral e a paridade são um privilégio, em vez de um benefício conquistado, assim como amanhã vão provar ideologicamente que o FGTS é um privilégio dos trabalhadores da iniciativa privada, uma vez que muitos servidores públicos não o têm, e, depois, vão retirar os direitos ao descanso semanal remunerado, às férias e ao décimo-terceiro salário, com o argumento de que se trata de um privilégio dos trabalhadores assalariados em relação aos profissionais liberais.

No âmbito da universidade pública, a “reforma” previdenciária vai desestimular o ingresso dos jovens pesquisadores mais qualificados, repetindo o mesmo filme da brutal redução de qualidade ocorrida no ensino público fundamental e médio. E a caverna vai comemorar, porque será mais fácil manter a escuridão.

Diminuir a luz para assumir o poder foi a artimanha do PT. Apagá-la de vez é a estratégia para manter-se no poder. Maquiavel está vivo. Alguns poucos líderes petistas, porém, insistem em manter a chama acesa. É a turma de Heloísa Helena, os chamados de radicais porque insistem em iluminar a escuridão. Por absurdo que pareça, esses obstinados defensores da claridade são agora apedrejados, não pelos antigos donos da caverna, adaptados de longa data à ausência de luz, mas pelos novos mandantes, ex-portadores da tocha que se acomodaram muito depressa à cômoda situação patrocinada pelas trevas.

Tudo indica que os novos Sócrates vão ter que tomar cicuta. Com Genoino no papel de Meleto, acusando-os de não acreditarem nos deuses oficiais da caverna e de corromperem os jovens, isto é, aqueles que não se intimidam com a luz porque ainda não estão habituados à escuridão. E assim a esperança em apagar a luz vai vencer o medo da iluminação da caverna, que é a necessária e urgente dialética descendente e libertária.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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