No
mito da caverna, de Platão, os habitantes da caverna, acorrentados,
estão de costas para sua entrada, com as percepções
limitadas às sombras resultantes da incidência da luz
nos objetos que são exibidos por manipuladores. Um dia, um
dos habitantes que consegue libertar-se e conhecer a realidade externa
volta para o interior da caverna com a missão de esclarecer
os companheiros, mas é rejeitado. Preferem manter-se na escuridão
e o matam. Alusões podem ser feitas ao julgamento e condenação
de Sócrates e, por extensão, à tarefa político-pedagógica
do conhecimento.
A realidade
política brasileira contemporânea pode ser interpretada
como um mito da caverna às avessas. No período pós-ditadura
militar, o poder político e a elite dominante cristalizaram-se
dentro da caverna por meio da manipulação, sobretudo
pela instrumentalização ideológica, com o propósito
de perpetuação do status quo. O governo, preso às
diretrizes sombrias do FMI, passou a praticar a cartilha do neoliberalismo,
com a retórica da globalização e a serviço
do sistema financeiro internacional. Com a política de juros
altos vieram o crescimento das dívidas externa e interna,
a recessão, o arrocho salarial, o aumento da miséria
e da pobreza, o desemprego e o aprofundamento da desigualdade e
da injustiça social.
Do
lado de fora, após um longo e doloroso processo de libertação,
um segmento da sociedade brasileira, politicamente representado
pelo PT, esforçava-se para mostrar a luz aos habitantes da
caverna. Pregava o rompimento com a ideologia instaurada, mas esse
discurso não ecoava. A intensidade de sua luz amedrontava
os olhos da maioria habituada ao mundo das sombras.
Seguiu-se
um período de adaptação em que a luz foi ofuscada
por um discurso mais ameno, evidenciado na campanha do “Lula
lá” e na Carta aos Brasileiros e concretizado na coligação
com o PL e no conluio com Sarney. Assim o PT, que havia sido resultado
da libertação, retornou à caverna e instalou-se
no poder.
Entretanto,
em vez de iluminar a caverna, a chama petista ofuscou-se de vez.
Lula, Genoino, José Dirceu e Palocci, após tanto lutarem
sob a luz, renderam-se ao comodismo e ao conforto da caverna e sua
obscuridade que, a despeito de suas limitações e contradições,
traz segurança, ainda que racionalizada. Para o BC veio o
representante dos banqueiros e, em conseqüência, o continuísmo
da política econômica. O discurso passou a ser o mesmo
de FHC, recheado com o ataque à aposentadoria do servidor
público, a mando do mercado financeiro interessado nos fundos
complementares.
Nesse
episódio da “reforma” previdenciária,
a mídia tem feito o papel de papagaio, repetindo à
exaustão os números oficiais, supostamente deficitários,
sem qualquer averiguação ou reflexão.
Mas,
como têm muito poder de persuasão, as trevas acabam
por convencer de que a aposentadoria integral e a paridade são
um privilégio, em vez de um benefício conquistado,
assim como amanhã vão provar ideologicamente que o
FGTS é um privilégio dos trabalhadores da iniciativa
privada, uma vez que muitos servidores públicos não
o têm, e, depois, vão retirar os direitos ao descanso
semanal remunerado, às férias e ao décimo-terceiro
salário, com o argumento de que se trata de um privilégio
dos trabalhadores assalariados em relação aos profissionais
liberais.
No
âmbito da universidade pública, a “reforma”
previdenciária vai desestimular o ingresso dos jovens pesquisadores
mais qualificados, repetindo o mesmo filme da brutal redução
de qualidade ocorrida no ensino público fundamental e médio.
E a caverna vai comemorar, porque será mais fácil
manter a escuridão.
Diminuir
a luz para assumir o poder foi a artimanha do PT. Apagá-la
de vez é a estratégia para manter-se no poder. Maquiavel
está vivo. Alguns poucos líderes petistas, porém,
insistem em manter a chama acesa. É a turma de Heloísa
Helena, os chamados de radicais porque insistem em iluminar a escuridão.
Por absurdo que pareça, esses obstinados defensores da claridade
são agora apedrejados, não pelos antigos donos da
caverna, adaptados de longa data à ausência de luz,
mas pelos novos mandantes, ex-portadores da tocha que se acomodaram
muito depressa à cômoda situação patrocinada
pelas trevas.
Tudo
indica que os novos Sócrates vão ter que tomar cicuta.
Com Genoino no papel de Meleto, acusando-os de não acreditarem
nos deuses oficiais da caverna e de corromperem os jovens, isto
é, aqueles que não se intimidam com a luz porque ainda
não estão habituados à escuridão. E
assim a esperança em apagar a luz vai vencer o medo da iluminação
da caverna, que é a necessária e urgente dialética
descendente e libertária.
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