Um
golpe contra a democracia, a tolerância e a paz entre os povos.
Assim foi classificado, por analistas ouvidos pelo Jornal da USP,
o atentado ocorrido na semana passada contra o Hotel Canal, em Bagdá,
no Iraque, que abrigava a missão da ONU no país. Na
terça-feira, dia 19, um caminhão carregado com 230
quilos de explosivos – provavelmente guiado por um terrorista
suicida – estacionou em frente ao hotel, próximo à
janela do escritório do chefe da missão, o diplomata
brasileiro Sérgio Vieira de Mello, de 55 anos. Ao ser detonados,
os explosivos destruíram boa parte do prédio de três
andares e mataram pelo menos 20 pessoas – entre elas Vieira
de Mello.
Para
o professor Jacques Marcovitch – ex-reitor da USP e docente
do curso de graduação interdisciplinar em Relações
Internacionais –, o atentado mostra que a construção
de um novo mundo, em que prevaleçam os princípios
do multilateralismo, do diálogo e do respeito, é uma
tarefa “dificílima” no mundo moderno. Marcovitch
destaca que, desde a queda de Saddam Hussein, a ONU – através
do trabalho de Vieira de Mello – estava conseguindo viabilizar
um “novo momento” no Iraque, não regido pela
lógica anglo-americana. Essa
complicada construção de um regime tolerante e pluralista
sofreu um revés com o atentado, provavelmente provocado por
agentes do antigo governo. Estes não têm nenhum interesse
numa nova ordem iraquiana, pois, nela, certamente ficariam alijados
do poder, analisa o professor.
Sobre
o papel da ONU – muitas vezes acusada de favorecer o invasor
americano –, Marcovitch lembra que a instituição
desperta um “sentimento difuso” na sociedade global.
Para o professor, a organização não é
um poder supranacional, pronto a impor às nações
a sua visão de mundo e determinar a paz ou a guerra segundo
a sua vontade. Antes, ela é um órgão executor
das medidas aprovadas pelos próprios países membros.
O trabalho da Secretaria-Geral da ONU, continua o professor, é
viabilizar a vontade dos países que a integram. “A
presença de Sérgio Vieira de Mello em Bagdá
não era propriamente um desejo da ONU, mas das nações.”
Nesse sentido, diz, o atentado representa um golpe ainda mais duro,
na medida em que desafia não apenas uma instituição,
mas a comunidade internacional.
Marcovitch
acrescenta que, com o atentado, os cidadãos que lutam pela
democracia e pela paz no mundo devem se sentir ainda mais desafiados
a construir uma ordem fundamentada nos valores da tolerância
e do respeito mútuo.
A respeito
de Vieira de Mello, Marcovitch diz que ele era um “pensador
das relações internacionais”, que refletia continuamente
sobre os problemas mundiais. O professor teve uma demonstração
disso ao assistir a uma palestra do embaixador no Instituto de Altos
Estudos de Genebra, na Suíça, há cerca de três
anos. “Vieira de Mello tinha a legítima cultura brasileira
mas foi educado nos melhores centros da Europa”, diz Marcovitch.
“Essa mistura de culturas deu um excelente resultado.”
O professor
Robson Barbosa, pesquisador sênior do Núcleo de Análise
Interdisciplinar de Políticas e Estratégia (Naippe)
da USP, chama a atenção para duas características
da violência ocorrida no Iraque nas últimas semanas.
A primeira delas se refere à “maleabilidade”
das ações terroristas. “A violência migra
de acordo com as circunstâncias. Os soldados e comboios deixaram
de ser alvo dos terroristas, que passaram a destruir oleodutos e
aquedutos. Depois, quando essas instalações foram
protegidas, o terror atingiu a ONU.” A segunda característica
diz respeito a uma certa complexidade dos últimos ataques,
que revela uma possível reorganização da resistência
iraquiana. “Preparar um caminhão com bombas e escolher
o local certo, por exemplo, já requer uma preparação
maior, não é mais uma ação de um terrorista
isolado”, diz o pesquisador. “O que nos leva à
conclusão de que a violência deve continuar.”
Para
Barbosa, a única arma eficaz contra o terrorismo são
a política e a diplomacia. Com elas, é possível
construir um governo representativo, que dê voz a todos os
segmentos da sociedade e que tenha legitimidade. Essas eram as metas
da ONU no Iraque, que estavam sendo alcançadas graças
ao trabalho de Vieira de Mello. A organização foi
alvo do atentado, explica, por causa da soma de dois fatores. Um
deles está na falta de acesso dos iraquianos às informações.
O povo não tinha conhecimento, por exemplo, de que a ONU
procurou impedir a invasão do seu território e identifica
a organização com os odiados americanos. O outro fator
está nos grupos leais ao antigo regime, que têm interesse
na escalada da violência para retomar o poder. “Somados,
esses dois fatores só podem provocar o que vimos.”
Para
o professor Braz José de Araujo, coordenador do Naippe, a
morte de Vieira de Mello representa a perda de um dos maiores negociadores
brasileiros pela democracia iraquiana. “Figuras como a do
diplomata reafirmam a responsabilidade do Brasil em contribuir na
busca da pacificação em torno da intolerância
e do terrorismo”, disse. “Os atentados terroristas na
capital iraquiana tornam-se freqüentes à medida que
aumenta a vulnerabilidade do Iraque diante de grupos contrários
ao processo de democratização implantado pelos governos
dos Estados Unidos e Inglaterra, em conjunto com a ONU.”
Segundo
Braz Araujo, o significado claro de atentados como o que matou o
embaixador é o de que, “para os terroristas, não
interessa a formação de uma democracia representativa
e igualitária das diferentes etnias”. Segundo ele,
a retomada do crescimento e desenvolvimento do Iraque será
sentida de maneira lenta e gradativa. “O desafio da democracia
ainda é permanente, mesmo em um país que já
tenha o sentimento democrático consolidado, como é
o caso dos Estados Unidos. Em
países como o Iraque, antes de mais nada é preciso
a elaboração de uma Constituição que
inclua todas as etnias para tornar possível uma vida pacífica
naquela região.”
Sérgio
Vieira de Mello era representante da ONU desde 1969 e chefiou a
missão da organização no Timor Leste. Antes
disso, ele liderou interinamente a operação da organização
em Kosovo. Desde maio, foi escolhido por Kofi Annan, secretário-geral
da ONU, para desempenhar o papel de representante especial para
o Iraque durante seu período de reconstrução.
|
A
ONU despedaçada: atentado fere de morte a possibilidade
de Paz |
|