Nesta
quinta-feira, dia 11 de setembro, Paulo Sawaya completaria cem anos.
Em uma vida longa e produtiva, a história da USP e sua história
pessoal se misturam de tal maneira que parece natural que uma voz
familiar se levante para falar de sua presença no mundo –
mesmo não sendo, com certeza, a voz mais indicada para considerar
a especificidade e grandeza de sua contribuição para
a ciência e a generosidade e abrangência da obra que
realizou em meio à comunidade humana e científica
de seu tempo.
Cientista
e educador, Paulo Sawaya lançou as bases do muito que se
fez no âmbito das ciências biológicas no Brasil
no século que se passou, desde os primeiros tempos da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP, a FFCL. Livre-docente
pela recém-fundada Universidade, estabeleceu e assumiu a
cátedra de Fisiologia Geral e Animal, em 1937 – três
anos após a fundação da USP –, e participou
da criação da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciên1cia, a spbc, em 1948, que surgiu por iniciativa dos
três “cavaleiros andantes da ciência”, como
eram chamados Maurício Rocha e Silva, José Reis e
Paulo Sawaya, em reuniões nas salas da ampla casa da alameda
Glette, 463. Essa casa abrigaria os Departamentos de Botânica,
Zoologia, Genética, Geologia, Mineralogia, Química
e Biologia de 1938 a 1956, data em que ocorre a transferência
da faculdade para o campus da Cidade Universitária.
Na
30a edição do Boletim de Zoologia e Biologia Marinha
– número especial em homenagem a Paulo Sawaya, por
ocasião da comemoração do jubileu de seu magistério,
em 1973, quando também se celebraram os 25 anos de fundação
da SBPC –, José Reis inicia o belo texto em que tece
considerações sobre a vida e as realizações
de Paulo Sawaya com a menção ao que foi a sua maior
contribuição à pesquisa e ao ensino da vida
marinha no Brasil: “A seis quilômetros de São
Sebastião e a 500 metros da Serra do Mar, ainda coberta de
mata virgem, ergue-se o Instituto de Biologia Marinha (hoje Cebimar),
em terreno cuja metade, quase, foi doada pelo professor Sawaya”.
Com
a chegada de nossos avós do Líbano, por volta de 1890,
a família Sawaya se estabeleceu em Carmo do Rio Claro, Minas
Gerais, vindo em 1917 para São Paulo, onde papai se forma
perito-contador, médico e logo a seguir passa a professor
de zoologia do Curso Pré-Médico e do Colégio
Universitário, doutorando-se mais tarde nessa disciplina,
pela FFCL.
Odorico
Machado de Souza, seu colega no curso de Medicina — os “irmãos
siameses”, como os chamava o professor de anatomia Alfonso
Bovero, a quem Odorico, que o substituiria como catedrático,
rende comovida homenagem em discurso pronunciado por ocasião
da incorporação do retrato de papai à Galeria
do Museu Histórico da Faculdade de Medicina, em 1983 –,
dá notícia do que foi essa mudança de rumos
da medicina para a biologia para Paulo Sawaya. Com a primeira “missão
estrangeira”, formada pelos notáveis professores que
vieram dar início às atividades na recém-fundada
Universidade de São Paulo, vem o professor Ernst Bresslau,
que, ao assumir a chefia do Departamento de Zoologia, convida papai
para ser seu assistente. Com a morte inesperada de Bresslau, Paulo
Sawaya ficou à frente do departamento até a chegada
do professor Ernst Marcus, afastando-se em seguida para assumir
a cátedra de Fisiologia.
Ao
longo de sua vida acadêmica, a atividade de papai se desenvolve
em três frentes: a docente, a de pesquisa científica
propriamente dita e a administrativa, atuando sempre, em qualquer
uma delas, com o objetivo primordial de formar pessoal especializado
para o ensino e para dar prosseguimento e ampliar o conhecimento
nas suas áreas de investigação – a fisiologia
e a biologia marinha.
Buscando
se aperfeiçoar continuamente, como diz o professor Odorico,
fez diversos estágios e cursos no exterior em institutos
de zoologia e biologia marinha, como a Estação Zoológica
de Nápoles, os laboratórios franceses de Banyuls S/mer,
de Roscoff e de Luc S/mer, os ingleses de Plymouth e de Bangor,
os norte-americanos de Woodhole, em Massachusetts, de Los Angeles
e de Beaufort, em Carolina do Norte.
Foi
também convidado a ministrar cursos em outros países,
tendo dado o curso sobre Fisiologia Comparativa na Universidade
de Hamburgo e sobre Fisiologia dos Animais Marinhos, em Seattle,
na Universidade de Washington. Pela mesma razão, não
foge “às responsabilidades administrativas, tendo sido,
além de chefe do Departamento de Fisiologia Geral e Animal,
diretor da extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP, diretor do Instituto de Biociências, vice-diretor
da Faculdade de Ciências Econômicas e diretor da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro”. Representa
muitas vezes a USP em inúmeros eventos científicos
nacionais e internacionais, como as Comemorações Centenárias
da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, o 18o Congresso
Internacional de Fisiologia de Oxford, as Reuniões de Especialistas
em Biologia Marinha, em Concepción, no Chile, São
Paulo e Viña del Mar, o Simpósio sobre Perspectivas
em Biologia Marinha, em La Jolla, Califórnia, e o 15o Congresso
Internacional de Zoologia, em Londres, em que foi eleito vice-presidente
do congresso e membro permanente de todos os congressos de zoologia.
Foi
membro de muitas sociedades científicas – entre elas
a Academia Brasileira de Ciências, a Academia Paulista de
Ciências, a Zoological Society of London e a American Society
for the Advancement of Science –, tendo recebido vários
títulos honoríficos, entre eles as Palmes Académiques
e o de Officer of the Order of the British Empire, este, em especial,
pelo seu empenho em promover e manter intercâmbio científico
com esse país.
Tanto
Odorico Machado de Souza quanto José Reis falam das qualidades
de Paulo Sawaya como professor, destacando vários aspectos
da sua atuação em todas essas frentes. Mas o que uma
filha, além do mais não-cientista, poderia dizer?
Em primeiro lugar, a extensa enumeração de cargos
e títulos do parágrafo anterior deixaria papai absolutamente
constrangido. Fiz
essa relação apenas para dar uma noção
da amplitude e significado da sua atuação no meio
universitário. Mas certamente não é ela que
pode expressar o entusiasmo do pai que assisti no seu trabalho diário
de cientista.
Papai
era apaixonado pela USP. Basta dizer que nós sempre moramos
nas suas proximidades. Quando meus pais tiveram a opção,
em 1938, de se mudar da linda casinha de vila, na Brigadeiro Luís
Antônio, para uma casa mais espaçosa na rua Groenlândia,
recém-aberta àquelas alturas, ou para uma menor mas
próxima da USP, na Conselheiro Nébias, ele não
hesitou em ir para os Campos Elíseos. Mais tarde, quando
a Biologia vai para o campus novo, na Cidade Universitária,
no mesmo ano nós nos mudamos para a Estrada das Boiadas,
no Alto de Pinheiros.
O lindo
perfil da Praia do Segredo, em São Sebastião, fez
parte de nossa infância. Nós vimos tudo aquilo ser
construído, com muito esforço de toda a família,
mas com a maior alegria e entusiasmo. Enfim, a USP e o Laboratório
de Biologia Marinha, hoje Cebimar, foram sempre os maiores interesses
da vida de papai. Vivíamos impregnados dessa coisa viva,
vivíssima, lá em casa: livros, conversas, personalidades
significativas na área, as viagens longas e repetidas a São
Sebastião, que foi nosso paraíso particular, onde
nos sentíamos pesquisadores e curiosos de todas as coisas
da natureza, particularmente de seus animais marinhos. Era um ambiente
de pesquisa, ensino, conhecimento e vida, cordial e interessantíssimo.
Aliando
essa visão familiar aos depoimentos do professor Odorico
Machado de Souza e do professor José Reis, pude ir completando
essa visão de meu pai, que vem se formando nos últimos
tempos. Começa a emergir a figura de um homem de paz e ação,
lúcido e apaixonado, cujas maiores ambições
consistiam na ampliação do conhecimento da natureza,
na criação e consolidação dos instrumentos
de difusão desses conhecimentos e na instauração
de um ambiente de produtividade e concórdia onde quer que
estivesse. A figura de um professor que concebia a relação
entre mestre e aluno diferentemente da relação professor-aluno.
Como tão bem disse Pedro Nava, em definição
que papai citou no seu discurso-resposta ao de Odorico, essa relação
só é possível se se realiza sobre uma larga
base afetiva – e ele a teve no professor Bovero – e
que não termina nunca, como um diálogo rico e produtivo
que se prolonga no tempo.
Elisabeth
Maria Sawaya Kaphan é formada em Letras pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e filha
do professor Paulo Sawaya, falecido em 1995
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