Recentes
negociações na Organização Mundial do
Comércio (OMC) sugerem que a educação pode,
em breve, ser tratada como um serviço. Alguns países,
como os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia,
já apresentaram suas propostas para que os mercados nacionais
de ensino – em especial de nível superior – sejam
abertos para os investimentos estrangeiros.
A questão
já vem sendo debatida desde 2000, quando os americanos lançaram
a idéia. Mas recentemente a discussão tem se acirrado
e mobilizado um número cada vez maior de educadores e representantes
do governo. Na USP, o tema já foi pauta do 4o Seminário
de Cultura e Extensão, que aconteceu nos dias 20 e 21 de
agosto, e agora em setembro volta à baila em um programa
da TV USP – a ser apresentado no dia 18 –, com a participação
de Nina Ranieri, professora da Faculdade de Direito da USP e secretária-geral
da Universidade. “Não existe uma proposta única
da OMC para a educação e sim propostas de diversos
países”, explica ela. Dentro
da OMC, que é um fórum de negociação
de tratados internacionais, os acordos são feitos com base
na troca, ou seja, um país que liberalizasse o seu mercado
educacional teria, em troca, a abertura de outros mercados para
os seus produtos.
Até
agora, talvez pela complexidade da questão, poucos foram
os Estados que fizeram ofertas na área da educação
dentro da OMC. O Brasil ainda não manifestou nenhuma posição
oficial e o tema parece longe de um consenso. Um eventual tratado
só deve ser assinado em 2005, quando acontece a Rodada de
Cancun, mas já há quem acredite que o prazo possa
ser adiado para 2007. “Nenhuma posição foi fechada
e tudo ainda pode ser negociado”, diz Nina.
Para
Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi, professor da Faculdade
de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da
USP, é inevitável que um acordo de abertura se estabeleça.
“Em alguma medida e em algum momento essa proposta será
implementada”, diz. O tempo, no entanto, seria um importante
fator a ser negociado. “No momento não há condições
para a liberalização. Deve-se tentar prorrogar o prazo
o quanto for possível. Além disso, se o acordo for
aprovado, o Brasil pode ainda pedir um tratamento especial até
que esteja preparado.”
Segundo
Nina Ranieri, não existem hoje, na Constituição,
impedimentos para que instituições internacionais
se estabeleçam no País. “Para a educação
não existe reserva de mercado, como no setor das telecomunicações,
nem monopólio estatal. Desde que autorizados pelo governo,
seguindo a Lei de Diretrizes e Bases e atendendo a padrões
de qualidade, não existem impedimentos para a atuação
de grupos estrangeiros”, disse.
Capital
estrangeiro – O que deve ser alterado, caso a educação
passe a ser negociada como mais um item do Acordo Geral sobre Comércio
de Serviços (Gats), é o tratamento que se dá
ao capital estrangeiro investido na área. Com a liberalização
desse mercado, algumas regras seriam mudadas e as empresas poderiam
remeter seus lucros ao exterior sem taxações.
Nina
lembra que os tratados internacionais têm força de
lei e poderiam alterar alguns aspectos da legislação
vigente. A responsabilidade pelo setor educacional no País,
no entanto, deve continuar a cargo do Ministério da Educação
(MEC), que fiscalizaria essas empresas estrangeiras assim como já
faz com as universidades nacionais, sejam elas públicas ou
particulares.
Se observado o número crescente de instituições
privadas de ensino, em todos os níveis, é possível
atestar que, no Brasil, a educação já é
oferecida e encarada como um serviço. Segundo
a secretária-geral da USP, os estrangeiros não entrariam
em áreas como a educação média e fundamental.
O seu maior interesse seriam os cursos de línguas, os profissionalizantes
e os de nível superior, em especial a pós-graduação
lato sensu. Ainda assim, a entrada maciça dessas empresas
poderia representar um grande risco na medida em que ameaçassem
a cultura nacional.
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Nina:
sem entraves legais |
Ao
citar o convênio da Escola Politécnica da USP com uma
universidade francesa, Nina lembra que já existem experiências
bem-sucedidas de convênios entre institutos brasileiros e
estrangeiros, mas ressalta que o Estado tem o dever de garantir
a proteção da cultura e da identidade nacional.
Grisi
aponta algumas possíveis vantagens, como a atualização
tecnológica e o aumento de investimentos no setor, mas também
vê perigos em uma liberalização sem critérios.
“Pode haver uma desnacionalização do ponto de
vista da formação, uma incorporação
de valores que não nos pertencem. Um outro ponto é
que, por trás da importação da mentalidade,
vem também uma ligação econômica. Um
médico que foi formado aprendendo a operar com aparelhos
e equipamentos americanos, por exemplo, vai continuar fazendo isso
ao longo de sua vida profissional.” Um outro risco apontado
por ele é a perda dos melhores docentes e pesquisadores das
universidades públicas para as instituições
estrangeiras, que, assim como já acontece com as universidades
privadas nacionais, pagariam melhores salários.
Eterna
vigilância – Preocupado em evitar que universidades
caça-níqueis se estabeleçam no seu território,
o Japão se manifestou favorável à liberalização
mas impôs condições de qualidade e restrições
relacionadas ao ensino e à pesquisa.
Para
Grisi e Nina, a principal função do governo brasileiro,
caso ocorra a liberalização, deve ser justamente a
de assegurar a qualidade do ensino que será oferecido. “A
educação é um dever do Estado e, mesmo quando
ele não a oferece gratuitamente, tem a obrigação
de zelar por ela”, diz a professora. “A minha grande
preocupação é se o Ministério da Educação
vai dar conta de fiscalizar devidamente e garantir a qualidade dessas
instituições.” Na sua opinião, é
natural que os currículos dos cursos venham impregnados da
cultura das instituições que os oferecem. Por isso,
o que o MEC deve fazer é estabelecer padrões mínimos
de conteúdo e duração.
De
acordo com Grisi, o Estado brasileiro, deficitário e fragilizado,
não tem condições de fiscalizar essas instituições
e, antes que haja uma liberalização, é necessário
repensar “todo o aparato institucional que planeja e regulamenta
a educação”. Uma outra questão a ser
revista, segundo o professor, é a qualidade do ensino superior
que já existe no País. “Se pretendemos manter
a educação superior nas mãos do Estado, devemos
dar eficiência a esse ensino. Perdeu-se muito em qualidade
nos últimos anos. Temos que definir objetivos mais claros
e fazer com que as universidades públicas alcancem níveis
de excelência.”
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Grisi:
cuidados com a liberalização |
Nina
lembrou que, mesmo sem a entrada de capitais estrangeiros, o ensino
já está ameaçado. “A discussão
sobre a internacionalização é importante, mas
acho que ela está desfocando o tema central, que é
a qualidade da nossa educação. O grande problema é
que o ensino superior não foi valorizado como carreira de
Estado. Com a reforma da Previdência, os problemas tendem
a se agravar e os regimes de trabalho que prevêem dedicação
integral à universidade estão ameaçados. Sem
as garantias de uma aposentadoria, o professor está impossibilitado
de se dedicar inteiramente à sua carreira. Isso sim é
que é mercantilização da educação.”
Conforme
aponta a professora, existe o risco de uma “descontinuidade
da qualidade acadêmica” e, a longo prazo, o próprio
desenvolvimento científico e tecnológico do País
poderia ser comprometido.
A
questão da educação na OMC será tema
do programa “Olhar da USP”, a ser transmitido pela TV
USP no dia 18 de setembro, às 12 horas, 16h30 e 21 horas,
e no dia 19, à 1h30. A TV USP pode ser sintonizada no canal
15 da NET e no canal 71 da TVA.
Breve
história da educação na OMC
Janeiro
de 2000 – Os Estados Unidos solicitam o comprometimento
dos outros membros da OMC com a política de liberalização
dos serviços de educação. Os americanos
apresentam uma relação dos obstáculos
a serem superados.
Junho
de 2001
– A Nova Zelândia propõe a inclusão
do ensino superior na conta de serviços. Para isso
alega que a liberalização não trará
conseqüências negativas aos padrões da educação
pública, ao contrário, seria compatível
com as necessidades dos países.
2002
– O Japão, em uma atitude conciliatória,
afirma aceitar a liberalização do setor, mas
estabelece condições para que a abertura leve
a uma melhoria da qualidade de ensino.
2005
– Possível data dos acordos sobre liberalização
da educação. Mas já existem previsões
de que isso só aconteça em 2007.
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