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Esta semana, exatamente na quinta-feira, o mundo relembra um aniversário trágico. Sem festas, sem alardes, em um interminável minuto de silêncio, os calendários vão estar mostrando a data: 11 de setembro. Ou, como é bem comum, 11/9. Há dois anos, esse dia se envolveu em fumaça, chamas e dor. É muito provável que não haja no mundo quem não saiba o que esses três números representam, mas nunca é demais lembrar. Foi nesse dia, em uma manhã particularmente ensolarada e quente de uma terça-feira, que dois aviões levados por terroristas ensandecidos (qual não é?) se espatifaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, no sul da ilha de Manhattan. Milhares de mortos. Perplexidade. E o mundo envolto em uma densa fumaça negra que, dois anos depois, parece se negar a dissipar. Foi o dia em que a Terra parou seu lento movimento adiante e, desde então, entrou em turbilhão, uma elipse armamentista que, aos solavancos, aponta para várias direções. E nenhuma parece ser a mais acertada.

Depois do 11 de setembro, a data que virou substantivo, a fúria e o desejo de vingança turvaram olhos e sentimentos. Havia algo a ser feito, e seria: retaliar aqueles que provocaram a morte de milhares de pessoas inocentes, em um atentado que, nos Estados Unidos, só encontrava precedentes no tristemente célebre “dia da infâmia”, aquele distante domingo de 1941 que marcou o ataque japonês à base naval de Pearl Harbor, no Havaí. Mas havia uma guerra em curso, então. Os Estados Unidos não estavam nela, se disse à época. Os Estados Unidos sempre estão em guerra, sabe-se hoje. Na surdina ou não. E a América avançou para outro conflito, mais um confronto, depois que o WTC virou pó e escombros. “I’m a loving guy but I have a job to do”, disse o presidente George W. Bush, um pouco mais perplexo do que de costume. Traduzindo, para se tentar entender a complexidade da frase: “Sou um camarada amoroso, mas tenho um trabalho a fazer”. E fez.

Bush agiu assim como que em resposta não só às vítimas, aquelas vozes silenciadas e soterradas pela insanidade dos homens de Bin Laden. Pessoas comuns cujas últimas palavras, reveladas recentemente, só dão a dimensão do horror, o horror. “Parece que o prédio está caindo... Está caindo em cima de mim...”, resfolegou uma mulher ao celular, diante do inevitável de estar no 83o andar de uma das torres. E o que dizer do diálogo, também por celular, entre uma vítima e um bombeiro?


– O que eu faço agora?
– Fique calmo que já estamos subindo...
– Ok, vou me manter tranqüilo.

Minutos mais tarde, ambos eram memória. Mas o presidente americano, como se afirmou há pouco, não invadiu o Afeganistão e o Iraque, apertando todos os detonadores da história, só em homenagem aos mortos. Seus mortos. Ele o fez também como uma resposta não aos que foram, mas aos que ficaram e perpetuaram a dor. Gente igualmente comum que foi pega em um redemoinho. Gente que foi flagrada, naquele mesmo 11 de setembro e nos dias posteriores, pela fotógrafa brasileira Chris Day. Nessas coincidências que unem catástrofe social e “sorte” profissional, Chris estava na Grande Maçã justamente naquele dia, cuidando de si. E foi engolfada pelo vendaval. Assim como o foram dois cineastas franceses, irmãos, que faziam um prosaico documentário sobre a vida de um bombeiro iniciante e, de repente, estavam dentro dos prédios em chamas. Quem não se recorda da cena, mostrada alta madrugada de 11 para 12 de setembro e dias sem fim mais tarde, do primeiro avião se chocando contra uma das torres, dando início ao inferno? Pois foi um desses cineastas quem a filmou. Sorte? Profissionalmente, sim. E sangue-frio também.

A unir o trabalho dos franceses ao de Chris Day, que virou belo e torturante livro, recém-lançado pela DBA, o mesmo título: 11/9. Impossível fugir dele. Impossível esquecer. E, máquina em punho, Chris fez questão de registrar tudo o que podia. Fosse por razões práticas – o acesso à área dos atentados foi rapidamente fechado para curiosos de todas as estirpes –, fosse por opção mesmo, Chris Day não apresenta fotos das torres em chamas ou de escombros em seu livro. Não. O que se vê é um outro lado, o lado dos observadores impotentes, dos parentes desesperados, da cidade marcada. Chris Day flagrou os que permaneceram vivos, mas com o estigma da morte na alma.

Mãos na cabeça, olhares atônitos, bocas semi-abertas (ou semi-cerradas?), o medo e o susto estampados em cada face. Essa é a tradução fiel que Chris Day faz daquele dia. O gigante havia sido ferido de morte e não sabia como reagir. Logo depois descobriria a fórmula, mas naquele momento o primeiro impulso foi chorar. E recolher fotos, muitas fotos, e espalhá-las pela cidade entorpecida pela fumaça, em busca de um sinal, de uma notícia qualquer, que desse conta que aquele rosto registrado em papel ainda existia.

“Nome: Karen C. Renda
Idade: 52 anos
Onde trabalhava: World Trade I
94o andar
Última vez que foi vista: às 7h de terça-feira
Por favor, qualquer informação, ligar para (718) 698-5666”

Anúncios como este, feitos às pressas, quase toscos, muitos escritos em uma caligrafia trêmula, brotaram às centenas – milhares – pelas paredes de prédios, cabines telefônicas, painéis, qualquer área que pudesse servir de suporte a um apelo desesperado. Não se sabe se o (718) 698-5666 recebeu alguma ligação de boas novas. É quase certo que não. Assim como tantos outros telefones que teimaram em permanecer mudos. Mas que mantiveram seu registro – e seu apelo – congelado pelas lentes de Chris Day.

Assim como permanecem em estado de animação suspensa as plantações de velas acesas pelas ruas, os pedidos de oração pelos mortos desconhecidos ou não, as braçadas de flores. E as súplicas pela paz, que também surgiram, apesar de tudo, escritas a tinta ou a giz nas calçadas da cidade-ícone dos Estados Unidos. Estas, no entanto, não surtiram o efeito esperado.

Porque, em uma versão pós-moderna da Lei de Talião, a América de Bush quis fazer valer o “olho por olho, dente por dente”. E tornou o planeta um lugar complicado para se viver, como atestaram especialistas muito recentemente, aqui mesmo, no Jornal da USP. Primeiro os afegãos, livres, sim, do fundamentalismo medieval do Talebã, mas envolvidos em uma guerrilha nas montanhas que não dá paz aos marines. Depois, o Iraque. A mesma lógica que derrubou o mulá Omar destronou Saddam Hussein. Vitória, afinal? Longe disso. E os atentados, os carros-bomba, as escaramuças, os soldados americanos e ingleses mortos em número maior no pós-guerra do que durante o conflito, a lembrança do diplomata Sérgio Vieira de Mello, as vítimas inocentes – não importa a latitude, elas sempre existem – provam dolorosamente isso. Os principais artífices de todo o terror, os inimigos públicos número um do mundo, no dizer americano, destes, nem sinal. Bin Laden e Saddam podem estar mortos. Podem estar preparando mais ataques. Ou se tornado monges trapistas. O que se sabe é que se volatizaram, viraram pó. Como as duas torres do World Trade Center. O mesmo pó que até hoje faz arder os olhos dos que ficaram, registrados pelas lentes de Chris Day.

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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