De
todos os momentos de crise que entrecortaram a história da
cultura brasileira e, em especial, a história do cinema,
um deles foi um tanto quanto estarrecedor. Começou com a
ascensão de Fernando Collor de Mello à presidência
da República, em 1990, e se estendeu até setembro
de 1992. Valendo-se
de diversas medidas provisórias, Collor autorizou que fossem
extintas leis de incentivos culturais e órgãos culturais
da União, dentre eles a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme),
o Conselho Nacional de Cinema (Concine) e a Fundação
do Cinema Brasileiro (FCB). Com isso, por dois anos o Brasil teve
a sua produção cinematográfica praticamente
estagnada.
A retomada
dessa produção ocorreu por volta de 1995, quando começaram
a operar efetivamente dois mecanismos de incentivo à cultura:
a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual. Daí a denominação
“cinema da retomada”, criada por alguns estudiosos em
referência ao cinema produzido nos oito anos de governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Nesse período, foram
produzidos cerca de 200 longas e 750 curtas – 70 somente em
2002, um número bastante significativo, mas que é
quase quatro vezes menor se comparado ao total de películas
lançadas na década de 70 (794 longas) e na década
de 80 (946 longas). Neste ano, a produtora Filme B contabilizou,
até maio, sete novos filmes em cartaz, 27 filmes já
rodados, além de 48 em fase de montagem e nove em preparação
de filmagem.
Não
surpreende que essa expressão – “cinema da retomada”
– cause polêmicas, pois ela sugere que o governo passado
tenha alavancado o cinema nacional dando-lhe os subsídios
necessários, o que, de fato, é bastante discutível.
Para o crítico, historiador e professor da Escola de Comunicações
de Artes (ECA) da USP Jean-Claude Bernardet, é justo falar
em “cinema da retomada” apenas pelo viés quantitativo,
já que a política adotada pelo governo na época
não remete a nenhuma “valoração qualitativa”.
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Nunes:
Embrafilme foi fundamental |
Já
para o crítico José Carlos Avellar, ex-diretor da
Embrafilme e ex-presidente da Riofilme, “a organização
política no Brasil não despertou ainda para a importância
da atividade cultural como um todo”. Ele concorda que tenha
havido uma retomada da produção, fruto de uma cultura
cinematográfica que já está enraizada no País.
No entanto, alerta para o fato de que “o governo não
conseguiu ainda estabelecer um plano geral que discipline a atividade”.
Avellar afirma que, em meio a um mercado desorganizado, os filmes
não têm como esgotar seu público, apesar de
terem conseguido “resultados excelentes”. “A
chamada retomada carece um pouco de revisão crítica
do termo. O que ocorreu em 1995 foi a dinamização
de um mecanismo de captação que é baseado na
renúncia fiscal. Esse mecanismo foi adotado como política
e não houve sequer um planejamento estratégico do
setor”, questiona o atual chefe de gabinete da Secretaria
do Audiovisual do Ministério da Cultura, Leopoldo Nunes,
cineasta formado pela ECA. Ele acredita que o que ocorreu foi a
criação de “uma elite cultural com o dinheiro
público”, enquanto “a grande maioria dos produtores
culturais foi excluída”. “Um país onde
Nelson Pereira dos Santos não produz há mais de dez
anos tem alguma coisa errada.”
Embrafilme
e Concine – Ainda que sofra inúmeras críticas,
a Embrafilme, como empresa produtora e distribuidora, cumpriu seu
papel e chegou a ser responsável por 32% do mercado. Ao longo
de 15 anos, ela investiu cerca de US$ 10 milhões por ano
e criou mecanismos para estimular a produção e sustentar
a distribuição. “A Embrafilme foi fundamental
porque era uma empresa de fomento, distribuição e
tinha o seu braço regulador, o Concine. Foi o momento de
maior afirmação do cinema brasileiro”, afirma
Nunes.
Mas,
ainda que a produção tenha sido a principal preocupação
dos governos até então, Bernardet alerta para o problema
que o País enfrenta em relação às distribuidoras
de filmes. “Enquanto se visar exclusivamente à produção,
não haverá embasamento industrial. Acredito que a
alteração da estrutura de distribuição
e exibição dos filmes brasileiros mudará a
produção. A mudança estrutural na produção
virá em decorrência de uma alteração
do mercado, não apenas em termos quantitativos, mas em relação
à temática e estilo.”
Para
o professor, o “cinema da retomada” voltou-se exclusivamente
para uma elite intelectual por causa da estrutura da distribuição
dos filmes brasileiros, que acabam circulando apenas nesses circuitos.
Leopoldo Nunes concorda com ele: “Hoje o exibidor é
completamente refém do distribuidor estrangeiro”, ressalta.
“O distribuidor preza o que é mais lucrativo para ele,
é a lei do cão. É preciso criar mecanismos
legais para fazer valer a necessidade da expressão cinematográfica
brasileira. Se isso não for feito, continuaremos marginais
no nosso próprio mercado.”
Para
tanto, Nunes alega que serão fixadas cotas de tela maiores
no próximo ano e, no que se refere à exibição,
será ampliado o número de salas no País –
hoje em torno de 1.400. Serão estipulados preços de
ingressos acessíveis, para que haja uma popularização
do cinema. Ele ressalta que as empresas que atualmente exploram
o mercado de salas são financiadas com capital subsidiado
pela indústria norte-americana e “nenhum exibidor brasileiro
pode competir com esse dinheiro”. Nunes anuncia a nova medida
a ser tomada pela Petrobras, um dos grandes fomentadores culturais
do País: a partir do próximo mês ela dirigirá
seus investimentos para o País todo e não apenas para
projetos do eixo Rio-São Paulo.
Há
outro aspecto em que Avellar e Nunes concordam: o cinema não
necessita apenas de fomento, mas sim da criação de
um instrumento estatal fiscalizador e regulador do mercado cinematográfico.
Nesse sentido, a Agência Nacional de Cinema (Ancine), criada
ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, veio
preencher essa lacuna. “A criação da Ancine
foi uma boa medida para conseguir a organização de
dados no mercado. É uma agência ativa que irá
completar os setores de produção, distribuição
e exibição”, diz Avellar. Para Nunes, o mais
importante é a limitação da entrada no mercado
da produção estrangeira, principalmente norte-americana,
que concorre de forma desleal com a produção brasileira.
“O governo Lula tem clareza de que a indústria do audiovisual,
além de ser fundamental para a soberania do País e
para a promoção da cultura brasileira, é um
setor com grande potencial para o desenvolvimento econômico
e social.”
Há
quem acredite que a política cultural do PT caminhe na direção
de um centralismo estatal, mas Nunes discorda totalmente dessa afirmação.
“Qualquer crítica nesse sentido é preconceituosa
e simplista. As pessoas que criticam o centralismo democrático
se negam a reconhecer que nós estamos promovendo debates
e indo às bases para constatar isso.”
Para
Avellar, o centralismo estatal não é um problema e
não se deveria estranhar a participação do
Estado no setor cultural. Importante é discutir de que forma
essa participação acontecerá. “Não
existe atividade cinematográfica sem a ação
de uma política cultural do Estado.” Ele cita o exemplo
dos Estados Unidos: “Ainda que os produtores sejam independentes,
o Estado norte-americano estabelece leis de proteção
de seu mercado para evitar a invasão de filmes estrangeiros.
As relações do Estado com o cinema não se restringem
à produção e à exibição”.
Livro
O
cineasta, inventor do real
Em
produção crescente no Brasil, o documentário
é apenas um discurso sobre a realidade –
e não um retrato dela –, peca por abordar
exageradamente a temática popular e não
explora novas formas narrativas e dramatúrgicas,
analisa o professor Jean-Claude Bernardet
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O
povo nas telas é uma “interpretação”
do cineasta, diz Bernardet (abaixo) |
Ainda
que, na última década, tenham tido grande inserção
no mercado cinematográfico brasileiro, os filmes documentários
ainda permanecem um tanto quanto desconhecidos, já
que todas as atenções do público, de
uma forma geral, estão voltadas para os lançamentos
de longas-metragens, principalmente para aqueles que vêm
acompanhados de uma intensa campanha de marketing publicitário.
Pode-se dizer, no entanto, que, mesmo à margem da preferência
desse público, a produção de documentários
tem crescido muito nos últimos anos e se coloca como
um amplo território ainda a ser explorado por críticos
e estudiosos.
Não
por acaso, é justamente neste momento em que a produção
de documentários emerge no circuito exibidor e se impõe
aos olhos do público que é lançada a
edição revista e ampliada do livro Cineastas
e imagens do povo, do crítico e professor da Escola
de Comunicações e Artes (ECA) da USP Jean-Claude
Bernardet, pela Companhia das Letras.
A
obra do professor tem como ponto de partida uma filmografia
que reúne, num primeiro momento, 20 filmes que compõem
o cinema documentário de curta-metragem feito no Brasil
entre 1960 e 1980 e que se enquadram num gênero cinematográfico
que Bernardet denominou “modelo sociológico”.
Mais especificamente aqueles que o autor considera “momentos-chave”
das transformações desse período. Reunidos
em apêndices encontram-se outros oito filmes contemporâneos
que também pertencem a tal gênero. São
eles: Cabra marcado para morrer, filme de Eduardo Coutinho
lançado às vésperas do término
da primeira edição do livro – publicada
em 1985 –, por isso não analisado na primeira
parte mas considerado pelo autor um “divisor de águas”;
Os anos JK, de Silvio Tender; Brasília segundo Feldman,
de Vladimir Carvalho; Braços cruzados, máquinas
paradas, de Sérgio Toledo Segall e Roberto Gervitz;
O homem que virou suco, de João Batista de Andrade;
Chapeleiros, de Adrian Cooper; e os curtas Casa de cachorro,
de Thiago Villas-Boas, e À margem da imagem, de Eduardo
Mocarzel. Para uma próxima edição Bernardet
promete trazer a análise de O prisioneiro da grade
de ferro, de Paulo Sacramento.
Temática
popular – A crise política que se configurou
no início dos anos 60 construiu um cenário de
batalhas ideológicas e sociais propício para
manifestações. O “modelo sociológico”
a que Bernardet se refere é fruto dessa crise, que
se refletia também no cinema. Até o final dos
anos 70 a produção de documentários foi
intensa, mas a maior parte deles era institucional e trazia
apenas o “registro” de aspectos culturais do Brasil.
À margem dessa produção despontaram documentários
engajados, voltados exclusivamente para retratar as mazelas
sociais e, assim, inspirar discussões sobre a condição
do País.
Pelo
simples fato de retratar o factual e não se inserir
no universo da ficção, desde os anos 20 criou-se
o mito de que o documentário seria um reflexo da realidade
que traz às telas. Muitos
críticos insistem em desconstruir essa idéia.
Em Cineastas e imagens do povo, Bernardet procura analisar
cada uma das películas de forma profunda, evidenciando
“a manifestação da relação
que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo”.
Daí se explica o nome do livro, já que o que
vai às telas não é o povo, mas sim as
imagens do povo, “uma interpretação do
povo feita por cineastas”. “Ignorar que o documentário
seja uma elaboração a partir do real é
‘fetichizar’ o documentário, é ter
uma relação falsa com a realidade. O que temos
são discursos e elaborações a respeito
da realidade.” E isso é comprovado pelo crítico,
que percorre minuciosamente cada cena em busca de detalhes
que revelam a interferência do autor em relação
à situação retratada.
Bernardet
demonstra claramente que o cineasta é refém
da linguagem cinematográfica da qual se utiliza e por
isso acaba, muitas vezes, conduzindo o documentário
simplesmente para a comprovação daquilo que
pensa em relação ao tema que está abordando.
“Usamos uma linguagem ao mesmo tempo em que somos usados
por ela. Não é possível fazer dela um
instrumento neutro, vazio de significação, adquirindo
apenas as significações que queremos lhe atribuir.”
Ao
perceber em Viramundo que a gola do paletó do operário
“não-qualificado” aparece no primeiro plano
levantada e, no contraplano, abaixada, ele revela que o operário
atuou em função da filmagem. Não se trata
de uma situação natural. “É preciso
que essa linguagem se quebre, se dissolva, estoure, não
para que o outro venha a emergir, mas para que pelo menos
tenha essa possibilidade.” Para o professor, um bom
exemplo de quebra de linguagem é o filme Casa de cachorro,
produzido por Thiago Villas-Boas, ex-aluno da ECA. “É
um filme convencional quanto à sua metodologia, mas
há uma quebra quando o entrevistador passa para o papel
de entrevistado.”
Décadas se passaram e a predominância da temática
popular no cinema permanece, seja em filmes documentários,
seja em longas-metragens. Bernardet questiona essa preferência
pelos excluídos sociais como objeto de filmagem. “Há
uma espécie de consenso em torno das temáticas
populares e eu me pergunto até que ponto esse consenso
não é conservador. Aparentemente,
poderia se considerar uma atitude voltada para o povo, mas
falar exclusivamente sobre isso é colaborar para um
discurso unânime e isso deixa de lado uma grande área
temática que é o poder.” Ele ressalta
a ausência de documentários que discutam assuntos
como a política neoliberal, o crescimento da taxa de
juros e até mesmo a postura adotada pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI). Nesse
sentido, ele exalta Ilha das flores, de Jorge Furtado, por
utilizar a linguagem cinematográfica para tratar de
um assunto abstrato, que é a questão da mercadoria.
“É um filme absolutamente fundamental porque
Furtado mostra que é possível encontrar formas
dramáticas e narrativas para tratar de assuntos desse
tipo”, diz.
A
entrevista como cacoete – Bernardet dedica um capítulo
de seu livro para discutir o que compõe uma das grandes
categorias de falas criadas a partir da possibilidade de se
captar o som direto: as entrevistas. A posição
do crítico em relação ao seu uso freqüente
fez com que ele travasse uma verdadeira batalha no universo
cinematográfico. Para ele, “perderam-se as justificativas
iniciais” e hoje as entrevistas tornaram-se “o
feijão com arroz do documentário cinematográfico
e televisivo”, o que exclui automaticamente a pesquisa
de “outras possibilidades narrativas e dramatúrgicas”.
Bernardet
é enfático: “A entrevista virou cacoete”.
O professor enfatiza que o predomínio do verbal no
documentário elimina outros elementos expressivos das
pessoas, como a gestualidade, a ação e o ambiente,
que não estão sendo aproveitados pelos cineastas.
“Os atuais documentários brasileiros revelam
uma fraca capacidade de observação.”
Além
de conduzir a fala do entrevistado, a entrevista enfraquece
a interação entre as pessoas filmadas, privilegiando
o contato entre entrevistado e cineasta, critica Bernardet.
“O relacionamento entre as pessoas que existia nos grandes
documentários dos anos 50 e 60 praticamente desapareceu.”
Por isso ele elogia o filme Nelson Freire, que mostra a relação
do pianista com sua amiga argentina Martha Argerich. “O
João Salles conseguiu construir essa relação
entre os dois através da música. É o
tipo da observação que é rara hoje.”
D.
P. S.
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Cineastas
e imagens do povo
Jean-Claude Bernardet
Companhia
das Letras
320 páginas
R$ 38,00
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