Quem
quiser saber como será o Brasil do futuro, da esperança,
terá de ver como são as escolas públicas do
País. A frase, dita em entrevista de página inteira
publicada na semana passada no jornal espanhol El País, é
do ministro da Educação, Cristovam Buarque. Polêmico
em diversos episódios desde que assumiu a pasta, ele precisou
refrear os ânimos depois que incentivou cerca de 400 estudantes
de uma escola de Brasília a promover passeata na Esplanada
dos Ministérios, a fim de reivindicar mais verbas para a
educação no Orçamento de 2004. Sua postura
teria irritado o presidente Lula. Arrependido, Cristovam logo admitiu
que sua atitude foi um erro. No entanto, voltou a tocar na ferida
na entrevista ao El País: “Nunca vai haver um governo
na América Latina que negue que a educação
é o coração da democracia, mas quando fazem
seus orçamentos esquecem isso”. Buarque já declarou
que nasceu para ser ministro da Educação e que espera
se manter no cargo para levar adiante seu “sonho de uma educação
de qualidade para o País”.
Parte
desse sonho pode estar começando a materializar-se. Ou pelo
menos é nisso em que acreditam alguns entusiastas do novo
Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior (Sinaes), que poderá entrar em vigor a partir de
janeiro de 2004 e que extingue o Exame Nacional de Cursos, o tão
criticado Provão, além de modificar outros instrumentos
de avaliação já existentes.
O Sinaes
nasceu a partir de uma proposta estruturada pela Comissão
Especial de Avaliação (CEA), formada em abril deste
ano por 20 pessoas convidadas pelo Ministério da Educação
e da qual se extraiu o documento intitulado “Bases para uma
nova proposta de avaliação e regulação
da educação superior”. Até sua entrada
em vigor, o documento ainda deve ser apreciado pelas Comissões
de Educação da Câmara e do Senado e cumprir
os trâmites para substituir a legislação vigente
sobre o assunto. O ministro Buarque, que recebeu o estudo em 2 de
setembro passado, foi convidado a dar esclarecimentos sobre o novo
sistema à Comissão de Educação do Senado,
mas a data de sua audiência ainda não foi confirmada.
A despeito
de todos os aspectos positivos que vêm sendo ressaltados em
relação à nova sistemática, o senador
José Jorge (PFL-PE), autor do requerimento que convida Buarque
para a audiência no Senado, chegou a dizer à Agência
Senado que “o Provão foi um avanço muito importante
e já estava sedimentado” e que a nova avaliação
será “burocrática”, com um “relatório
de três páginas de que ninguém vai tomar conhecimento”.
Opiniões
à parte, o presidente da CEA, José Dias Sobrinho,
professor aposentado da Unicamp e autor de vários livros
sobre avaliação no ensino (o mais recente é
Avaliação – Políticas educacionais e
reformas da educação superior, publicado pela Editora
Cortez), afirma que o Sinaes “muda toda uma concepção
de avaliação e não só seus instrumentos”.
Para
ele, o novo sistema busca ampliar e tornar mais rigorosas as metodologias
existentes. “Pretende trabalhar mais a questão da formação
do aluno e a função social das instituições,
e valorizar a presença da pesquisa e da extensão em
todas as dimensões do ensino, além de promover a cidadania
e avaliar os impactos que as instituições têm
sobre a sociedade.”
Segundo
Sobrinho, o documento, que está sendo discutido em várias
universidades e associações, “representa os
anseios da sociedade, já que 38 entidades civis foram ouvidas”
para a sua formulação. E as discussões não
param. Um encontro para debater o Sinaes será realizado em
Recife, entre 25 e 28 de setembro. Trata-se do 2o Seminário
de Avaliação Institucional, organizado pela União
Nacional dos Estudantes (UNE) e pelo Fórum de Executivas
e Federações de Cursos. O objetivo do evento é
dar a estudantes e interessados em geral conhecimentos teóricos
sobre diversos sistemas de avaliação, a fim de se
preparar para tomar uma posição sobre o Sinaes. A
programação do evento pode ser conferida na página
eletrônica www.sai.rg3.net. Outro encontro sobre o novo sistema
está previsto para ocorrer na Unicamp, em Campinas, mas ainda
não tem data determinada.
Extinção
do Provão – O Sinaes vem sendo muito bem recebido no
meio estudantil. Para o presidente da UNE, Gustavo Petta, a extinção
do Provão é uma conquista dos alunos. Ele avalia como
positivo o trabalho da CEA, da qual participaram dois representantes
da entidade dos estudantes. “Foram quatro meses de trabalho
e intensas discussões. Esperamos que o novo sistema entre
em vigor a partir de janeiro de 2004.” Ele ressalta que a
sociedade como um todo terá papel fundamental na implantação
e efetivação do Sinaes, ajudando a fiscalizar com
maior rigidez especialmente as instituições particulares.
O Sinaes
dispõe de quatro instrumentos de avaliação
e cinco de informação institucional. Entre os primeiros,
inclui-se a Auto-Avaliação Institucional, que será
feita por uma comissão interna formada por professores, alunos
e outros profissionais da própria instituição,
tendo como base um roteiro a ser elaborado pela Comissão
Nacional de Avaliação da Educação Superior
(Conaes), a ser criada pelo Ministério, com 12 profissionais
de reconhecida experiência na área, nomeados pelo presidente
da República. A cada três anos, a Auto-Avaliação
Institucional será submetida à Avaliação
Institucional Externa, que será realizada por uma comissão
de avaliadores capacitada pela Conaes.
Para
o presidente da UNE, ao integrar as comissões internas, o
estudante deixa de ser objeto e passa a ser sujeito na avaliação.
“Com um enfoque participativo, são levadas em conta
as questões mais específicas e regionais ligadas à
missão de cada instituição. A participação
de integrantes da comunidade fortalece a fiscalização
e evita corrupção, como já aconteceu em algumas
escolas, que chegaram a instalar bibliotecas itinerantes e laboratórios
que não existiam de fato, só para receber a visita
de técnicos do MEC”, diz Petta.
A atual
Avaliação das Condições de Oferta dará
lugar à Avaliação das Condições
de Ensino (ACE), que subsidiará, entre outras coisas, os
processos de reconhecimento de cursos novos. O presidente da UNE
ressalta que uma mudança importante introduzida pela ACE
será a participação da Conaes no processo de
reconhecimento dos cursos, reduzindo os riscos da abertura e funcionamento
de estabelecimentos de ensino que não estejam devidamente
preparados.
Sobre
esse aspecto, o professor Otaviano Helene, ex-presidente do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), aponta que
uma das falhas do sistema atual tem sido justamente a liberalização
desenfreada de cursos ruins. “Na atual situação
brasileira, a Avaliação das Condições
de Oferta é o principal instrumento que temos para verificar
in loco a existência e eficácia do curso, tanto do
ponto de vista de instalações como em relação
ao projeto pedagógico e qualificação do corpo
docente, entre outros itens.”
Com
a extinção do Provão, entrará em cena
o Paidéia (do grego, formação do homem) através
do Processo de Avaliação Integrada do Desenvolvimento
Educacional e da Inovação da Área. Esse instrumento
subsidiará a auto-avaliação e a avaliação
externa. Será constituído de uma prova aplicada por
amostragem aos alunos no meio do curso e outra ao final dele. Os
cursos avaliados serão distribuídos em quatro grandes
áreas: ciências humanas, exatas, tecnológicas
e biológicas e da saúde.
“A
prova por amostragem, sendo realizada no meio e no final do curso,
permitirá perceber a dinâmica do aprendizado, sendo
possível com isso avaliar o conhecimento agregado pelo aluno
no decorrer do curso”, afirma o presidente da UNE. Para Helene,
ao contrário do Provão, que só aufere o desempenho
final do estudante, o Paidéia permitirá, além
de avaliar o conhecimento agregado, o impacto que a instituição
exerce regionalmente e na sociedade como um todo. Além disso,
a postura do avaliado altera o resultado geral da avaliação
e, com o exame sendo aplicado por amostragem, fica mais difícil
ocorrerem boicotes, acrescenta Helene.
Os
cinco instrumentos de informação institucional compreendem
o Censo da Educação Superior, o Cadastro das Instituições
e Cursos, os Sistemas de Registro da Capes e da Secretaria da Educação
Média e Tecnológica do MEC, o Plano de Desenvolvimento
Institucional e o projeto político-pedagógico do curso.
O relatório da Comissão Especial de Avaliação
aponta que outros instrumentos de informação ainda
poderão ser acrescentados.
As
falhas do Provão
Tendência
internacional que se firmou na década de 90, a implantação
da avaliação do ensino foi fomentada no Brasil
por organismos internacionais como Unesco, Banco Mundial e
Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Provão,
um dos instrumentos mais polêmicos gerados por essa
sistemática, tentava ser um meio de diagnosticar deficiências,
a fim de orientar políticas públicas na melhoria
da qualidade do ensino. Depois de seis anos de existência
e com gastos de cerca de R$ 100 milhões, o Provão
avaliou 8.187 cursos e 682.977 alunos e não chegou
a fechar nenhum curso por mau desempenho, segundo dados da
União Nacional dos Estudantes (UNE).
Para
os críticos do Provão, esse instrumento falha
numa série de quesitos e os conceitos divulgados à
população (A, B, C, D e E) não expressam
a real qualidade dos cursos avaliados. Por exemplo, em 2002,
a nota 41,3 em Administração correspondia ao
conceito A, enquanto 48,6 em Odontologia era E. Essa falta
de coerência, para o professor Otaviano Helene, ex-presidente
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(Inep), provoca confusão e desinformação
nas pessoas e nada ajuda na escolha de um bom curso.
Além
disso, são comuns os casos em que as instituições
“maquiam” os resultados com o claro objetivo mercadológico
de conseguir uma boa posição no ranking das
universidades e, assim, atrair mais alunos. Não inscrever
os alunos ruins para o Provão ou redistribuir os alunos
mais fortes são estratégias comuns para disfarçar
o desempenho da instituição, conta Helene.
“Há
casos de universidades que ‘preparam’ os alunos
para o Provão com aulas especiais, com o claro objetivo
de conseguir uma boa posição no ranking”,
diz o professor Nilson Machado, da Faculdade de Educação
da USP. “Entre todas as iniciativas de avaliação,
a menos consistente já criada é o Provão,
pois esse instrumento ignora as diversidades dos projetos
de cada instituição. Não é possível
estabelecer um ranqueamento em função de uma
prova única, que nivela todas as instituições.”
“Nunca
um curso foi de fato fechado por conta do mau desempenho no
Provão. Os estudantes sempre foram os mais penalizados
e iludidos por instituições particulares ruins.
Os resultados do Paideia serão mostrados através
de um dossiê que apontará deficiências
dos cursos e propostas de mudanças”, acrescenta
o presidente da UNE.
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