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A inclusão da educação como um item de serviço no Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (Gatts), da Organização Mundial de Comércio (OMC), tem levado a discussões sobre as conseqüências para o ensino brasileiro. Com a meta de promover o debate e de fornecer subsídios para a análise da questão, em agosto passado a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP realizou o 4o Seminário de Cultura e Extensão, que incluiu a discussão da inclusão social pelo fato de que ambos os temas estão intimamente relacionados, na medida em que a educação é uma das maiores promotoras da inclusão.

Segundo o presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Carlos Vogt, fóruns de discussão como esse são fundamentais para a troca de idéias e propostas, as quais podem contribuir para a criação de documentos que sirvam de base para o governo e os políticos legislarem sobre o tema. Em entrevista ao Jornal da USP, Vogt analisou a questão e defendeu que a educação não pode ser tratada como item de serviço no sentido comercial, como vem sendo discutida pela OMC. E propôs a adoção de uma legislação que permita apenas a abertura de novas escolas e universidades particulares que sejam fundações, evitando a remessa de lucros para acionistas e favorecendo o reinvestimento desses recursos na melhoria dos serviços oferecidos por essas instituições.

Jornal da USP – A educação como item de serviço é um tema que está sendo discutido no contexto do Gatts. Entretanto, a entrada do capital estrangeiro nessa área já é uma realidade no Brasil. Como o senhor analisa essa questão?

Carlos Vogt – A questão de fundo mais importante é que a educação não deveria ser tratada como item de serviço no sentido que essa expressão tem do ponto de vista comercial. E não deveria por uma razão muito simples: o objetivo da educação não pode, não deve ser o lucro comercial. Se não deve ser lucro comercial, tentar tratar a educação como item de serviço é, na verdade, dar à educação essa característica comercial que é extremamente complicada e, até mesmo, perniciosa para os objetivos da educação no País. Mas o fato é que isso tem avançado não apenas por causa da incursão de empresas e fundos de investimentos internacionais interessados em aplicar em educação no Brasil, mas, sobretudo, pela própria estrutura do ensino dentro do País, onde 65% dos nossos jovens em idade universitária estão em escolas privadas, enquanto 35% estão em escolas públicas. Quando consideramos a realidade do Estado de São Paulo, onde há uma enorme demanda educacional gerada por uma população grande e uma melhor distribuição de renda, se comparado com outros Estados, ou seja, quando temos várias condições que atraem empresas para a educação, como as que investem em outros setores de serviços, a equação muda. São Paulo tem quase 85% dos jovens em idade universitária que estão em escolas privadas e menos de 15%, em escolas públicas. Ao lado disso, você tem essa abertura de mercado que está se anunciando, com a participação de fundos de investimentos internacionais interessados em investir em educação no Brasil. Ou seja, esses fundos querem vir, transformar o assunto num bom negócio e, aí, vender lucrativamente o negócio. É business puro. Independentemente da qualidade com que isso seja feito, trata-se de um risco, pois suponhamos que o mercado fique recessivo e que esses negócios não fiquem lucrativos. O que fazer? Descontinuar o processo educacional? Claro que não. Portanto, acredito que o Estado não pode se afastar da sua responsabilidade. Entretanto, ele não pode se afastar, mas não significa que tenha de bancar tudo. Significa que o Estado deveria ter capacidade para implementar uma legislação do ensino como um todo, dando a ele obrigatoriamente uma natureza fundacional, o que significa ter uma legislação que contemple a possibilidade do lucro, mas do lucro institucional apenas, não do lucro para a distribuição de dividendos para acionistas. Pode ter o lucro, mas esse lucro, nesse modelo, é absorvido pela instituição, é reaplicado na própria instituição.

JUSP – É mais ou menos o que existe nos Estados Unidos?

Vogt – Sim. Lá existe um sistema de escolas públicas e de públicas-privadas, porque elas são pagas, mas nenhuma delas tem como objetivo o lucro comercial. Não há divisão de dividendos. Tudo é reaplicado na própria instituição. Se contarmos nos dedos, nos Estados Unidos, dos quase 12 milhões de jovens que estão nas universidades ou nos colleges, se houver 4% dessa população em escolas privadas no sentido estrito é muito. No Brasil, temos o desafio de montar um modelo de gestão do sistema que considere diferentes agentes financiadores, mas que todo esse financiamento seja orientado e dirigido para finalidades puramente institucionais e não comerciais. Acho que isso seria a grande mudança no Brasil. Isso já existe aqui: as PUCs são escolas dessa natureza. Há várias fundações municipais que têm essa mesma estrutura. A questão não é se a instituição é pública ou privada. É que o ensino é público. Quem participa, administra, financia, isso pode variar, mas essa variação não pode comprometer a finalidade maior, que é a qualidade do ensino. O que fazer com as escolas que já estão aí? Legislar para a frente, não temos que bater de frente, porque isso gera instabilidade social. Temos que aprimorar a legislação pensando no futuro.

JUSP – Além da mudança da legislação, a adoção de novos parâmetros também é fundamental?

Vogt – Eu acho que os parâmetros são importantes. As questões curriculares, os aspectos técnicos são fundamentais. Acho que discutir os padrões de ensino é fundamental. Mas discutir só isso não vai resolver. Na verdade, nem a outra coisa sozinha resolve. Ambas, juntas, são necessárias para termos uma grande mudança no cenário da educação no Brasil.

JUSP – Recentemente a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP promoveu a quarta edição do Seminário de Cultura e Extensão, que foi dedicado à discussão da inclusão social e da educação como item de serviço nas negociações do Gatts. Como o senhor vê o papel das iniciativas desse gênero?

Vogt – Acredito que esse tipo de iniciativa tem que ser levada adiante. Temos que chamar os atores todos, da academia, do setor governamental, as organizações patronais, os sindicatos, enfim, toda a sociedade civil precisa participar dessa discussão. Essa é uma questão, mas tem outro assunto, que é mais técnico, mas cuja discussão é fundamental. No Brasil, sempre que falamos em ensino superior, por conta de uma tradição cartorial, um pouco paternalista, o identificamos com as universidades, tanto que a legislação existe para que as instituições comecem como faculdades, passem para centros universitários e, imediatamente, comecem a pleitear o reconhecimento como universidade. Isso vale para o setor privado e para o setor público: todo mundo quer ser universidade, o que é uma bobagem enorme, uma confusão nominalista que acarreta conseqüências graves na distribuição de funções dentro do ensino superior. Na prática, não precisamos ter apenas as instituições universitárias, que obrigatoriamente precisam se dedicar às atividades de ensino, pesquisa e extensão. Podemos ter boas instituições de ensino superior, que formem bons profissionais, conhecedores da economia da sua região, sem que necessariamente sejam universidades. Esdamos inventando isso? Não. O sistema de colleges americanos é exatamente isso. Muitas pessoas gostam de citar os Estados Unidos como se aquilo fosse o reino do privado. Mentira. Não é assim. Ao contrário. O sistema de colleges, que é público, tem uma inserção enorme na economia regional, na vida regional. No Brasil, temos as Faculdades de Tecnologia, as Fatecs, do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, e seus congêneres, os Centros Federais de Educação Tecnológica, os Cefets. Isso é algo que tem que se espalhar, de modo que o ensino superior passe a ser feito a partir desse equilíbrio de objetivos e de funções desenvolvido tanto pelas universidades, com sua dedicação à pesquisa e à formação de pesquisadores, como na formação de pessoal de nível técnico superior, comprometidos com atividades que ajudem a desenvolver sua região. Se fizermos isso, também estaremos dando resposta a outro enorme desafio, que é o de aumentar o número de vagas no ensino superior público brasileiro.

JUSP – Os grupos internacionais têm interesses principalmente nos MBAs (Masters of Business and Administration) e na pós-graduação de uma maneira em geral. Segundo muitos especialistas, corremos o risco de dividir a sociedade entre os que podem pagar e os que não podem pagar por esses cursos, sendo que os do primeiro grupo receberiam uma educação muito direcionada para certas questões, que não leve em consideração nossa especificidade cultural. O senhor acha que corremos mesmo esse risco caso novos parâmetros não sejam adotados?

Vogt – Alguns MBAs se encaixam como exemplos de meras oportunidades de negócios. Essas instituições internacionais, inclusive muitas de respeito, da Europa e dos Estados Unidos, chegam aqui, estabelecem acordos com instituições locais, as quais abrem verdadeiras franquias, passando a oferecer cursos sem, na maioria das vezes, ter as condições mínimas adequadas. Na prática elas vendem o nome da instituição estrangeira, captam recursos com isso, mas estão oferecendo um serviço que não tem qualidade, não tem consistência. Muita gente acaba comprando bijuteria como se fosse jóia e, na verdade, esses cursos acabam não tendo grandes conseqüências para a formação da pessoa ou para o progresso do País. Para evitar isso, acho que uma nova legislação também precisa regulamentar esse tipo de curso.

JUSP – A conclusão dos trabalhos no Gatts está prevista para 2005. O senhor não acha que o Brasil precisa mobilizar a sociedade civil o quanto antes?

Vogt – Eu acho que sim e acredito que essa é uma discussão que vai ferver. Há muitas pessoas com opiniões formadas a esse respeito. Eu, por exemplo, tenho opiniões muito formadas sobre a questão. Não se trata de um discurso estatista. Por isso gosto de tomar como parâmetro os Estados Unidos. O que defendo é que o Estado tem que estar presente, porque ele regula, é o grande agente gestor disso tudo. O que temos que fazer é estimular as grandes instituições para que elas promovam encontros ou fóruns de discussão com a participação de toda a sociedade, a partir dos quais podemos redigir documentos para ser levados para o Congresso, fornecendo subsídios para a formulação das políticas públicas para a questão e favorecendo o diálogo com os deputados, com o Ministério das Relações Exteriores, com o presidente da República, com os governadores, enfim, com os representantes do poder público que estão envolvidos direta ou indiretamente com as negociações do Gatts.

JUSP – A Fapesp pretende apoiar a realização de encontros ou fóruns de discussões sobre o tema?

Vogt – Sim, a Fapesp tem interesse em participar do apoio, do financiamento de encontros dessa natureza, sobretudo os que unam a USP, Unicamp, Unesp e as Fatecs na busca de soluções para a questão.

 

 




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