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Números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre o século 20 divulgados na semana passada indicam que o Brasil continua sendo um país de contrastes: se entre 1901 e 2000 a população passou de 17,4 milhões para 169,6 milhões, o Produto Interno Bruto se multiplicou por cem, o PIB per capita por 12, e a expectativa de vida saltou de 33,4 anos em 1910 para 64,8 anos no final do século, é também verdade que a distribuição de renda se mantém profundamente desigual e injusta, gerando pobreza e exclusão social.

O Brasil teve no século passado uma das mais altas taxas de crescimento do planeta, conforme observa o professor Simão Davi Silber, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, especializado nas áreas de macroeconomia, economia brasileira e economia internacional. Mas esse progresso se manteve apenas até os anos 80. A partir daí, o desempenho é bem mais modesto, porque o modelo econômico se esgotou – era muito voltado para o mercado interno, muito estatizante, regulamentador demais e levou o setor público à falência. Nos últimos 20 anos do século, vários governos tentaram consertar a política econômica, mas com poucos resultados. Não se conseguiu transitar do modelo fechado, comandado pelo Estado, convivendo com uma inflação crescente, para um país estável, com inflação baixa, mais inserido no mundo, em que o governo não é provedor de tudo como foi no passado. O modelo tinha muita empresa estatal, metia-se em tudo e se descuidava da atividade social.

Para Silber, a inflação foi o maior flagelo do século, particularmente depois dos anos 80, e a razão de o País não ter a partir daí bom desempenho é porque perdeu totalmente o controle sobre ela. Com toda a certeza, foi a responsável pela redução do crescimento da economia e pela perda de credibilidade do País. Para conviver com a inflação, volta e meia se mexia nos contratos e se rompia com direitos adquiridos, o que não está totalmente resolvido ainda hoje.

Outro efeito danoso da inflação foi a piora na distribuição de renda. A inflação é sobretudo um imposto sobre os pobres e o seu descontrole fez aumentar a pobreza, principalmente na segunda metade da “década perdida” e na primeira da seguinte.

Quanto à dívida externa, Silber considera-a absolutamente irrelevante, hoje. No passado, ela ajudou no crescimento; depois, com a subida das taxas de juros, atrapalhou. Agora, o grande problema do Brasil não é a dívida externa, mas a interna. São coisas diferentes, a começar pela moeda de pagamento. A dívida externa quita-se em dólar, a interna em reais; a externa vence a longo prazo, até 2024, e com juros relativamente baixos; a interna é curta e cara, vence em 32 meses.

Mas, para quem deve o governo internamente? A seus financiadores: bancos, empresas, indivíduos e aplicadores internacionais que trazem dinheiro e com ele compram títulos do governo, que rendem juros em reais. Do endividamento total do governo, 80% são dívida interna. Traduzindo em reais, a dívida líquida do Brasil é de 900 bilhões, o que corresponde a 57% do PIB nacional. “Quem gasta mais do que ganha faz dívida. O governo brasileiro foi perdulário, gastador, desequilibrado, teve contas ruins e fez dívida grande. Agora, tem que fazer dieta de emagrecimento, cortar despesas”, recomenda o economista, mas tranqüiliza: é remota a possibilidade de a bola de neve voltar. O governo Lula está sendo muito duro e nos próximos anos espera-se uma redução do peso da dívida na economia nacional.

Como medir a qualidade de vida da população? Para quem não é familiarizado com as coisas da economia, Silber explica: existe um método bolado pelo famoso economista Amartya Sen, chamado IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e adotado pela ONU. Esse índice leva em conta três componentes: renda per capita, escolaridade média da população e expectativa de vida da população ao nascer. Num país em que a expectativa de vida é razoável, a renda per capita é mais alta e as pessoas têm acesso à educação e à saúde. Portanto, escolaridade e esperança de vida ao nascer são indicadores da educação e da saúde. No Brasil, o que piorou foi a distribuição de renda, mas melhoraram a educação e a saúde. “O brasileiro – e o relatório do IBGE é claro nisso – está vivendo mais, já beirando os 70 anos em média de vida”, diz Silber, acrescentando que a diferença mais importante é entre Estados do Centro-Sul e do Norte-Nordeste. No Norte-Nordeste, os indicadores são parecidos com os de países africanos. “Se formos ao Piauí ou Maranhão, os indicadores sociais são parecidos com os de Serra Leoa e Burkina Faso. Mesmo assim, o País melhorou, embora pudesse estar bem melhor se tivesse educação de boa qualidade, se não tivesse havido uma inflação maluca até 1994 e se o governo não tivesse errado na política econômica.”

As estatísticas divulgadas pelo IBGE indicam que a inflação no século foi de um quintilhão por cento. Silber considera o cálculo confiável, pois os índices de custo de vida são acompanhados há aproximadamente cem anos. E volta a atacar o grande vilão: começamos a aceitar a inflação e perdemos o controle. A ela se creditam a moratória declarada unilateralmente por José Sarney, quando era presidente, e o confisco do dinheiro do povo pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello.

Segundo o IBGE, o caminhar médio da inflação anual foi num crescendo, de 6% nos anos 30 para 12% nos anos 40; 19% nos anos 50; 40% nas décadas de 60 e 70; 330% nos anos 90 e 764% de 1990 a 1995, caindo para 8,6% de 1995 a 2000. Conclusão do professor Silber: “O grande problema do Brasil é o governo”.


Educação – A interpretação dos dados do IBGE é polêmica quando se trata da educação brasileira no século 20. O economista Simão Davi Silber e o sociólogo Francisco de Oliveira admitem que houve mesmo progresso e que os avanços continuam; mas para o professor Vitor Henrique Paro, da Faculdade de Educação, embora as estatísticas sejam verdadeiras, a interpretação delas, como aparece na imprensa, é simplista e esconde a realidade de um ensino profundamente falho.

Silber está convencido de que o País investe na educação, criando salas de aula, e caminha para a universalização do ensino fundamental; 98% das crianças vão para a escola, existem programas de reforço alimentar e não falta material de apoio didático. “Ainda é um ensino pobre, mas se compararmos com o que tínhamos 15 anos atrás melhorou substancialmente.” Mas o economista não acredita no acerto da Prefeitura de São Paulo, e aí há concordância com Paro, quando gasta muito dinheiro na construção de escolas-modelos como o CEU (Centro Educacional Unificado). Ele teme que se repita o que ocorreu no Rio de Janeiro com os Cieps do ex-governador Leonel Brizola. Projetos muito ambiciosos que, por falta de recursos, não podem ser universalizados. “Quando se começa a construir piscina na escola, é muita sofisticação e não dá certo”, alerta o economista.

Paro disse que foi ver pessoalmente um CEU e não gostou: havia 36 alunos do ensino fundamental na sala de aula. “É um crime de lesa-infância, e nem a Unesco tolera tanta gente espremida.” Mas para o educador o mais grave é que as estatísticas oficiais e sua interpretação encobrem a ausência de uma educação que consiste em muito mais do que salas cheias: educar é dar ao aluno condições de se desenvolver em ambiente de paz, diálogo, carinho e liberdade; de saber e poder apreciar uma obra de arte, ouvir boa música, jogar capoeira, dançar, cantar. “Nossa escola não faz nada disso.” Diante desse quadro, o professor da USP considera ridículo dizer que houve no século 20 progresso na educação. Proporcionalmente há menos analfabetos do que no início do século passado, mas eles são muito mais numerosos, são milhões. Matricular todas as pessoas é obrigação do Estado; se uma só ficar fora já é fato grave. Dois milhões fora da escola é como excluir do ensino todos os habitantes de um país europeu. Mesmo assim, Paro diz conhecer no Brasil coisas boas, “que não estão nos jornais”. É bom saber, afirma, que em Ipatinga (MG), Itabuna (BA), Belo Horizonte (MG), Belém (PA) e Porto Alegre (RS) existem projetos de educação “decentes” e que isso se deve a governantes que têm uma visão abrangente da educação. Não é o caso, a seu ver, de ministros como o da Educação, que ele chama de ministro da “seleção”, em razão da política oficial de avaliação do ensino. Paro não culpa a universidade pública, que estaria formando ótimos professores para o ensino fundamental e médio, que, no entanto, vão ganhar a vida em outra atividade, porque o Estado paga muito mal.

Francisco de Oliveira entende que, se os números forem comparados com os do século 19, o Estado obteve avanços notáveis na área educacional, principalmente até os anos 70; depois disso, entrou na era da sociedade de massa, em que a educação “se abastarda”. O papel da universidade foi fundamental ao oferecer ensino público, laico e gratuito. Pena, lamentou, que as universidades públicas estejam em regressão, dando lugar às particulares, que pouco ligam para a pesquisa e a qualidade. A educação não pode ser para o mercado, mas para enfrentar as mudanças do mercado. Deve abrir caminhos e possibilidades intelectuais a todos os cidadãos.

 

 

 




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