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A biopirataria representa a nova forma de colonização no mundo moderno. O “neocolonialismo” é praticado especialmente pelas grandes empresas do setor farmacêutico e químico, através da apropriação de material genético e de conhecimentos tradicionais de comunidades do Terceiro Mundo. Os biopiratas chamam de inventividade o que na verdade é roubo. As afirmações são da física indiana Vandana Shiva, feitas à imprensa durante recente passagem pelo Brasil. Os casos de denúncias de biopirataria surgem de tempos em tempos na mídia e nem é necessário uma especialista dizer aos brasileiros que a prática é corriqueira e que benefícios de inventos obtidos a partir do patrimônio biológico nacional não são devidamente repartidos, conforme prevê a Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica – ainda não assinada pelos maiores detentores de tecnologia do Hemisfério Norte.

Andiroba, copaíba, curare, bibiri, crotão, jaborandi, jenipapo, camu-camu, veneno de jararaca. A lista de espécies e princípios ativos da biodiversidade brasileira usados para a elaboração de produtos patenteados no exterior é longa. Até sangue humano, como o dos povos caritianas, suruís e ianomâmis, foram parar em modernos laboratórios ou bancos de células norte-americanos. A posse desse sangue vem sendo contestada pelas tribos envolvidas (leia o texto ao lado).

A mais recente disputa que veio a público envolvendo marcas e patentes talvez seja a do cupuaçu. O nome da fruta teve um pedido de registro de marca na Europa, Estados Unidos e Japão pela empresa japonesa Cupuacu International. Sua subsidiária, Asahy Foods, depositou em 2000, nos escritórios da Europa e do Japão, pedidos para patentear o processo de fabricação do cupulate, produto com sabor parecido com o do chocolate. A Embrapa, detentora dos direitos sobre o processo industrial, entrou com pedido de anterioridade, contestando a Asahy Foods.

Negócio lucrativo, a biopirataria chega a movimentar no mundo cerca de US$ 60 bilhões, de acordo com recente levantamento do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Na tentativa de combater o contrabando da rica biodiversidade brasileira e coibir o uso indevido de informações genéticas da fauna e flora nacionais, assim como conhecimentos tradicionais de povos indígenas, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso editou a Medida Provisória 2.186, que regulamenta o acesso à biodiversidade. Mas a MP, desde que entrou em vigor, em 2001, literalmente engessou o andamento de muitos projetos de pesquisa científica, produzindo um efeito nefasto ao estudo do patrimônio biológico por pesquisadores brasileiros.

Mas, ao que tudo indica, a pesquisa brasileira poderá respirar mais aliviada. É que o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) do Ministério do Meio Ambiente encaminhará nos próximos dias à ministra Marina Silva uma proposta de legislação que deverá ser apresentada ao Congresso Nacional ainda neste mês. Com isso, o Brasil finalmente poderá ter regras definitivas sobre o assunto. O texto nasceu de discussões protagonizadas por uma câmara temática, constituída pelo Cgen e composta por 34 instituições da sociedade civil, ONGs, empresários, comunidade acadêmica, populações tradicionais e povos indígenas, além do governo. Foram 18 reuniões entre abril e agosto passados.

Em razão do caráter heterogêneo do grupo, diversos pontos não tiveram consenso e ainda deverão ser discutidos no Ministério, disse ao Jornal da USP o secretário-executivo do Cgen, Eduardo Vellez. Além disso, outras discussões deverão ocorrer também nas audiências públicas que certamente acontecerão quando o projeto estiver no Congresso.

Mas, como os trâmites no Legislativo podem ser demorados, Vellez conta que o Ministério publicará algumas resoluções no Diário Oficial, também neste mês, a fim de agilizar pesquisas interrompidas. “Estamos muito sensibilizados com os problemas enfrentados atualmente pela pesquisa científica brasileira e procuramos desenvolver mecanismos para resolver esses conflitos”, destacou Vellez.

De acordo com as resoluções aprovadas pelo Cgen, o Ibama será credenciado a autorizar tanto a coleta quanto o acesso ao patrimônio biológico. Com isso, o pesquisador não necessitará mais entrar com pedidos de autorizações no Cgen e Ibama. O texto também reconhece a pesquisa científica como atividade relevante e de interesse público e, de acordo com esse pressuposto – que, no fundo, diferencia a pesquisa científica daquela com fins comerciais –, o pesquisador fica liberado da autorização por escrito dos proprietários de áreas privadas que sejam alvo de interesse de pesquisa científica.

Em relação ao Decreto 3.945 – outro texto que regula o setor atualmente –, as resoluções modificam especialmente os artigos 8o e 9o, referentes às autorizações especiais de acesso ao patrimônio biológico. “Como ex-diretor de uma instituição de pesquisa no Rio Grande do Sul, senti na carne esses entraves. No caso das autorizações especiais, os requerimentos pedem relatórios muito detalhados e com dados que nem sempre é possível ao pesquisador prever, como itinerário e data de início e fim de uma expedição. Isso será retirado”, diz Vellez. Em lugar disso, afirma o secretário, o pesquisador deverá identificar a região do País em que se realizará a pesquisa. Além disso, uma instituição que precise, por exemplo, agregar novos pedidos de autorização especial não necessitará enviá-los caso a caso e poderá juntá-los ao processo num relatório anual.

Os cientistas também esbarravam constantemente nos conflitos de competências entre órgãos governamentais. Com a resolução, isso deverá ser resolvido. “Trabalhamos muito a questão da cultura institucional. Houve um acordo entre as instituições para sanar problemas de autorizações, resguardando as competências de cada órgão.”

Marcas e patentes – O Ministério do Meio Ambiente trabalha ainda em outras frentes para evitar casos como o do cupuaçu. Uma equipe está compilando uma lista de nomes das espécies mais conhecidas e de grande interesse comercial da biodiversidade brasileira, que deverá ficar pronta até dezembro e será enviada aos escritórios de patentes estrangeiros. O objetivo é evitar que empresas registrem marcas no exterior com nomes de espécies da biodiversidade nacional.

Quanto à proposta de legislação do acesso ao patrimônio biológico, Vellez afirma que as novas regras prevêem penas. Ou seja, quem desenvolver produto a partir da biodiversidade brasileira sem cumprir a regulação nacional ou retirar material para o exterior sem autorização “vai preso”, afirma o secretário. “Hoje a legislação é omissa sobre isso, a não ser quanto à coleta de fauna e espécies de unidades de conservação”, diz.

A nova legislação propõe ainda criar fundos e mecanismos contratuais para a repartição de benefícios eventualmente obtidos com a comercialização de produtos inventados a partir do patrimônio biológico. Além disso, como nas resoluções, a pesquisa científica deverá ter tratamento diferenciado em relação àquela com fins comerciais.

Os professores Walter Colli e Miguel Trefaut Rodrigues, respectivamente do Instituto de Química e do Instituto de Biociências, ambos da USP, publicaram artigos na revista Ciência e Cultura expondo detalhes de como a legislação atual atrapalha o andamento de projetos científicos. Os artigos podem ser lidos na página eletrônica http://ciencia ecultura. bvs.br, sob os títulos “Para melhor conhecer nossa biodiversidade”, de autoria de Rodrigues, e “A lei de proteção ao patrimônio genético”, assinado por Colli.

 

 

Sangue ianomâmi,
à venda na Internet

Os ianomâmis, habitantes da região amazônica entre Venezuela e Brasil, assim como os suruís e os caritianas, de Rondônia, em casos bastante semelhantes, acreditaram em médicos e pesquisadores que, a pretexto de estudar seus hábitos e analisar o sangue de sua gente para sanar doenças como malária, entraram em suas tribos e retiraram sangue de seus membros. Em troca, os índios receberiam ajuda material e assistência médica. Mas a contrapartida nunca veio e, mais grave, laboratórios como o Coriell Cell Repositories, que possui um banco de células mutantes humanas, lucram colocando à venda pela Internet amostras de sangue dos caritianas e dos suruís.

Os ianomâmis, além dos direitos violados, tiveram uma de suas regras culturais básicas aviltadas. É que, na crença ianomâmi, as cinzas dos mortos, após serem entregues aos familiares, devem ser atiradas num rio para que o espírito fique feliz. Mas as amostras de sangue de seus antepassados, coletadas entre 1966 e 1970, são mantidas nas universidades norte-americanas de Michigan e Emory (Atlanta) e no Instituto Nacional do Câncer daquele país, segundo a coordenadora da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, Ela Wiecko de Castilho. “Ainda não existe uma ação judicial para repatriar as amostras ou ressarcir possíveis danos causados àquele povo. Abrimos um procedimento administrativo para apurar o problema e encaminhar soluções. Mas o Ministério Público não tem condições de entrar com ação nos Estados Unidos. Estamos tentando resolver por via diplomática e já encaminhamos pedido ao Itamaraty, através do Ministério das Relações Exteriores. Mas a resposta ainda não veio”, diz Ela Wiecko. No Itamaraty, o funcionário responsável pelo caso não foi encontrado pela reportagem do Jornal da USP.

Os caritianas, com ajuda do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), através da Procuradoria da República em Rondônia, movem ação contra dois pesquisadores brasileiros, na 3a Vara da Justiça Federal daquele Estado. Os suruís, ao contrário, ainda não conseguiram se organizar no sentido de reaver seus direitos. “Estamos nos sentindo prejudicados. Não se faz isso com o ser humano. Estão vendendo nosso DNA para outros pesquisadores”, diz Almir Narayamoga Surui, liderança do povo em Rondônia (a tribo também tem habitantes no Pará).
“Parece um tabu falar de casos em que pesquisadores e universidades participam de atividades envolvendo biopirataria.
Isso deveria ser mais abordado, porque justamente os pesquisadores são as pessoas que possuem informações mais qualificadas para saber quais espécies buscar na biodiversidade e onde elas se encontram”, diz um funcionário da Procuradoria Geral da República em Brasília, que participa das reuniões do Cgen e preferiu não se identificar.

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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