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O prédio da Academia Brasileira de Letras – ou o “Petit Trianon”, como gostam de chamá-lo os acadêmicos, dando vazão à inspiração francesa que criou a Casa de Machado de Assis – é um caixote neoclássico fincado no centro do Rio de Janeiro, entre espigões e mais espigões. E é um luxo só. Poltronas e cadeiras de veludo, cortinas adamascadas, bustos em bronze e telas a óleo lembrando seus solenes fundadores, os homens que cultivaram as letras (pelo menos a grande maioria deles) e foram alçados a um panteão especial. Mas a Academia vai além – ela é também uma casa eternizadora. Quem cruza seus pórticos trajando o fardão verde-escuro com debruns dourados não está apenas recebendo uma grande homenagem. Está também ganhando um passaporte à imortalidade. Pelo menos metafórica. No último dia 30, a ABL eternizou mais um brasileiro, um escritor, crítico literário, professor da USP há mais de quatro décadas. Alfredo Bosi, eleito para a cadeira número 12, que antes estava sendo ocupada por D. Lucas Moreira Neves, agora pode se considerar um ungido. Ou não, já que ele acha essa história de imortalidade uma balela.

Mas que tem ressonância, sem dúvida. Por mais que não vá ser um fardão o responsável por eternizar um homem que já construiu, ele próprio, seu caminho à imortalidade com sua obra substantiva. Livros como Literatura e resistência e Dialética da colonização, entre tantos, já seriam o suficiente para garantir a Bosi – como garantiram a Machado, Joaquim Nabuco, Manuel Bandeira e outros, suas obras – um lugar bem definido no Olimpo da literatura brasileira. Mas noblesse oblige, e às 21 horas em ponto Bosi foi levado pelos acadêmicos ao salão principal da Casa, onde seria empossado. Não, não estavam lá José Sarney, o mago Paulo Coelho e Lygia Fagundes Telles. Mas estavam Carlos Heitor Cony, Ivan Junqueira, Alberto da Costa e Silva, Ledo Ivo, o também uspiano Sábato Magaldi... Imortais esperando um novo confrade.

Em seu discurso de agradecimento, ainda como simples mortal, Alfredo Bosi falou da generosidade da ABL em tê-lo eleito – com 27 dos 38 votos possíveis – e lembrou, um a um, seus antecessores na cadeira que ele estava prestes a ocupar. Desde o patrono França Jr., passando por Augusto de Lima, Macedo Soares, Abgar Renault e D. Lucas, o novo membro fez questão de dedicar palavras ao mesmo tempo carinhosas e analíticas, não fosse ele um homem que soube tão bem aliar a crítica literária a uma sólida formação humanística. “Devo agradecer a Deus por ter encontrado na USP os mesmos ideais de tolerância e respeito que encontrei entre os dominicanos”, declarou o novo acadêmico, sem esquecer sua base uspiana e sua raiz católica.

Uma hora depois, foi a vez de Eduardo Portella – o educador que certa vez “esteve” ministro – saudar o eleito. Mais 40 minutos de fala bem pausada, merecidamente elogiosa, na qual Portella destacou justamente o lado humanista de Bosi – “um homem do Renascimento” – e sua vocação à resistência, mesmo em tempos pouco afeitos a isso. “Alfredo Bosi tem uma história de resistência com compreensão. Bosi coloca a História com a cabeça no mundo e os pés no chão”, disse Portella.

A partir daí, e já beirando quase as 11 horas da noite, Bosi tinha praticamente cruzado os limites entre os mortais e os acadêmicos. Mas faltavam detalhes – sumamente importantes, frise-se. O colar de acadêmico – colocado pela escritora Nélida Piñon –, a espada, entregue por Sérgio Corrêa da Costa, e o diploma, passado a suas mãos por um encurvado, mas ainda assim imponente, Celso Furtado. Só faltou mesmo vestir o chapéu emplumado, mas este o novo acadêmico jura que jamais usará. Livro de posse assinado, já integrado oficialmente à Academia, Bosi foi conduzido por Affonso Arinos e Carlos Heitor Cony para outra sala, a dos Fundadores, onde receberia os cumprimentos.

Nesse momento talvez se entenda bem a conotação da palavra “imortal” dada aos eleitos da ABL. Por mais de uma hora, enquanto a festa e os canapés corriam os corredores e outros salões da Academia, Alfredo Bosi se manteve sorridente – radiante talvez fosse a expressão mais correta – e estoicamente de pé, sem comer ou beber nada, recebendo as congratulações. A fila parecia interminável. Amigos, parentes, admiradores e personalidades variadas. Representavam a comitiva uspiana, entre outros, o ex-reitor Jacques Marcovitch, o vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz – contente por ter encontrado, na forma de um grande quadro na Sala dos Fundadores, um galho ancestral de sua árvore genealógica, o escritor Lúcio de Mendonça –, o ex-diretor do IEA (o instituto ao qual Bosi está ligado) Gerhard Malnic, a coordenadora da CCInt, professora Magda Carneiro Sampaio, e o diretor da FFLCH (a casa original de Bosi), Sedi Hirano.

“A eleição de Alfredo Bosi representa três coisas: primeiro, o devido reconhecimento das Letras, e de seu papel. O professor Bosi é também um grande divulgador da obra de outros autores, e isso fica claro na revista do IEA, que ele edita desde seu primeiro número. Segundo, um reconhecimento ao Alfredo Bosi humanista, como foi bem lembrado por Eduardo Portella. Ele é um resistente. Essa dimensão de respeito ao outro surge mesmo em sua atitude de contestação, que é também respeitosa e construtiva. O terceiro significado da escolha do professor Bosi foi sua contribuição na construção da identidade dos valores da Universidade, quando ele foi o principal coordenador do Código de Ética da USP”, analisou Marcovitch.

Mas havia muito mais gente a parabenizar o novo imortal – por mais que essa expressão pareça canhestra. D. Claudio Hummes, cardeal de São Paulo, e o vice-governador do Estado, Cláudio Lembo, também foram render homenagens. Que foram igualmente oferecidas pelo senador Marco Maciel (em sua eterna e discreta figura de personagem de Modigliani) e pelo jornalista Fernando Moraes, que aproveitaram a festa para fazer um “corpo a corpo” entre os acadêmicos e buscar votos. Ambos são candidatos à cadeira deixada vaga por Roberto Marinho. Moraes chegou a montar, segundo ele, um bunker no Copacabana Palace – lugar perfeito para isso – a título de escritório eleitoral provisório. Ao seu lado, como fiel cabo eleitoral, desfilava o dublê de ator e, digamos, diretor, Guilherme Fontes, aquele que começou mas não terminou as filmagens de Chatô, o Rei do Brasil, uma das obras de Fernando Moraes. De todos esses cumprimentos, dois encantaram além da conta ao novo imortal. Um, oferecido pela cunhada de Renault, uma bela e imponente senhora que, do alto de seus 90 anos, foi lhe dizer o quanto havia ficado emocionada com as palavras proferidas pelo crítico.

O outro veio de um conviva, que contou a Bosi que, indo para a posse na Academia, ouviu do motorista de táxi: “O senhor vai para a posse do professor Alfredo Bosi? Eu gosto muito dele”. “Como os taxistas do Rio são cultos”, exclamou, feliz da vida, o novo acadêmico. E com razão. Posses na ABL não são, normalmente, temas de conversas informais em um trajeto de táxi, enquanto se espera os faróis abrirem e o trânsito fluir. Mas é melhor mesmo que as coisas estejam mudando. Com tudo isso, haveria espaço para o cansaço? De jeito nenhum. Mas, afinal, como é se ver candidato à Academia, ser eleito e, finalmente, ser empossado? O professor Alfredo Bosi pára um segundo, reflete e analisa:

“São momentos e sentimentos muito diferentes. Em um primeiro momento, fiquei perplexo quando amigos da Academia me solicitaram que me candidatasse. Eu nunca tinha pensado nisso. Acho que a gente em São Paulo, principalmente na Universidade, acaba ficando muito distante da ABL, não acompanhamos seu dia-a-dia. Então, fiquei perplexo e cheguei a retirar minha candidatura, achava que não era conveniente, não me sentia integrado. Mas houve insistências, recebi cartas, e senti que se a Academia Brasileira de Letras demonstrava interesse e gosto de ter como um de seus membros um professor de literatura da USP, era preciso ceder à sua generosidade”. Nesse momento, o professor respira fundo, aperta mais uma mão e prossegue:

“Então, meu primeiro sentimento foi um misto de perplexidade e retraimento. Depois, me convenci de que realmente valia a pena e, felizmente, não tive que buscar votos, visitar ninguém. Ou, como escreveu Dante Alighieri, não tive que provar o gosto de sal que é subir e descer a escada dos outros. Fui preservado disso. Fiquei surpreso com a votação que recebi. Isso me alegrou muito e fez com que eu me sentisse ainda mais próximo desta Casa, desta realidade. Agora, com a posse, a emoção é muito grande, um clima fraterno que me enche o coração. Depois de ter passado tantos anos falando de Bandeira, de Guimarães Rosa, de Machado, estar na casa que eles habitaram tanto tempo passa a fazer sentido, passa a ter uma conexão”.

Sentado finalmente, conversando com o jornalista, Bosi foi aquinhoado com uma bem-vinda taça de suco de abacaxi com hortelã, enviada pela professora Ecléa Bosi, sua preocupada companheira de tantas décadas. Logo a seguir, chegou o presidente da Casa, o embaixador Alberto da Costa e Silva, e decidiu pôr fim à feliz provação do novo acadêmico, levando-o a passear pelos salões e, afinal, poder aproveitar da festa que era justamente sua. O dia 1o de outubro já havia começado há algum tempo e os fardões estavam ainda longe de voltarem aos armários.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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