PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
 

A participação em quadrilhas na escola primária era revestida de um grande mistério para Neivaldo Zovico, paulista de Limeira. Afinal, por que, em determinado momento, todos que desfilavam em roda, de mãos dadas, davam meia-volta e fingiam estar se protegendo com as mãos acima da cabeça? Neivaldo cumpria à risca a coreografia, mas ficava intrigado. Tinha vergonha de perguntar o motivo do gesto. Já adulto, alguém explicou o que se cantava na tradicional “moda” de sanfona e violão que anima as festas juninas. Soube, enfim, que quando as crianças faziam algum movimento abrupto era porque, naquele trecho da canção, pedia-se para tomar cuidado com a chuva, com a cobra etc. “Minha frustração foi descobrir o significado da música só muito tempo depois, já fora da infância”, conta. “Eu estava incluído apenas parcialmente naquela comemoração.”

Hoje, aos 37 anos, matemático formado em 2001 e presidente do Conselho Fiscal da Confederação Brasileira de Desportos de Surdos, com sede em São Paulo, Neivaldo, surdo de nascença, conhece a fundo a importância da palavra “inclusão”. Durante cinco anos, freqüentou (e enfrentou) a faculdade com o desafio de superar a barreira do silêncio para dominar a exatidão de números e cálculos. Conseguiu. Agora, quer ajudar a incluir outros surdos no universo da matemática, dando aulas para portadores da mesma deficiência. “A inclusão não se restringe ao acesso a um tratamento de saúde adequado e sem custos”, avalia. “É preciso avançar, conquistar espaço em todos os campos da vida social, incluindo-se a cultura, o esporte, o entretenimento e tudo o que qualquer cidadão tem o direito de fazer.”

Neivaldo não protagoniza uma história isolada de constrangimentos e limitações. Há dez anos, a jovem carioca Vilma Pinto Romano, filha e neta de músicos, que não é deficiente auditiva, preferia ouvir discos sozinha, em casa, a sair com os amigos. No mesmo período, a campineira Ana Paula buscava na família o apoio para superar uma certa timidez junto aos colegas de classe. Longe de São Paulo, o empresário José Humberto Pires de Araújo já se acostemava com o trajeto que percorre até hoje, entre Brasília e Bauru, enquanto a bancária Maria Lúcia Alves Venturini mudava-se definitivamente de cidade, em 1993, para facilitar o tratamento do filho. Brasileiros que não se conhecem, mas cujas vivências têm um mesmo fio condutor: a necessidade de usufruir de tratamento público de saúde – e de exercitar a plena inclusão social –, apesar dos “muros” de preconceito que cercam os casos de fissura labiopalatal (abertura na região do lábio e palato, provocada pelo não-fechamento dessas estruturas em decorrência de fatores hereditários ou ambientais) ou deficiência auditiva.

Ana Paula: cantora já tem dois CDs

É verdade, contudo, que milhares de pacientes em potencial ainda estão à margem da reabilitação e da inclusão sociocultural, por motivos que vão da falta de auxílio das prefeituras de origem para longas viagens à escassez de informação sobre onde procurar ajuda e como agir. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), são 24,5 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência (cerca de 14,5% da população). Bem mais do que os dois milhões de deficientes confirmados pelo censo populacional de 1991. Só deficientes auditivos são quase 6 milhões – mais do que os centros especializados podem acolher.

No caso de fissura labiopalatal, estima-se um universo superior a 300 mil fissurados. Estatísticas do Ministério da Saúde demonstram ainda que, no Brasil, nascem por ano 5.800 portadores de fissuras labiopalatais, dos quais 1.680 acabam indo para o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP – o popularmente conhecido Centrinho de Bauru (mais de 65 mil pacientes cadastrados desde 1967). Só no Estado de São Paulo nascem, por ano, 1.800 fissurados, dos quais 600 se matriculam na instituição.

Para aprimorar o trabalho de inclusão do paciente, diversas iniciativas estão em curso para informar, orientar, esclarecer e incentivar a inclusão dos portadores aos tratamentos disponíveis pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e aos instrumentos (oficiais e privados) de participação social. As ações vão desde a elaboração de uma ampla pesquisa para cadastrar serviços de saúde especializados até a criação de uma rede nacional que possa integrar associações que representam pacientes. Há, ainda, esforços individuais dos próprios pais e pacientes – na vida real e no mundo virtual, via Internet. O futuro de pacientes que sequer nasceram está sendo decidido aqui e agora por gente que encara a questão com otimismo, persistência e naturalidade.

“Cascas de proteção” – No Rio de Janeiro, é Vilma Pinto Romano, de 36 anos – portadora de fissura labiopalatal – quem ensina a superar a discriminação através de uma página eletrônica que ela própria elaborou e desenvolveu neste ano. “No nosso caso, dizer que a união faz a força é muito mais do que uma frase de encorajamento. É uma questão de sobrevivência social”, ressalta. Ela – que só foi fazer sua primeira cirurgia em fevereiro de 2002, já adulta – acredita que a informação é uma poderosa arma a favor do tratamento no momento certo e contra a exclusão. “Por isso resolvi criar uma página eletrônica independente, para colaborar com fissurados anônimos.” Hoje comunicativa, Vilma superou o preconceito e os “olhares de reprovação” ao decidir que sua auto-estima não poderia ser sacrificada. “Muitos que nasceram com essa anomalia se escondem em cascas de proteção, que só desprotegem”, constata. A página de Vilma pode ser acessada no endereço www.amigosfissurados.kit.net.

Para evitar a procura tardia por tratamento, como no caso de Vilma, o vereador e cirurgião Roger Lin, de São Paulo, apresentou, no final do ano passado, para apreciação na Câmara Municipal da capital, o projeto de lei 533/02, que “torna obrigatório o imediato encaminhamento de recém-nascidos com lábio leporino e/ou fenda palatina para centros de tratamento”. “Tenho contato com pais de crianças portadoras dessa deficiência que relatam a dificuldade em buscar atendimento para os seus filhos”, diz o vereador. Só a capital paulista possui mais de 1.900 pacientes com fissura labiopalatal cadastrados no Centrinho de Bauru. Levando-se em conta a população – superior a 10 milhões de habitantes – e a relação de um fissurado para cada grupo de 650 nascidos vivos (segundo estudos do hospital), chega-se à estimativa de que mais de 16 mil pessoas permanecem sem atendimento nessa especialidade na maior metrópole do País.

No momento, o projeto é avaliado pela Comissão de Saúde da Câmara. Já passou pelas Comissões de Justiça e Política Urbana. Depois, segue para a Comissão de Finanças e, finalmente, para votação em plenário. Durante a tramitação do texto, o vereador Carlos Neder, na época relator da Comissão de Administração Pública, elaborou um substitutivo, ainda não implementado, que foi aprovado em dezembro de 2002. O vereador propôs a instituição de um Programa Municipal de Atenção aos Portadores de Lesões Labiopalatais, com o objetivo de assegurar tratamento integral a todos os portadores, além de garantir encaminhamento imediato aos hospitais de referência.

O Conselho Regional de Fonoaudiologia de São Paulo, por sua vez, sugeriu à Câmara Municipal de São Paulo, em audiência pública, algumas modificações no projeto substitutivo proposto por Neder. Destacou a necessidade do atendimento para outras faixas etárias e não só os recém-nascidos; o atendimento multiprofissional, com acompanhamento pré-cirúrgico, cirúrgico, pós-cirúrgico e seguimento ambulatorial. Segundo a presidente da Comissão de Legislação e Normas do Conselho Regional de Fonoaudiologia, Monica Petit Madrid, “quanto às sugestões dadas pelo nosso conselho em audiência pública, até o momento nada foi comentado”.

Da capital paulista para a capital federal, a preocupação para que o paciente não se sinta culpado é uma orientação que passou de pai para filho. Basta ver o aconselhamento dito e repetido ao longo dos anos pelo presidente da Abras (Associação Brasileira de Supermercados), José Humberto Pires de Araújo, a seu filho adolescente, hoje com 14 anos. “Desde cedo a gente mostrava com orgulho o Danilo, a gente não o escondia”, lembra. “É a família que, em primeira instância, deve abrir as portas dessa inclusão total na sociedade.”

O “abrigo” familiar também foi decisivo para que Ana Paula Vedovotto, de 20 anos – portadora de fissura labiopalatal –, pudesse realizar o sonho de ser cantora, contrariando a “lógica funcional” de sua condição estética adversa. Às vésperas de lançar o segundo CD, a jovem de Campinas foi bem-sucedida em suas cirurgias e já não exibe mais traços de acanhamento ao enfrentar o público. “Tenho um dom que nada nesse mundo vai impedir de ser exercido”, avisa, com convicção.

Desde que, aos três anos de idade, iniciou tratamento no Centrinho, Ana Paula passou por cinco cirurgias e, agora, vai a Bauru apenas para fazer monitoramento. “Hoje, reconheço que estou reabilitada”, conta. “Mas, quando criança, era alvo de certas brincadeiras que me magoaram muito.” Sobre a questão do acesso, ela não tem dúvidas: a descentralização dos serviços prestados pelo Centrinho é o melhor caminho. “Houve um tempo em que viajava para Bauru todos os meses, até que, um dia, uma dentista (Cristina Pinheiro), que atendia no Centrinho, veio para Campinas. Esse fato reduziu o número de viagens porque eu comecei um acompanhamento ortodôntico na minha cidade, sempre com total apoio de meus pais.”

Mas, quando o apoio da família não basta para viabilizar um tratamento adequado, a Justiça pode (e deve) ser acionada. A dona de casa Silvia Lara Pereira que o diga. Foi na Justiça que ela obteve inédita liminar para custear despesas de viagem para tratar o filho único, Valério, de 3 anos, portador de fissura. Sendo assim, a prefeitura de Carmo da Mata (centro-oeste de Minas Gerais) e a Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais garantem passagem aérea da pequena cidade mineira até Bauru (700 quilômetros de distância). O auxílio governamental – seja municipal ou estadual –, aliás, é respaldado desde 1999 pela portaria federal que normatiza o TFD (Tratamento Fora do Domicílio). “É um meio legal e a gente precisou recorrer a isso para ter condições de ir e vir sempre que necessário”, conta Silvia.

Agir para facilitar a inclusão do paciente no sistema público de saúde também é o objetivo final de pesquisadoras da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “Queremos facilitar o acesso da população ao tratamento, ao mesmo tempo em que planejamos e executamos estudos envolvendo diferentes centros de referência”, explica a médica Isabella Lopes Monlléo, da Unicamp, que integra equipe coordenada pela professora Vera Lúcia Gil da Silva Lopes, do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas daquela universidade. Segundo Vera Lúcia, cadastrar os serviços de saúde que prestam atendimento a portadores de malformações, inclusive genética clínica e aconselhamento genético, é uma forma de democratizar todo o sistema. “Queremos propor ações de saúde específicas”, explica. “Isso significa agir antes, especialmente para os defeitos de fechamento de tubo neural e fissuras labiopalatais, cuja possibilidade de prevenção se mostra muito eficaz.”

As pesquisadoras também pretendem incentivar uma melhora no intercâmbio entre os profissionais da área. Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, o projeto conta com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e deve estar concluído em cerca de dois anos.

Foi também com financiamento da Fapesp que a diretora do Serviço Social do Centrinho, Maria Inês Gândara Graciano, passou a desenvolver um amplo projeto que, na prática, cria a primeira federação de associações de portadores de fissura labiopalatal do País.

Depois dos contatos iniciais com dirigentes das 46 entidades em atividade no Brasil, a iniciativa acaba de entrar em sua segunda fase. “O paciente precisa conhecer a fundo os seus direitos para ser incluído no leque de serviços que estão à disposição dele”, diz a diretora. “Estamos todos juntos para superar as inúmeras dificuldades de um tratamento que pode durar décadas, dependendo da complexidade.”

Descentralizar é preciso – “Superar” e “ultrapassar” também são verbos conjugados com freqüência por deficientes auditivos que buscam se unir para, juntos, espantar o fantasma da exclusão no que se refere ao processo de reabilitação. A bancária aposentada Maria Lúcia Alves Venturini é uma das muitas mães de pacientes do Centrinho que precisou se mudar de sua cidade, Botucatu, distante 100 quilômetros, para permanecer em tempo integral em Bauru com um único objetivo: acompanhar de perto o desenvolvimento do filho, Pedro Paulo.

Depois de manter vínculos diários com uma unidade de reabilitação do hospital, Pedro Paulo se tornou, em 2003, o mais novo matriculado do colégio técnico da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em Bauru. “Graças ao tratamento, adquiriu fala e se relaciona socialmente sem os transtornos do passado”, testemunha a mãe, também deficiente auditiva. Há ainda quem venha de regiões bem mais distantes em busca de uma chance para o filho. “Vou a Bauru com minha filha há 17 anos e sei como é importante ter apoio do governo, seja municipal ou estadual, para não ser excluída do direito ao tratamento, que vale para todos”, relata a dona de casa Gonçala Amorim Batista, de Xingüara, no Pará, a três dias de viagem de ônibus de Bauru.

Já o técnico de manutenção João Correia resolveu ficar tão próximo do Centrinho que, há uma década e meia, é funcionário concursado da instituição, onde iniciou tratamento há 30 anos. Portador de fissura labiopalatal completa e também portador de deficiência auditiva, precisou superar dificuldades de toda ordem – inclusive em festas de confraternização, como ocorreu com o matemático Neivaldo – para entrar no grupo dos brasileiros economicamente ativos.

Hoje, relaciona-se socialmente sem problema. Mas nem sempre foi assim: “Na escola, sentava no fundo porque tinha muito medo de que a professora me chamasse para ler algum trecho de livro na frente de todos”, recorda-se. “Agora quero seguir adiante nos estudos e evoluir na minha carreira como qualquer trabalhador.”

Mas como criar condições para uma vida digna a todos num país com dimensões continentais? “O caminho é mesmo a descentralização”, confirma o superintendente do Centrinho, professor José Alberto de Souza Freitas, o Tio Gastão. Dessa forma, a Funcraf (Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades Craniofaciais) – principal parceira do Centrinho desde 1985 – mantém três subsedes para tratamento ambulatorial de fissurados e deficientes auditivos em Santo André, Itararé, ambas no Estado de São Paulo, e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O próprio Centrinho realiza implantes cocleares pelo SUS – mais de 300 desde 1990. Cada implante – ideal para portadores de perda profunda de audição –, se executado por sistema particular, pode custar até US$ 19 mil (ou quase R$ 60 mil).

Nos últimos anos, Tio Gastão vem buscando parcerias para levar o atendimento do Centrinho – seja em deficiência auditiva, seja em fissura labiopalatal – a outras regiões do Brasil, como Foz do Iguaçu (PR), Palmas (TO), Brasília (DF) e Grande São Paulo, entre outras. “Não adianta saber qual é o problema. Precisamos correr atrás de soluções”, destaca. Para ficar só no exemplo do implante, como são poucos os lugares que dominam essa tecnologia, “o jeito é ir até Bauru para buscar atualização”, conta a fonoaudióloga carioca Jordelina Montalvão Corrêa, que repassa a seus pacientes tudo o que aprende no interior paulista.

Dessa forma, enquanto a descentralização não é consumada com a abrangência necessária para atender à demanda nacional, a vida de portadores dessas e de outras deficiências pode ser menos árida de possibilidades se a informação sobre os mecanismos de inclusão circular livremente. Afinal, não é só a deficiência que nasce com o seu portador. O direito ao tratamento ideal e a uma vida sem discriminações também. “Esse processo tem nome: chama-se cidadania, que deve ser menos abstrata e mais palpável nas pequenas coisas do dia-a-dia”, retoma Tio Gastão. Só assim a sociedade poderá evitar que cidadãos-portadores, como o matemático Neivaldo, sejam obrigados a dançar conforme a música – sem sequer entendê-la.

Mais informações podem ser obtidas nas páginas eletrônicas www.centrinho.usp.br, www.fun- craf.org.br, www.amigosfissura- dos.kit.net e www.surdos.com.br .

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]