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Então disse o Senhor a Abraão, segundo narra o Gênesis: “Sai da tua terra e da tua parentela e vai para a terra que eu te mostrarei. Farei de ti uma grande nação, te abençoarei e engrandecerei o teu nome. Tu serás uma bênção”. Começava assim uma aliança que teria longa e frutuosa trajetória na história do Ocidente – a aliança entre Jeová e o pai de uma nação ainda a ser formada, os hebreus. Desde então, o povo que produziu as Sagradas Escrituras acredita ser um grupo escolhido especialmente pelo Criador para transmitir sua vontade à humanidade – uma crença que, por si só, também teria desdobramentos na cultura ocidental.

Estudar essa crença e seus desdobramentos foi justamente o objetivo de Ariel Finguerman, mestre em Estudos do Judaísmo pela USP, ao pôr-se a escrever o livro A eleição de Israel – Um estudo histórico-comparativo sobre a doutrina do “povo eleito”, que acaba de ser lançado pela Editora Humanitas e pela Fapesp. Nele, Finguerman traça a história do conceito de “eleição” entre o povo judeu desde os patriarcas até hoje, mostra como outros povos, ao longo dos séculos, desenvolveram a mesma idéia e, finalmente, expõe os conflitos entre judaísmo e cristianismo, cada um reivindicando para si a condição de “povo eleito” de Deus.

Na primeira parte do livro, Finguerman confirma – através dos textos do Pentateuco, do Talmud e da literatura rabínica – que os judeus, sim, se consideram um povo eleito por Deus. Porém, existem duas tradições distintas no que se refere à eleição de Israel, que convivem em tensão nas páginas da Bíblia Hebraica – o equivalente, para os cristãos, ao Velho Testamento. A primeira delas remonta às promessas feitas a Abraão. Ao contrário do que se poderia esperar num tratado firmado na Antigüidade oriental – em que a parte mais forte jamais seria responsável pelas obrigações –, Abraão firmou com Deus um pacto generoso, que não prevê outro encargo a não ser a fé e uma boa conduta. “Não há nem lista de mandamentos nem obrigações a serem observadas”, escreve Finguerman.

A segunda tradição sobre a eleição dos judeus, também presente nas Escrituras, diz respeito à aliança firmada entre Moisés e Jeová no Monte Sinai. Ali as condições são diferentes. Desta vez, a observância de mandamentos é a condição para o recebimento das benesses da aliança, como era comum nos tratados políticos antigos. “Na Aliança do Sinai, nada é incondicional e o não cumprimento das estipulações vem acompanhado de ameaça de calamidades.”

É fácil verificar, nos textos sagrados, como essas duas tradições correram paralelas ao longo da história judaica, uma sobrepondo-se à outra, conforme as circunstâncias. Em torno do ano 1.000 antes de Cristo, um militar carismático, Davi, unificou as tribos hebraicas, expulsou os filisteus do solo israelita, conquistou outras cidades-estado e, finalmente, concluiu a conquista da “Terra Prometida”, iniciada 200 anos antes por Josué. Mais: formou um império que se estendia do deserto do Sinai, ao sul, até a Síria, ao norte, tendo como capital Jerusalém. Graças a esses empreendimentos tão bem-sucedidos, começou a surgir uma teologia segundo a qual as promessas divinas feitas a Abraão foram cumpridas em Davi. Essa aliança de Deus com a Casa de Davi seguiu a tradição abrâmica – incondicional, gratuita e eterna – e foi expressa nas palavras do profeta Natan, de acordo com o segundo livro de Samuel: “Se (Davi) cometer alguma falta, eu o corrigirei (...), mas minha fidelidade não se afastará dele”.

Já entre os profetas – que atuaram em Israel a partir do século 8 antes de Cristo –, o tipo de aliança que prevalece é de tradição mosaica, condicional e punitiva. “Os profetas recuperaram a esquecida tradição da aliança mosaica, com seu característico tom moral-educativo dado pelos mandamentos e que não era a teologia predominante na época da monarquia. No entanto, os profetas não rejeitaram as esperanças da aliança davídica e até reforçaram-nas, mas ao mesmo tempo denunciaram a ilusão de segurança que essa doutrina naturalmente difundia.”

Judeus e cristãos – Em sua versão abrâmica ou na forma mosaica, a doutrina da eleição foi responsável, em boa parte, pelos graves conflitos que, ao longo dos séculos, opuseram judeus e cristãos. Como Finguerman explica no livro, as doutrinas de “eleição” de diferentes culturas – elas estão presentes, por exemplo, nos sistemas religiosos da Babilônia antiga, na China milenar e na atual Nigéria dos iorubás – não podem viver lado a lado. Ou se acredita na “eleição” dos babilônios ou na “eleição” dos chineses. Para resolver esse conflito, o crente tem duas opções: ou ignora a “eleição” dos outros credos ou considera como única verdadeira a sua própria religião, sendo as demais mentirosas.

No caso cristão-judaico, houve um desvio desse padrão, nota Finguerman. Os teólogos do cristianismo – inevitavelmente enraizados na tradição judaica, visto que Cristo e seus primeiros seguidores eram todos judeus – não puderam ignorar a “eleição” dos judeus nem mesmo negar sua autenticidade. “Pelo contrário, o livro sagrado do judaísmo, que é o depositário por excelência da doutrina da ‘eleição’ dos judeus, entrou no cânone da nova religião e passou a fazer parte da doutrina de ‘eleição’ dos cristãos. Estava introduzido aí o germe do conflito de ‘eleições’ entre as duas crenças.”

As duas religiões, acrescenta Finguerman, não compartilharam as Escrituras – elas disputaram o livro sagrado. Citando o historiador Marcel Simon, o autor de A eleição de Israel destaca que os laços próximos que existiam entre judaísmo e cristianismo tornaram a hostilidade mútua ainda mais implacável. “Não poderia deixar de ser assim, pois duas ‘eleições’ não podem compartilhar um mesmo sistema e, sendo as produções sacras depositárias desse tipo de doutrina, um mesmo documento sagrado não pode ser compartilhado por duas ‘eleições’ sem surgir algum tipo de conflito.”

Apesar desses conflitos praticamente insolúveis, Finguerman arrisca dar uma contribuição para o convívio pacífico entre as crenças judaicas e os credos cristãos. Ele acredita que esse convívio só pode ser proporcionado pela tolerância nascida do exame racional das doutrinas de “eleição”, através de estudos histórico-comparativos. “O uso da razão permite ao fiel de uma religião perceber que outras religiões trazem doutrinas similares às suas e que certas idéias, que se acreditava serem exclusivas de uma crença, na realidade também se apresentam na crença do outro”, escreve Finguerman. “Ao perceber que a sua doutrina de ‘eleição’ encontra paralelo em doutrinas similares de outras religiões, o fiel é levado a reavaliar certos dogmas baseados na leitura ‘fundamentalista’ das Escrituras. Mas isso não significa um abalo em sua vivência espiritual.”

Para Finguerman, apontar o paradoxo das doutrinas de “eleição” não significa condená-las e, por extensão, condenar a própria religião. “Uma coisa é a doutrina de ‘eleição’ avaliada friamente pela razão. Outra é a vivência profunda e real dessa doutrina por parte do homem religioso – a sensação espiritual e real que o judeu sente como parte do ‘povo eleito’ e que o cristão vivencia em sua comunhão com Cristo. O fiel pode vivenciar espiritualmente sua doutrina de ‘eleição’ sem que isso signifique que deva anular a sua razão.” É esse homem religioso e tolerante que, para Finguerman, pode, senão superar, pelo menos suportar o conflito de “eleições”.

A eleição de Israel
Um estudo histórico-comparativo sobre a doutrina do “povo eleito”

Ariel Finguerman
Editora Humanitas (t.3091-4589) e Fapesp
174 páginas
R$ 20,00.
 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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