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Mais de 1,3 bilhão
de pessoas no mundo cultuam a religião fundada por Maomé,
no século 7: mais do que um texto religioso, o Alcorão
é um código que rege a vida dos crentes em todas
as áreas, desde a familiar e a financeira até
a política e a social |
Os
muçulmanos crêem que o profeta Muhammad (nome original
de Maomé) recebeu de Alá (Deus, em árabe) os
ensinamentos do Alcorão ao longo de 23 anos. Para que os
brasileiros tivessem pela primeira vez uma tradução
dos versos do livro sagrado do islamismo feita diretamente do árabe,
o tempo decorrido foi quase o mesmo. Em 2004, completam-se 20 anos
do início do monumental trabalho coordenado por Helmi Nasr,
professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP. A tradução propriamente dita
não foi a principal causadora da demora: iniciada em 1984,
ela estava concluída em 1988. O texto foi então enviado
para o Complexo Rei Fahd, em Medina – uma das cidades sagradas
do islamismo –, na Arábia Saudita, para ser examinado
pelos especialistas responsáveis por aprovar as versões
do livro em outras línguas. Só
depois de muitas idas e vindas, revisões, consultas e visitas
do próprio professor Nasr à Arábia é
que o material foi aprovado pela Liga Islâmica Mundial.
O volume
terá cerca de 1.200 páginas em papel seda. Em cada
uma, estarão lado a lado as suratas – como são
chamados os capítulos do Alcorão – em árabe
e a sua tradução em português. Abaixo delas,
um bom espaço será dedicado a comentários e
notas com referências históricas e outras explicações,
tanto de caráter lingüístico quanto teológico.
“A tradução está sendo esperada com impaciência
pelos muçulmanos do Brasil”, atesta o professor Nasr.
Ainda não se sabe quantos exemplares serão impressos
pelo complexo de Medina, que os enviará para o Brasil entre
dezembro deste ano e o início de 2004. O que se pode imaginar
é que a procura será intensa, afinal o livro não
estará à venda. A distribuição, gratuita,
ficará a cargo da Embaixada da Arábia Saudita no Brasil,
em Brasília.
Para
os muçulmanos, só o texto em árabe contém
as palavras exatas recebidas pelo profeta diretamente de Deus entre
os anos de 610 e 632 da era cristã. As demais versões
são apenas isso: versões. “A palavra de Deus
fora pronunciada pela primeira vez em língua árabe,
e essa escritura acabaria sendo chamada de Qu’ran (Corão):
a Recitação”, conta no livro Uma história
de Deus a pesquisadora americana Karen Armstrong. A tradução
em português é a 41ª aprovada pelo Complexo Rei Fahd.
De
certa forma, pode-se dizer que a língua do profeta vai “se
sentir em casa” no idioma de Camões. Como fruto do
domínio árabe por séculos na Península
Ibérica, o português deve cerca de 10% de seu vocabulário
ao árabe. Muitas das palavras nascidas desse casamento acabaram
incorporando o artigo al – como “algodão”,
que passou a outras línguas como cotton (de cotão)
– e o próprio nome Alcorão. Os lusitanos também
vão se beneficiar do trabalho desenvolvido no Brasil. Após
as devidas adaptações de vocabulário e ortografia,
o texto – com a “bênção” da
Liga Islâmica Mundial – será impresso na Arábia
e distribuído em Portugal.
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Mesquita
Abu Bakr Assidik, em São Bernardo do Campo: comunidade
grande e unida que trabalha pelos carentes |
Erros
e problemas – Existem pelo menos oito versões em português
do livro sagrado, cinco produzidas no Brasil e três em Portugal.
Praticamente todas vêm de fontes em francês e inglês,
não do árabe. Elaboradas por iniciativa de diferentes
grupos islâmicos, elas não passaram pelo crivo da Liga
Islâmica Mundial, que só aprova versões feitas
do original. É quando fala dos problemas desses textos que
o professor Nasr abandona o quase permanente sorriso e o brilho
nos olhos que o caracterizam, no entusiasmo dos 80 anos de idade.
“Há muitos erros lingüísticos e os tradutores
não tinham base islâmica”, lamenta. “São
erros fantásticos que um árabe fica espantado de ver.”
Como exemplo, ele cita a exclusão do profeta Hud de uma versão
produzida em Portugal. “O tradutor disse que esse profeta
não é mencionado na Bíblia e, portanto, é
suspeito. É uma falha muito grande.” Outro tradutor
confundiu o nome do mesmo profeta com a designação
dada ao povo judeu – yahud. No Brasil, o texto mais usado
é o traduzido pelo libanês Samir El Hayek, que vem
introduzindo mudanças em edições sucessivas.
“Ele foi melhorando e aperfeiçoando. É a versão
mais próxima que temos”, diz o sheik Ali Abdune, presidente
na América Latina da Assembléia Mundial da Juventude
Islâmica, com sede em São Bernardo do Campo.
Muçulmano,
o professor Helmi Nasr coordenou uma equipe de dez especialistas
nas mais diversas áreas – estilo e gramática,
entre outras – para produzir todo o material. Tanto cuidado
se justifica. O Alcorão é mais do que um relato religioso:
ele é um código que rege a vida em todas as áreas
– financeira, familiar, social etc. Além disso, os
muçulmanos crêem que Maomé foi o último
profeta e, portanto, no Alcorão está registrada a
última mensagem enviada por Deus aos seres humanos. Considerado
o terceiro livro sagrado – depois da Torá judaica e
do Evangelho cristão –, em muitos lugares o texto confirma
o que a própria Bíblia já relata no Antigo
e no Novo Testamentos. “O Alcorão dá ordem de
crer nos mensageiros de Deus. Temos 25 profetas da Bíblia
mencionados nele, como Adão, Noé, Abraão, Isaque,
Davi e Jesus”, diz Nasr.
Várias,
porém, são as diferenças. Jesus, que é
citado 11 vezes no Alcorão, não é considerado
filho de Deus, como crêem os cristãos, nem ressuscitou
após ser crucificado. Ele é filho de Maria, sem pai,
e foi arrebatado de corpo e alma para os céus. Sua volta
será um dos sinais dos últimos tempos. Quem morreu
na cruz, segundo o islamismo, foi Judas. “Respeitamos a visão
cristã. Seguimos os profetas, acreditando que um indicou
que viria o próximo”, explica o sheik Ali Abdune. “O
próprio Jesus mudou as leis de Moisés, pois essas
leis foram vindo conforme a época e a situação.”
Guerra
e paz – A tradução chega num momento em que
os conflitos no Oriente Médio, berço das três
grandes religiões monoteístas do planeta – judaísmo,
cristianismo e islamismo –, parecem ter chegado numa encruzilhada
em que é difícil vislumbrar soluções
pacíficas. Tanto o sheik quanto o professor lamentam o verdadeiro
estado de guerra vivido na região e atribuem a responsabilidade
por ele a um conjunto de razões: governos árabes atrelados
a interesses de outros países, especialmente os Estados Unidos;
a própria política externa norte-americana; e o tratamento
dado pelo governo israelense à questão palestina.
“É uma situação muito penosa. Um povo
foi expulso de sua terra e, em vez de se encontrar um lugar para
ele, tem-se a intenção de aniquilá-lo”,
lamenta o professor Nasr. “A história não vai
perdoar isso.”
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O
professor Nasr: direto do árabe |
O professor
– que realizou a primeira tradução em árabe
de Gilberto Freyre e no ano que vem dará um curso de pós-graduação
em Estudos Orientais na FFLCH –, também abandona temporariamente
o sorriso quando fala da crise no Oriente Médio. Nasr veio
do Egito para o Brasil em 1962, depois que o então presidente
Jânio Quadros, admirador do presidente egípcio Nasser,
visitou o Cairo e prometeu criar um centro de estudos orientais
na maior universidade brasileira. “Em pouco tempo o Brasil
absorve e unifica tudo e o imigrante se sente brasileiro”,
diz o professor.
Do
último Fórum Social Mundial, realizado em janeiro
passado em Porto Alegre (RS), vem um exemplo que justifica a tese
e pode representar esperança para corações
e mentes preocupados com o futuro daquela região: durante
três dias palestinos e israelenses participaram de uma programação
chamada Diálogos para a Paz. No último dia, foi lido
o documento produzido no encontro e as cerca de 20 mil pessoas presentes
ao ginásio Gigantinho cantaram, chorando e de mãos
dadas, a música Imagine, de John Lennon. “O Brasil
é o país da tolerância e podemos nos orgulhar
disso”, comemora o sheik Ali Abdune.
Comunidade
nega imagem de fanatismo
Quem
trabalhar no sétimo dia – o dia santo –
deve morrer. Aquele que blasfemar contra o nome de Deus será
morto, por apedrejamento, por toda a congregação.
Escravos e escravas podem ser comprados de nações
vizinhas. Se um homem possuir a mulher e a mãe dela,
todos serão queimados para que não haja maldade
no meio da comunidade. Essas diretrizes figuram, sim, num
livro sagrado – mas não é o Alcorão,
como poderiam pensar aqueles que imediatamente associam a
religião islâmica a palavras como radicalismo
e fundamentalismo.
São
ordens expressas em livros do Antigo Testamento, como Levítico
e Êxodo. Ao lado de Gênesis, Deuteronômio
e Números, eles fazem parte do Pentateuco, o conjunto
de cinco textos que, segundo a tradição judaico-cristã,
teriam sido escritos por Moisés. Eles explicitam a
chamada lei mosaica e constituem parte fundamental da Torá,
o principal livro do judaísmo, integrando conseqüentemente
a Bíblia cristã. Embora no Censo 2000, do IBGE,
cerca de 150 milhões de brasileiros tenham se declarado
cristãos (124 milhões católicos e 26
milhões evangélicos), representando maioria
esmagadora entre quase 170 milhões de pesquisados,
não se tem notícia de que pessoas tenham sido
apedrejadas ou queimadas recentemente no País em cumprimento
a tais preceitos.
Esse
tipo de comparação ajuda a desfazer mitos e
pode estimular um interesse maior em conhecer uma religião
que freqüentemente aparece na mídia ocidental
associada a imagens de guerra e autoflagelação.
“Se algumas pessoas tiram um texto isolado para colocar
alguma visão diferente, isso acontece em todas as religiões”,
diz o sheik Ali Abdune, referindo-se aos grupos que fazem
interpretações literais ou particulares de determinadas
passagens. “Entre 1,3 bilhão de muçulmanos
no mundo podem existir aqueles que vão dizer que tal
palavra significa outra coisa, mesmo que você diga o
contrário”, argumenta.
Hora
de oração – Para o sheik, não se
pode julgar uma religião e todo o seu conjunto de seguidores
pelo comportamento de alguns grupos. “Nós não
julgamos a religião cristã pelas atitudes de
Hitler na Alemanha nem os americanos pelas bombas atômicas.
Nós não falamos que todos os americanos são
terroristas nem que a religião cristã permitiu
isso a eles”, compara. “De acordo com o Alcorão,
a única guerra justa é a de autodefesa”,
escreve a pesquisadora Karen Armstrong. “Se uma guerra
for imposta contra mim, islamicamente eu sou obrigado a me
defender”, confirma o sheik Ali. “Dentro do meu
país eu me defendo. Agora, o Islã não
permite que um grupo ataque fora de seu país. Se eu
sair e atacar outras pessoas, isso é terrorismo e não
será aceito.”
Islã
significa, na visão muçulmana, “submissão
total e voluntária à vontade do Deus único”.
A palavra deriva de salam, que pode ser traduzida por “paz”
e é “irmã” de shalom, o conceito
judaico-cristão que também expressa o desejo
de bem-estar integral – saúde, paz, harmonia
no trabalho e na família etc.
De
fato, o ambiente visitado pela reportagem do Jornal da USP
numa sexta-feira – o dia santo para os muçulmanos
– em nada lembra uma reunião de fanáticos
dispostos a morrer por uma causa. A reportagem acompanhou
a hora de orações do dia 10 de outubro na Mesquita
Abu Bakr Assidik, em São Bernardo do Campo. Logo na
chegada, chama a atenção o grande número
de jovens e crianças. Animados grupos se formam, nos
quais a maioria das conversas é em árabe. Às
13 horas o ritual começa. Apenas
os homens pisam o tapete na parte central do templo, não
sem antes ter tirado os sapatos. Às mulheres e crianças
menores é reservado um espaço mais ao fundo
e separado dos homens por uma espécie de biombo em
treliça, no qual elas participam da celebração
executando os mesmos gestos e orações.
Após
um canto entoado em árabe por um adolescente, vem a
palavra de um dos sheiks – em árabe. Os principais
tópicos de sua fala são traduzidos em português
por outro sheik. Logo após vem o momento das orações,
em que se executam os movimentos e gestos característicos
de ajoelhar e levantar como resposta aos salat (rezas) do
sheik. Cerca de 250 pessoas participaram da celebração
nesse dia, entre elas o prefeito de São Bernardo do
Campo, convidado para um almoço de confraternização.
“É uma comunidade grande, importante, unida e
que trabalha pelos carentes independentemente da filiação
religiosa”, diz William Dib (PSB).
Para
quem estranha o papel da mulher e acredita que a elas é
reservada uma posição de submissão, o
depoimento da professora Rosângela França apresenta
outra idéia. Ex-católica praticante, ela diz
que a noção de desrespeito à mulher é
fruto de desinformação. “Não vejo
nada de repressão e de submissão. A mulher que
tem um bom conceito do que é ser valorizada percebe
isso na religião islâmica”, afirma. O marido
não é muçulmano, mas isso também
não traz nenhum problema, diz Rosângela, que
trabalha e vai a todos os lugares usando o tradicional lenço
na cabeça. “A religião islâmica
é límpida, você questiona e tem a resposta
satisfatória. Na igreja, o padre só falava que
as coisas eram mistério”, compara.
Para
representantes de outras religiões, a nova tradução
do Alcorão é bem-vinda. “Sem dúvida,
o diálogo inter-religioso sai ganhando com essa publicação”,
pensa o professor Fernando Altemeyer Junior, do Departamento
de Teologia e Ciências da Religião da PUC de
São Paulo. “Os recentes eventos em Nova York
e os conflitos mundiais promovidos pelos Estados Unidos, destruindo
o Afeganistão e o Iraque, ampliaram o horizonte desse
colóquio e a necessidade de possuirmos informações
de fonte segura e traduções dos originais do
texto sagrado do mundo muçulmano.” Para o pastor
Rolf Schünemann, vice-presidente da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil, “assim como
o cristianismo não pode ser medido unicamente pelas
inquisições e guerras ocorridas em seu nome,
o Islã não pode ser avaliado apenas pelas versões
ocidentais que giram em torno da guerra santa e coisas do
gênero”. O pastor luterano acredita que a questão
do Oriente Médio “passa por um posicionamento
crítico por parte das igrejas frente à via bélica
adotada como mecanismo para a superação dos
conflitos”. Também é legítima a
aspiração do povo palestino por um espaço
para a sua permanência, defende. “Jerusalém
deve ser reconhecida como cidade multirreligiosa, referência
para judeus, cristãos e muçulmanos”, completa.
O
presidente do Rabinato da Congregação Israelita
Paulista, rabino
Henry Sobel, também comemorou a iniciativa do professor
Nasr e equipe. Por telefone, ele disse ao Jornal da USP: "Espero
que essa nova tradução, baseada no original
em árabe, contribua para uma melhor compreensão
do islamismo. No mundo de hoje, ter uma tradução
fiel do Alcorão, que não leve a deturpações
radicais, só pode ser benéfico para a sociedade".
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