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No ocaso de Três Marias, o rio São Francisco exibe a serenidade das águas ali represadas. Não muito longe, na Serra da Canastra, no Chapadão da Zagaia, nasce a bacia hidrográfica do coração do Brasil. O Rio da Unidade Nacional, título que recebe pelo serviço histórico e cultural prestado, sai de Minas Gerais, gera afluentes vigorosos como o Rio das Velhas e o Paracatu ainda no Estado das nascentes; outros menores como o Ipanema e o Moxotó expandem a bacia em Alagoas e Pernambuco. O rumo norte se desenha na Bahia, mas depois, teimoso, se volta para o leste onde se entrega às águas salgadas do mar Atlântico, entre Sergipe e Alagoas

 

Já me chamaram “rio sem história”, depois reconheceram que sou importante na unidade e na integração nacional. Coisas da civilização moderna, porque desde tempos não registrados, sou o caminho das águas para os andarilhos de terras de Santa Cruz. Ficaram para sempre aqui, no meu primeiro trecho navegável, as marcas dos índios que habitaram nas minhas margens: Pirapora, de origem tupi, conjuga pira (peixe) e poré (salto). A cachoeira onde o peixe salta. Isso me faz lembrar guerras antigas. Os índios cariris, aqui abrigados das lutas na costa atlântica, atacaram os bandeirantes em 1687. A bandeira de Fernão Dias Paes Leme desceu o Rio das Velhas e, na batalha que se travou na altura das cachoeiras de Pirapora, os nativos venceram os invasores.

Do tempo das capitanias, das sesmarias, das entradas e bandeiras, do século XVI ao século XVIII, o grande sertão em que corro sofreu embates de que sou testemunha. Que seria dos exploradores do interior do continente sem os leitos dos rios? Quando, no século XVIII, trilhas e picadas abrem caminhos para o ciclo do gado e o ciclo do ouro, muito servi aos sertanistas que percorriam o Brasil. Agradeço à imaginação poética dos historiadores que me respeitam e escrevem: “(...) nos primeiros séculos do descobrimento do Brasil, os principais componentes do nosso Grande Sertão: branco, negro, índio, terra, ouro e gado. E, abraçando a todos, o rio São Francisco. Imponente, o grande rio fazia rolar as águas, ora cristalinas, ora turvas, às vezes serenas, às vezes intrépidas” (Pirapora, um porto na história de Minas).

Será que minha grandeza de rio e minha generosidade em peixes estão ameaçadas no século XXI? Quem chega a Pirapora percebe, de repente, a paz do leito, o ímpeto das águas e das cachoeiras cessa. Convido então o visitante a navegar. Mas os barcos ou suas carcaças estão à margem, abandonados à ferrugem. De fato, só um resiste, o Benjamin Guimarães, de heróica memória. Sinto falta dos turistas que vinham afagar meu leito. Tomara que no próximo ano eles voltem, deslumbrados, jovens, crianças, gentes de todas as idades, apaixonadas pelo Velho, sô. Os 50 mil habitantes de Pirapora, mais as gentes de Buritizeiro, na outra margem, ligados pela velha ponte Marechal Hermes que me atravessa (morro de susto quando os carros miram os trilhos e rangem as madeiras), lutam para manter a minha e a vida deles.

Está certo que na primeira metade do século XIX eu tinha a companhia de umas setenta almas que moravam em quinze casinhas. Na segunda metade, 150 pessoas construíram mais 30, 35 habitações. Como cresceu esse Brasil no século XX. O município, criado em 1911, não respeitou a origem indígena: esquecera que aqui o peixe salta, e passou a se chamar São Gonçalo das Tabocas. Invencionices de políticos. Foi só em 1923 que retomaram o nome original da cidade, Pirapora. Ainda bem que corrigiram. Não dá para imaginar a história antes do século XVI, em que o território era habitado no litoral e no interior por alguns milhões de índios, meus ancestrais navegantes. Mas no século XX, os brasileiros se multiplicam e capricham na ocupação do presente e na construção do futuro. Você conhece dona Maria Eugênia? Se encontrar com ela, ouça só: aos 75 anos, firme e alegre, mulher de forte presença como muitas que você vai encontrar no interior de Minas, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, enfim, nessas terras longe das águas atlânticas, conta os vinte e três filhos, nove, infelizmente, já morreram, mas aí estão onze mulheres e três homens para contar a história.

São 632 quilômetros quadrados, duas vezes o Estado do Maranhão, de águas generosas, hoje mais do que nunca cobiçadas pela civilização e pelos habitantes do semi-árido. O viajante que chega a Pirapora, no norte de Minas, se reencontra com a saga da posse do sertão recôndito, em meio a cerrado, matas e terras quase desérticas. Ali, onde o Velho Chico oferece seu leito à navegação, o abandono do sistema das hidrovias e das ferrovias está à vista: o último barco movido a lenha, o Benjamin Guimarães, e a ponte Marechal Hermes resistem à erosão, graças à consciência e paixão de Pirapora

Dona Maria Eugênia, matriarca do povoamento contemporâneo do sertão, ainda criou mais 28 meninos, seus afilhados, que vieram da roça com a roupa do corpo, muitas vezes sem sapatos. A sua casa, irrigada pelas minhas águas, deu teto, comida e roupa lavada para todos os necessitados. O pai disciplinava o batalhão no tabefe. E não é preciso, sô? Na fazenda da família ou na casa em Pirapora, a filharada podia ir a festa ou o que fosse, mas estava em pé às 6 horas, na marra (ou melhor, no bofetão). E mais: todos precisavam estudar. Muito ouvi da sabedoria popular: ofício é benefício. Sonhei, como dona Eugênia, com a vida e o crescimento. Além de me usarem para transporte fluvial, tive esperança na companhia dos trilhos dos trens. Parecia que, no início do século XX, a coisa ia engrenar, seríamos companheiros do progresso e bem-estar dos que por aqui habitam. Mas tudo desandou em frustração.

Olhe ali o prédio da antiga Estação Ferroviária, construído em 1910, que fazia parte de uma rede para transportar mercadorias e passageiros. De 1979 a 1996, com a privatização da Rede Ferroviária Federal, a linda estaçãozinha ficou como ponto de apoio da Ferrovia Centro-Atlântica e em 1996 deu os últimos suspiros. No ano seguinte, veja só, o esforço heróico da comunidade e dos políticos da terra conseguiu salvar minha companheira. Havíamos casado – o porto e a estação – em comunhão de bens com o Brasil grande, e águas e transportes fartos. Hoje o visitante se alegra porque salvaram a estação e ela abriga os livros da Biblioteca e a Secretaria Municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer. Se tiver qualquer dificuldade para pesquisar minha história, é só procurar meu amigo, Marco Aurélio Oliveira de Almeida na Secretaria de Cultura. Ele tem raízes na terra e paixão pela viagem ao patrimônio de Pirapora.

 

 

 

 

 

Leito manso, vapor de guerra

Se dá licença, continuo com a palavra. Imagine você que, no meu leito manso, fui sulcado por um vapor que levava homens sertanejos para as lides da guerra. Esse barco que se avista aí aportado em Pirapora, o único pintadinho, quase pronto para voltar a navegar, sabia que na Segunda Guerra Mundial ele e eu servimos para deslocar tropas do exército brasileiro? Os soldados iam do coração do País para o litoral de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, faziam o patrulhamento da costa brasileira e alguns até embarcariam para a Itália, servir na Força Expedicionária. Quem diria, esse barco de nome Benjamin Guimarães, um verdadeiro cartão-postal de Pirapora.
Minha história remonta a tempos planetários, mas já podemos também cultivar um certo respeito pelo Velho Benjamin. Afinal ele foi construído em 1913, nos Estados Unidos, navegou em águas nobres (só porque são do Norte) do Mississippi, depois andou por aí na Bacia Amazônica. Na segunda metade da década de 20, a empresa Júlio Guimarães comprou o barco e montou no porto de Pirapora. O nome foi uma homenagem ao pai do proprietário. A aquisição fazia parte do grande sonho das minhas águas. Teria um futuro promissor para todos os tempos. Assim, na década de 40 foi incorporado à Cia. Indústria e Viação de Pirapora. Depois da guerra, nos anos 1950 foi se juntar com as outras embarcações ao Serviço de Navegação do São Francisco, mais tarde passou para a Franave e a Prefeitura.
Há 16 anos as glórias do Velho Benjamin ficaram à deriva. O último barco movido a lenha, dizem que o último no mundo, não sei se é exagero, virou patrimônio do município em 1997, mas a população ribeirinha da região quase perdeu as esperanças: o vapor seria restaurado? Foi uma longa luta, daquelas que, a gente sabe, acontecem com os vestígios históricos. Por fim, um convênio entre a Prefeitura Municipal e o Ministério do Turismo e Esporte, no valor de R$ 325 mil, garantiu a recuperação que começou em 2002 e agora está na última etapa. Veja só o entusiasmo dos que trabalham nos últimos retoques. O povo da terra, a administração de Pirapora e os especialistas de arquitetura e restauração que acompanharam o trabalho comungam o mesmo respeito pelo meu companheiro singrador. A esperança que todos curtimos: logo logo o barco estará no meu leito levando os turistas de Pirapora a municípios vizinhos.
A resistência dos velhos como eu e o Benjamin Guimarães não se dá ao luxo das tristezas, apesar das frustrações. Veja a meninada que cresce, vai para a escola, procura emprego no sertão. Pirapora se orgulha de suas oito indústrias, com destaque para o ferro silício, silício metálico e têxteis. A vida urbana segue o rumo das modernidades, a vida rural conta comigo para a irrigação. Os frutos da terra – mamão, uva, melão, pinha, goiaba –, além da produção em pequena escala de milho, feijão, arroz, mandioca, tomate, alface e banana, alimentam produtores e consumidores e minhas águas os alimentam. Bom demais. E quem pode esquecer a pesca?
Toda vez que a adversidade tolhe a alegria do interior da terra, o povo se prepara para espantá-la. Para isso inventaram as carrancas, para mandar embora os maus espíritos. Dizem que a arte da carranca surgiu no fim do século XIX e atingiu o apogeu no início do século passado. Pra que procurar o dia inaugural do mito ou a sua evolução? Os seres que navegaram ou nadaram em minhas águas sempre criaram alternativas ao medo, aos perigos, ao caos da história. O certo é que de repente alguns carranqueiros fizeram nome. De Pirapora e dos barcos onde era o lugar dessa arte, as carantonhas saíram para o mundo para espantar o mal. Me contaram que você pode encontrar, por exemplo, um porteiro de um edifício em São Paulo que, ao ganhar uma miniatura de carranca, sabe de imediato o que fazer, olha, vou pôr na frente da porta da entrada da minha casa, para proteger minha avó que fica lá o dia todo.
A Associação de Artesãos de Pirapora está aí para mostrar essa arte viva que fez fama. Você pode ver os artesãos esculpindo carrancas. Há os puristas que as julgam distantes das inspirações dos primeiros habitantes. Mas mais de cem carranqueiros, entre homens e mulheres, têm todo o direito de assinar a arte coletiva que nasceu da aventura humana no confronto com meu leito desconhecido, muitas vezes assustador. Nesses tempos ancestrais, eu era temido, usado, mas integrado à vida indígena. Mais tarde viriam as apropriações devidas ou indevidas. Não dialogaram mais comigo como as carrancas na proa dos barcos. Conversavam, desafiavam, arreganhavam os dentes para mim. Lá pelo fim do século XIX o divórcio se consumou. Os homens passaram a planejar o progresso e eu, ou melhor, a natureza toda virou objeto calculado de manipulação. Prova disso é que querem, desde essa época, mexer com o leito que Deus me deu.

 

 

 

 

 

E para onde vai o rio?

Isso é pergunta que se faça? Para onde vou? Meu destino está traçado e os cartógrafos já resolveram meu desenho no corpo da natureza brasileira. Sinceramente, sô, não entendo mais os homens desta terra. Me convenceram de que seria parceiro da ferrovia, me aportaram em Pirapora, começaram a construir uma linda ponte em 1912, chamaram de Marechal Hermes (que, por sinal, está aí funcionando em condições precárias) e planejaram a grande expansão de uma rede ferroviária como única alternativa para aproximar as regiões por mim banhadas. A intenção, claro, era aproveitar ao máximo as riquezas naturais, como, aliás, aconteceu nos dois séculos anteriores. Ainda no século XIX, no reinado do D. Pedro II, começaram a mexer com um projeto que resolvesse a seca no Nordeste. Queriam desde então mudar meu curso. Seria um desvio na divisa entre Pernambuco e Bahia. A tecnologia da época não dava conta dos obstáculos do caminho. Bem, agora, não falam de outra coisa – a transposição das minhas águas.

Como não me ouvem, porque estão de mim divorciadas as cabeças modernas, delego a voz, nessa questão, aos fóruns de direito e a todos que comigo quiserem praticar a escuta profunda da natureza das águas dentro e fora dos humanos. Me despeço com o desejo de que logo nos encontremos, em Três Marias, perto das nascentes, em Pirapora para passear a bordo do Benjamin ou em qualquer outra paragem do velho traçado. Muito obrigado pela atenção.

Velho Chico

P.S. Atendendo ao pedido do Velho Chico, agradecemos sua inspiração e caímos no cenário da realidade contemporânea. Nos noticiários nacionais, nas infovias que levam ao mundo pela Internet informações guardadas nos portais (o do São Francisco é portentoso), verifica-se que a transposição do rio ocupa o imaginário, a política, a pesquisa científica e os saberes locais com a força da polêmica não resolvida. Se a vontade política que se expressa no Executivo, no Legislativo e no Judiciário não chega a uma solução unânime, que dizer dos diagnósticos especializados como os da Fundação Joaquim Nabuco? Nos primeiros anos de 1990, em um seminário sobre o semi-árido organizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e registrado no segundo volume da coleção Novo Pacto da Ciência, Do Hemisfério Sol, ECA/USP, 1992), a pesquisa interdisciplinar integrou à discussão técnico-científica o saber local das populações afetadas. Dessa forma, enquanto a polêmica aborda, no âmbito político, aspectos parciais da realidade física e social do rio São Francisco, os estudos atualizados nas universidades e em fundações como a Joaquim Nabuco buscam a compreensão da relação existente entre solo, água, plantas e sua importância para a população.

Cuidadosos com a integração perdida no uso predatório – ou às vezes bem-intencionado – da Bacia do São Francisco, o que sobressai é o alerta às limitações do rio. Para o atendimento à navegação, a geração de energia, irrigação e abastecimento das populações carentes do semi-árido, torna-se emergente, segundo os diagnósticos, um planejamento hidráulico de forma a calcular as subtrações volumétricas pretendidas. João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, alerta para outro dado: no rio São Francisco não existe excesso de água. Muito pelo contrário. Em seus estudos, lança o olhar para o século XXI: “É muito provável que a água passe a ser tão preciosa para as populações do planeta como são o ouro e o petróleo”. O gerenciamento dos recursos hídricos, de competência constitucional da União, envolve regulações altamente complexas que fundamentam a Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei 9433 de 1997), mas persiste a distância a ser percorrida entre a letra da lei e a implementação de um projeto de transposição de águas. Distância mais arriscada do que os 2.660 quilômetros do Velho Chico.

Historiadores como Brenno Álvares da Silva, Domingos Diniz e Ivan Passos Bandeira da Mota, ao pesquisarem Pirapora, um porto na história de Minas, publicação disponível na biblioteca pública da cidade, contribuem para o entendimento da ocupação ora sangrenta e predatória, ora apaziguada e progressista do coração do Brasil. Os artífices do futuro encontram nos ecos seculares estímulos e advertências. Em agosto de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a primeira grande obra do plano de investimentos do governo de 2004 a 2007: o projeto de transposição das águas do rio São Francisco para irrigar zonas semi-áridas do Nordeste. No discurso, que considerou insuficiente o investimento de US$ 5,5 bilhões, Lula lembrou de D. Pedro II e o primeiro projeto que se frustrou. Talvez por falta de recursos, na avaliação do presidente. O Velho Chico espera (pacientemente?) o que com ele acontecerá.

 




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