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O Poder Judiciário existe nas sociedades para que todas as pessoas tenham os seus direitos reconhecidos e não precisem brigar, até mesmo fisicamente, com outras pessoas, com empresas ou com o Estado, nem sejam tentadas a fazer justiça com as próprias mãos. Este é um dos papéis do Judiciário, que também contribui para a paz social, ao dizer quem tem razão numa disputa, e protege os direitos dos cidadãos quando ameaçados por quem quer que seja. Mas a Justiça brasileira está falhando em alguns pontos no cumprimento de sua missão constitucional, principalmente em razão da lentidão dos trabalhos; as decisões saem muito tempo depois de iniciada a causa, o que muitas vezes acarreta prejuízos até irreversíveis e perda de direitos. Inúmeras são as explicações para a lentidão e, se é para fazer a reforma do Judiciário, que se ataquem as causas da morosidade, sendo uma delas o excesso de recursos ao Supremo Tribunal Federal, sobrecarregando-o demasiadamente. E a principal responsável por isso é a administração pública, que se recusa a reconhecer o direito das pessoas e de instituições. A lição é da professora Odete Medauar, titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP, que também dá aulas de Direito Ambiental e leciona no curso de pós-graduação.

O projeto de reforma do Judiciário, que se encontra no Senado depois de aprovado na Câmara dos Deputados, propõe, entre os pontos mais relevantes, a criação de um órgão de controle externo, a federalização dos crimes contra os direitos humanos e a autonomia da defensoria pública. A relatora do projeto na Câmara, deputada Zulaiê Cobra (PSDB/SP), manifestou-se contrariamente à súmula vinculante, pela qual o juiz de primeira instância é obrigado a seguir as decisões de tribunais superiores, e defendeu uma súmula impeditiva de recursos, isto é, não haverá recurso se a decisão do juiz de primeira instância estiver de acordo com a súmula do tribunal superior. O governo federal é contrário a essa inovação.

O Judiciário – Odete Medauar acredita que o Judiciário brasileiro, embora seja um dos mais lentos do mundo, acerta na maior parte das decisões. As falhas eventuais explicam-se pelo fato de ser composto, como os demais poderes, de homens, portanto sujeitos a erro. Mas as falhas devem ser corrigidas.

 

Essencialmente, compõem o Judiciário os servidores desse poder, que são os magistrados. Mas outras categorias profissionais contribuem para os serviços da Justiça: os advogados (eles não pertencem ao Judiciário) e o Ministério Público, que pela Constituição tem o dever de defender os interesses da sociedade em geral, mas também do meio ambiente, do patrimônio público e histórico. Outras leis dão-lhe mais atribuições, sempre na defesa da sociedade. O Ministério Público atua junto ao Poder Judiciário da mesma forma que os advogados na defesa dos direitos de seus clientes. A presença do advogado e do MP é fundamental. Na definição da professora da USP, os juízes, o Ministério Público e os advogados constituem os elementos mais relevantes da realização da justiça, mas só os magistrados integram o Judiciário.

Não existe hierarquia, no sentido de um juiz mandar no outro, quer se trate de magistrados da mesma categoria funcional, quer de um ministro do Supremo em relação a um juiz de qualquer comarca do interior do País. Não há hierarquia para julgar casos, porque a Constituição garante independência ao magistrado, que não pode sofrer pressões de quem quer que seja na hora de decidir uma causa. No aspecto administrativo é diferente. Ao presidente de um poder cabe fazer a gestão administrativa, designando juízes para trabalhar nesta ou naquela vara, assinando férias ou tomando outras providências burocráticas. Assim, o presidente de um Tribunal de Alçada cuida dos assuntos administrativos nessa instância, além de atuar também na condição de magistrado.

O Judiciário brasileiro é dividido em justiça federal e justiça estadual (não existe justiça municipal). No âmbito federal situam-se a própria justiça federal (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), a do Trabalho e a Eleitoral. Cada Estado tem sua justiça e seus juízes – os juízes de primeiro grau e os tribunais (de Alçada e de Justiça). A Constituição determina que tipo de assunto compete a cada modalidade de justiça. Nos Estados, isso é regulado em primeiro lugar pela Constituição estadual, depois pela Lei de Organização Judiciária. Os advogados e os integrantes do Ministério Público conhecem os sistemas de distribuição estabelecidos em cada setor da Justiça e, de acordo com ele, entram com as ações no ramo que tem atribuição para decidir aqueles casos. Sabem, por exemplo, que todas as causas em que a União é parte, seja porque move a ação ou porque é acionada, a competência é da justiça federal.

Odete: reflexões sobre o Judiciário

Qualquer juiz de qualquer lugar do País tem a possibilidade de considerar alguma matéria inconstitucional, mas especificamente para caso determinado; só ao Supremo cabe decidir se alguma matéria de lei ou alguma norma editada é inconstitucional. Isso se chama ação direta de inconstitucionalidade e a decisão vale para o País. Volta e meia, têm-se notícias de que leilões de empresas estatais são suspensos à última hora por força de liminar de um juiz, e retomados depois de cassada a liminar. Segundo Odete, aí é uma questão de atribuição da justiça federal, porque interesses da União estão envolvidos. Como as estatais costumam ter ramificação em vários Estados e o edital de venda vale para todo o País, é possível que qualquer juiz acolha recurso de supostos prejudicados, mas há mecanismos no Direito Processual que resultam na cassação da liminar pelo Supremo. O governo tem a possibilidade, no caso de liminar dada contra ele, de criar tribunal competente para conhecer o recurso e pedir a cassação da liminar. Não se trata de hierarquia no Judiciário; apenas a decisão de um tribunal tem valor mais forte do que a decisão de um juiz de primeiro grau. É o que também acontece com qualquer pessoa que teve uma decisão contra ela, que pode recorrer a instância superior.

A reforma – O Supremo vive sobrecarregado, mas nem todas as ações podem chegar até ele. Mecanismos do Direito Processual o impedem. Assim, assuntos que não têm base constitucional, embora no âmbito da legislação federal, vão para o Superior Tribunal de Justiça, e ações de leis estaduais que não têm respaldo na Constituição ficam na esfera dos Estados. Uma disputa familiar pode chegar até o Supremo se envolver matéria constitucional, devendo passar por um tratamento prévio. As regras para o funcionamento do Judiciário são complexas e de difícil compreensão para quem não tem estudo mais profundo do direito. Está aí, na opinião de Odete Medauar, um dos itens importantes da reforma do Judiciário: é preciso mudar a legislação processual. “Para mim, não terá muito efeito uma reforma do Judiciário se não forem reformados os Códigos de Processo”, diz a professora. Na prática, isso significa simplificar o sistema de recursos. As pessoas têm o direito de recorrer quando não se satisfazem com uma decisão de juiz de primeiro grau. Mas no Brasil ocorre excesso de recursos. Ninguém fica contente com uma decisão desfavorável, mas é necessário haver limites à possibilidade de recorrer, senão a ação acaba nunca.

O problema se agrava muito, observa Odete, quando a questão envolve o poder público, que recorre de tudo e em geral se nega a reconhecer o direito, quer seja do cidadão, do servidor ou de pessoa jurídica. As ações em que está presente a administração pública representam quase 80% dos casos. Elas sobrecarregam extremamente o Judiciário em todas as esferas. Odete: “Este é o ponto em que uma reforma sem reformar a mentalidade de quem governa não produzirá muito efeito. Quem está no Executivo tem que reconhecer o direito das pessoas. O que está na Constituição e nas leis como direito das pessoas não é só para o Judiciário reconhecer e o interessado ser obrigado a disputar em juízo”. A administração deveria ser a primeira a reconhecer os direitos de lei e cumpri-los.

A professora menciona o “espetáculo dos idosos” que têm direito à revisão de suas aposentadorias e pensões, mas estão aí, madrugando em filas intermináveis nos juizados federais para pleitear um benefício assegurado por lei. Um sacrifício e uma sobrecarga no Judiciário que o governo bem poderia dispensar, fazendo a revisão automaticamente. E um desrespeito com pessoas que trabalharam para o País durante décadas e agora chegam a pagar para garantir lugar na fila. É certo que há casos duvidosos em que a administração é obrigada a defender a fazenda pública. Contudo, nessa situação não se encaixam os numerosos casos em que os tribunais já decidiram várias vezes em favor dos cidadãos e mesmo assim o poder público insiste em recorrer, às vezes até para passar ao próximo governante o ônus de pagar a dívida. Há situações em que não há dúvida alguma sobre o direito à indenização. É o caso, por exemplo, de uma pessoa atropelada por um veículo oficial ou por qualquer máquina da administração pública, ou de uma pessoa que venceu em todas as instâncias da justiça uma ação de reparação. São os precatórios, cujo pagamento não depende do Judiciário, mas do Estado. É ele que deve pagar as ações que as pessoas ganham contra a fazenda pública, sejam pleitos de servidores, diferenças de vencimentos, gratificações, revisões de reajustes, desapropriações, indenizações ou outros tipos de danos causados pela má atuação da administração. Não é justo que as pessoas sejam obrigadas a esperar dez ou 20 anos para receber o que a Constituição lhes garante de imediato. Até existem contra o poder público recalcitrante algumas medidas, como a decretação de intervenção federal nos Estados ou do Estado nos municípios, mas se trata de ações que envolvem questões políticas e geralmente não dão em nada. Drásticas demais, acabam não tendo eficácia. Coisa parecida se dá com as multas impostas por juízes a sindicatos que promovem greves consideradas ilegais e que são notificados de que, se não cessarem a paralisação, deverão pagar somas elevadas por cada dia parado. Nesse caso, o Ministério Público pode entrar com ação contra o sindicato para cobrar as multas em juízo. Se não entrar, ninguém paga nada.

O controle externo – A propósito das denúncias de corrupção no Judiciário, que ocupam as páginas dos jornais do País, a professora da Faculdade de Direito recomenda que não se generalize, lembrando que em todas as profissões e instituições existe o lado de desvio. “Não há instituições feitas de anjos e de deuses. São seres humanos, que erram.” Ela entende que, no caso do Judiciário, faz-se muito alarde porque as acusações atingem juízes, tradicionalmente considerados corretos e até temidos. Num universo de dez mil magistrados – o País tem um pouco mais que isso –, dez ou 15 acusados de má conduta é um número proporcionalmente pequeno.

Pesquisas recentes indicam que o Judiciário tem baixa credibilidade pública, embora acima da dos políticos. Odete Medauar acredita que as pesquisas são feitas em função de fatos que ocupam a imprensa naquele momento. Se tivessem sido feitas, por exemplo, nos dias em que membros da Igreja eram acusados de crimes sexuais, os resultados seriam desfavoráveis àquela instituição (com a maior credibilidade no Brasil atualmente). No caso da operação Anaconda, da Polícia Federal, o grampo foi feito com autorização da justiça, que deferiu a escuta em relação aos seus próprios integrantes. Dos três juízes mais diretamente acusados, só um está preso; contra os demais existem apenas indícios, não há condenação. A prudência e a Constituição mandam considerar toda pessoa inocente antes de comprovada sua falta e antes do julgamento final. A professora concorda com o presidente do Supremo, quando afirma que sempre se espera do juiz uma conduta e uma atuação perfeitas, e quando ele sai do caminho reto há grita maior do que se o envolvido fosse de outro poder da República.

Segundo Odete, corrupção existe também no Executivo, mas passa sem alarde e os casos são vistos como “normais”. Esteja onde estiver, lembra a professora, a corrupção precisa ser combatida e os responsáveis, punidos.

Propõe-se na reforma do Judiciário a criação do controle externo desse poder. Odete adianta que não é totalmente contra um órgão com essa missão, mas recomenda prudência, porque, no trabalho de julgar, os juízes são independentes, conforme lhes garante a Constituição. Se assim não fosse, sofreriam pressões dos outros poderes, comprometendo a imparcialidade. O controle externo só poderá se ocupar com as questões administrativas do Judiciário. Por exemplo, verificar se há casos de nepotismo (emprego de parentes), se há demora na publicação de praxe, se as licitações são feitas corretamente. É complicado reconhecer os limites dos fiscalizadores, que não podem interferir na ação de julgar dos juízes, nem invadir um terreno cercado de garantias pela Constituição Federal.

Nem o juiz corregedor pode interferir no julgamento do processo. Tem, sim, a faculdade de verificar o andamento do processo, se está parado, se há falhas na vara ou no cartório. Às vezes, os tribunais determinam correição numa vara, que fica fechada para o público enquanto se faz o levantamento de todos os processos. Sempre, porém, no âmbito administrativo.

Outra questão diz respeito à composição do órgão fiscalizador que se quer criar. O próprio Judiciário propõe que seja integrado por magistrados, mas a professora considera interessante que a equipe tenha representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que já trabalham na área jurídica e possuem boa compreensão dos mecanismos da justiça. De preferência que sejam professores de direito. Odete descarta totalmente a hipótese de incluir no órgão fiscalizador políticos e parlamentares.

Mesmo assim, a professora da USP tem dúvidas sobre a eficácia do controle externo do Judiciário. “Podemos pensar em controle externo do Legislativo. Temos casos de parlamentares com 20 assessores trabalhando no seu gabinete ganhando muito dinheiro. Recentemente, se aumentou para R$ 35 mil a verba de gabinete dos deputados federais. E eles trabalham dois dias ou dois dias e meio por semana. Por que a imprensa não noticia isso? Por que não se faz alarde? Por que não existe controle externo no Legislativo?”

O Legislativo é o poder que representa mais diretamente o povo e como tal deve fazer o controle dos outros poderes. Um deles é constituir CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) para investigar fatos que envolvam, ou não, os poderes. Mas não tem o poder de julgar ninguém; deve encaminhar as denúncias ao Judiciário. Este nem sempre tem pleno poder ou condições de investigar; quem o faz é a polícia ou o Ministério Público. O juiz tem o poder de instrução do processo, ouvir testemunhas ou determinar que compareçam, sob escolta se for necessário.

A lentidão do Judiciário é o problema maior, segundo Odete. Porque pode levar a uma espécie de denegação da justiça, a não dar a justiça que o cidadão está pedindo. Direitos se perdem ou se enfraquecem. Geralmente a parte mais fraca é a prejudicada, porque não tem condições econômicas de ficar recorrendo de uma instância a outra. “Isso é que tem que ser resolvido”, insiste a professora, lembrando que a lentidão nem sempre decorre do trabalho do juiz. Se há um recurso previsto na lei ou no regimento interno de um tribunal, o magistrado não tem como não aceitar. Por isso é que um dos itens importantes da reforma é a mudança nos Códigos de Processos.

A professora Odete Medauar assume postura professoral para concluir, solenemente, que em todos os países o Judiciário é um dos pilares do estado de direito. É a garantia dos direitos dos cidadãos e contribui para a paz social. A sociedade lhe deve respeito, sabendo que, se existirem desvios, eles são humanos e devem ser corrigidos.

 

 

A idade da razão

A professora Odete Medauar é favorável à redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos. E a razão é a mesma da apresentada pela maior parte da população quando consultada a respeito: “A Constituição reduziu a idade para votar e eu não considero possível uma dissociação nisso. É tão importante votar para presidente da República como respeitar a vida do outro”. O Código Penal brasileiro é de 1941 e o mundo não é mais o mesmo daquela época. Trinta ou 40 anos atrás, o adolescente não tinha a informação nem o nível de desenvolvimento mental que tem hoje. Aos 16 anos tem noção correta do que é a vida dos outros.

Embora a favor da redução da idade para efeito de responsabilização penal, a professora da Faculdade de Direito da USP entende que todo adolescente infrator tem que ser submetido a tratamento, se for considerado recuperável. Mas, enquanto isso, não pode ficar na rua. Nas condições de hoje, porém, o tratamento adequado não existe, nem nas prisões nem nas Febems.

E a ociosidade é uma escola do crime.Tudo isso exige recursos e o dinheiro existe, segundo Odete, mas é mal aplicado. Existe para viagens de integrantes dos governos, para aquisição de automóveis oficiais, para compra de móveis e até de lixeiras de luxo para os gabinetes. “Para tirar o menor da rua não existe?”, pergunta, insistindo em que alguma coisa tem que ser feita contra a criminalidade crescente no País.

 

 




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