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Primo Carbonari, hoje com 84 anos: o cinegrafista de uma cidade do passado

São Paulo, anos 30. A Paulicéia, outrora a menina dos olhos de um sem-número de fotógrafos, transformava-se no palco de representações da elite paulistana na mira das lentes de alguns cinegrafistas. As pomposas edificações construídas segundo o padrão arquitetônico europeu constituíam o cenário perfeito para que desfilassem as figuras do alto escalão da metrópole. O glamour dos eventos promovidos por políticos, industriais e fazendeiros materializava-se nas imagens projetadas nas telas dos cinemas paulistas perante os olhos dessa própria elite. Era, no entanto, a única possibilidade que tinham cinegrafistas amadores, aspirantes a cineastas, de produzir filmes naquele período.

Foi assim que Primo Carbonari viu seu nome ascender no meio cinematográfico. Sua trajetória como cinegrafista começou em 1929, na Companhia Americana de Filmes, e por décadas ele se ocupou em retratar o que o crítico Paulo Emílio Salles Gomes chamou de o “ritual do poder”. Fez alguns longas-metragens, mas, antes disso, nos anos 50, abriu a sua própria produtora e passou a produzir o cinejornal Amplavisão, que constitui um rico material iconográfico sobre a cidade de São Paulo de meados do século.

Assim como boa parte da produção nacional, mais da metade de suas películas se perdeu. Restam hoje 8 mil latas de filmes em 35 milímetros, das 24 mil iniciais. Tendo conhecimento do péssimo estado de conservação desse material e, embalados pelos festejos dos 450 anos da capital paulista, em janeiro do próximo ano, o crítico Jean-Claude Bernardet e o cineasta Eugenio Puppo, com o apoio de Regina Carbonari, única filha do cineasta, lançaram-se na difícil tarefa de não só recuperar o acervo de películas daquele que foi um dos principais cinegrafistas de São Paulo, mas de repensar a sua obra através da produção de um longa-metragem de 90 minutos.

O projeto Ampla Visão de São Paulo existe há dois anos, é amparado pelas leis de incentivo à cultura – Rouanet e Audiovisual – e está inscrito na Comissão de Valores Imobiliários (CVM). Ele conta com três etapas fundamentais que serão iniciadas logo após a captação de recursos. A primeira é a reforma da sala do acervo, no bairro da Casa Verde, onde ficarão os estojos de polietileno com as películas, de modo a adequar a sua infra-estrutura aos padrões de conservação desse tipo de material. Em seguida, os cineastas pretendem limpar todos os filmes e assisti-los. Alguns rolos serão digitalizados no estúdio Amplavisão e, depois de feita uma segunda verificação e seleção, parte desse material será telecinado pelos Estúdios Mega, co-produtores de Cidade de Deus, Carandiru, Lisbela e o prisioneiro e também do longa homônimo do projeto. A partir daí terá início a segunda etapa, que nada mais é do que a elaboração de um banco de dados a partir da catalogação dos filmes. “Ainda que seja uma catalogação inicial, o importante é que ela possa fornecer referências cronológicas e temáticas sobre personalidades e logradouros de São Paulo. Esse banco de dados deve se tornar acessível não só para os que estão envolvidos com cinema, mas para os que estudam a cidade, tendo em vista a grande quantidade de material e o tempo durante o qual foi captado”, destaca Bernardet, que também é professor do curso de Cinema da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Bernardet e Puppo: projeto para comemorar 450 anos de São Paulo

A terceira etapa é a realização do documentário Ampla Visão de São Paulo, a ser roteirizado e dirigido pelo crítico, que já foi roteirista e co-roteirista de nove longas e autor de quatro, dentre eles São Paulo, sinfonia e cacofonia, considerado por Puppo uma “obra de referência e verdadeira fonte de inspiração para qualquer pessoa que tenha fascínio por material de arquivo”.

A proposta não é compilar pedaços de imagens de Carbonari a fim de tecer uma antologia sobre o cineasta e tampouco se valer dos episódios em ordem cronológica, mas promover, por meio do documentário, uma revisão crítica de sua obra. “A composição do filme será feita a partir da reutilização das imagens do cineasta numa perspectiva atual”, conta Bernardet. A idéia é que a São Paulo registrada pelas lentes de Carbonari seja reinterpretada de acordo com o ponto de vista de algumas pessoas – desde personalidades até anônimos, como moradores de rua –, mas sem utilizar o formato da entrevista, abominado por ambos os cineastas. “Isso cria um material verbal que poderá ser usado no filme não necessariamente em sincronia com a imagem da pessoa”, explica o crítico. É possível que eles também selecionem determinados logradouros da cidade e estabeleçam um contraponto com imagens atuais gravadas do mesmo ângulo de Carbonari.

Cinejornais – Outra idéia, segundo Puppo, é trabalhar com diversos olhares em diversas épocas e tornar isso uma linguagem. “Pensamos em subverter bastante o material, mas respeitando-o sem desvirtuá-lo”, diz. Bernardet acrescenta: “Não pretendemos seguir uma cronologia e tampouco sermos descritivos a fim de reconstituir os eventos. No entanto, é possível contrapor seis tomadas de posse de governadores distintos durante 40 anos, de forma a embaralhar os tempos. Há diálogos entre imagens que podem ocorrer, mas dependem muito de uma boa assimilação do material”.

A inclusão de datas no filme ainda está em discussão, mas é um recurso para que o espectador não se perca em meio a esse emaranhado de tempos sobrepostos. Aqueles que sequer ouviram o nome de Carbonari terão a oportunidade de ver ao menos um fragmento de um de seus cinejornais. “Iremos conservar inclusive alguns letreiros para que as pessoas possam sentir como se construíam esses cinejornais, que nos anos 50 estavam em todas as salas de cinema da cidade”, diz o crítico. Ele pretende estabelecer um diálogo entre esses cinejornais, os documentários institucionais e alguns longas do cineasta, como A morte por 500 milhões. “Ainda não sabemos se existem outros materiais além destes, que nos possibilitem criar algumas linhas narrativas fragmentadas que manterão uma certa continuidade.”

Nos filmes institucionais de Carbonari, raros eram os que incluíam o pesado equipamento para a captação do som direto. A maioria conta com locuções feitas após as gravações. Os cineastas pretendem selecionar determinados trechos dessas falas para compor o documentário, no intuito de não só destacar o tipo de voz e a impostação, mas dar a idéia da postura ideológica sem que a frase se forme como numa locução tradicional. “Temos a idéia de utilizar também trechos musicais, mas isso num outro banho sonoro”, afirma o crítico. Para Puppo, “é ideal que, no momento em que começarmos a montagem do filme, haja uma pessoa da equipe trabalhando simultaneamente com a edição de som, porque existem algumas cenas da cidade em que esse som poderá ser recriado”.

Torcedores assistem ao jogo Santos versus Corinthians, em 1962, filmados por Carbonari

Com base nas 90 páginas de manuscritos que possuem e nas 15 horas de fitas assistidas, Puppo e o artista plástico Ricardo Carioba realizaram um trailler de nove minutos que sugere a diversidade do material e a linguagem a ser adotada no longa. Nesse trailler podem-se notar algumas intervenções gráficas que também estarão presentes no documentário e são o resultado do trabalho do artista plástico Leandro Lima. “É uma forma de tornar o material dinâmico do ponto de vista estético”, afirma o cineasta.

O filme Ampla Visão de São Paulo terá duas versões – uma de cerca de 50 minutos, para ser exibida ao ar livre, e outra de 90 minutos, que entrará em circuito comercial e também será exibida em módulos pela televisão. “Haverá dois filmes: um será mais musical, ainda que esteja longe de ser um videoclipe, e outro será mais denso, com mais tempo para que os espectadores possam refletir com tranqüilidade, pois numa projeção ao ar livre acaba-se perdendo uma série de matizes”, explica Puppo. A estréia está prevista para dezembro de 2004 em uma exibição no Vale do Anhangabaú. O objetivo de seus idealizadores é também realizar outras projeções em espaços abertos ao público na cidade de São Paulo, em lugares como o Parque do Ibirapuera, a periferia e centros de ensino, além de levar a película para outros Estados.

 

A posse do governador Adhemar de Barros em 1962, registrada pelas lentes de Carbonari

 

 

A estética elitista do
cinejornal
Amplavisão

Na década de 50 não houve quem não tivesse assistido a pelo menos uma edição do cinejornal Amplavisão. Durava cerca de dez minutos e era exibido antes do início da sessão na maioria dos cinemas que pertenciam ao circuito paulista. Para algumas pessoas, era um verdadeiro martírio, motivo para que o horário da sessão não fosse rigorosamente cumprido. “A sessão começa às 18 horas? Então podemos chegar às 18h10 porque antes tem o Carbonari. Era assim no meu tempo”, conta Bernardet. Para outros, que se colocavam na condição de voyeurs, aquela era oportunidade única de ver a intimidade da elite estampada nas telas, as roupas que as primeiras-damas estavam trajando, seus colares de pérolas e os penteados. Personalidades “retratadas acima de qualquer suspeita, que se mostravam imprescindíveis para a vida brasileira”, nas palavras do cineasta Eugenio Puppo. Políticos, na opinião do cineasta, transformavam-se em vedetes na frente das lentes de Carbonari. “A locução é sempre muito enfática no sentido de valorizar a pujança de São Paulo, as pessoas da sociedade, nossas autoridades, é um discurso totalmente elitista”, completa Bernardet.

“Existe uma espécie de auto-satisfação medíocre, que é um dos grandes temas da reflexão de Paulo Emílio sobre o cinema brasileiro”, afirma o crítico. Para ele, as imagens das grandes solenidades vistas hoje reafirmam o vazio dessas pessoas. “A filmagem do Primo Carbonari era a expressão dessa elite.” O que ele fez, na visão do crítico, foi a “crônica do ritual dos poderes, filmada do ponto de vista da elite, ou seja, ele tinha de produzir uma imagem favorável”.

Nos anos 20, era comum deparar-se com esse tipo de filmes institucionais, encomendados por personalidades que estavam em evidência. De todos os cinegrafistas desse período, merecem destaque Gilberto Rossi, que manteve o seu cinejornal por cerca de 20 anos, e Carbonari, considerado por Bernardet “o mais importante cinegrafista de São Paulo, por ter sido persistente e garantido a continuidade das suas produções ao longo de décadas”.

Carbonari conseguia condensar o maior número de assuntos possíveis em um cinejornal de apenas dez minutos. Eventos relacionados à política e ao esporte estavam sempre presentes. Imagens abertas e fechadas se alternavam no intuito de revelar ao espectador todos os que estiveram presentes em determinado evento. Mas, no que se refere à qualidade estética, as imagens de São Paulo de Carbonari estão longe de se equiparar, por exemplo, às de São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, produzido nos anos 60 e também ambientado na capital. Boa parte dos filmes realizados pelo cinegrafista apresenta problemas de enquadramento, fotografia e foco. Suas condições de filmagens eram bastante artesanais e buscavam, acima de tudo, mostrar o acontecimento por um viés mais jornalístico do que artístico, na opinião de Puppo. O cineasta também acredita que tais problemas estejam relacionados com o temperamento intempestivo de Carbonari. Mas, ainda assim, imagens de determinados logradouros de São Paulo, quando contrapostas com as atuais, sugerem uma cidade mais humana, onde a qualidade de vida era melhor. Um efeito ilusório, segundo Bernardet. “As imagens eram oportunistas. Não é verdade que nos anos 50 não havia pobreza e violência. Precisamos levar em conta que é uma São Paulo mais humana em função do ponto de vista”, destaca.

 

 

Jean-Claude Bernardet:
“Nos anos 30 ganhavam destaque a pintura, a literatura e a arquitetura, mas o cinema não era nada”

 

 

A dura tarefa de preservar a história

Um século se passou desde que o cinematógrafo adentrou o território brasileiro. No entanto, tal feito não foi suficiente para que emergisse uma cinematografia forte tal como ocorreu em países do Hemisfério Norte. O cinema no Brasil precisou superar muitos obstáculos, fruto do seu próprio subdesenvolvimento econômico, para que fosse considerado a expressão cultural de seu povo. E isso veio a ocorrer apenas na década de 50, quando foi criada a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. “Nos anos 30, ganhavam destaque em âmbito cultural a pintura, a literatura e a arquitetura, mas o cinema não era nada”, ressalta o crítico e professor da USP Jean-Claude Bernardet. Ele enfatiza que, mesmo antes de a companhia lançar-se na atividade, foi criado o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) porque “teatro era nobre, o cinema era uma atividade de pessoas incultas”. Hoje, na sua opinião, os cineastas são mais conscientes porque têm mais prestígio do que antes. “Um Glauber Rocha ou um Joaquim Pedro de Andrade são considerados grandes artistas, levam o mesmo título que um Guimarães Rosa. Isso há poucas décadas atrás era impensável, tanto que o Modernismo não fez nenhum contato com cineastas.”

Esse pouco caso que se fazia do cinema de ficção não incentivava a existência de uma cinemateca, que teve suas origens somente no início da década de 40 por iniciativa de intelectuais como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido. Mas, para que isso ocorresse, “houve uma mudança de mentalidade muito lenta”. Não bastasse o descrédito em que era tida a atividade cinematográfica, a preservação desse tipo de material era custosa e não dava visibilidade na época, o que se tornava um entrave para a obtenção de verbas, segundo Bernardet. “Uma das grandes lutas de Paulo Emílio foi sensibilizar a elite e os poderes públicos para o trabalho da memória cinematográfica.”

É certo que, antes dos anos 40, pouco ou nada se fez para preservar o material fílmico produzido no Brasil e muitas fitas se deterioraram. Isso quando não derreteram em meio aos tantos incêndios que houve na década de 1910 em São Paulo. Bernardet relembra também que o nitrato utilizado por determinadas películas ameaçava os outros filmes e que o próprio Paulo Emílio chegou a queimar filmes porque não havia mais condições de recuperação. “Essas latas se tornaram verdadeiras bombas e a Cinemateca, para preservar boa parte dos filmes, precisou destruir outros.”

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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