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A Febem, em São Paulo: apenas 10% dos jovens abaixo dos18 anos está na criminalidade, diz especialista

O debate sobre o que fazer com pessoas que cometem crimes passa por uma discussão moral, pois é baseada nos seus padrões morais que a sociedade condena ou preconiza formas de punição. A sociedade que precisa a toda hora controlar e punir é uma sociedade doente e, nesse sentido, a redução da idade para a maioridade penal seria uma confissão de derrota: como não sabemos educar os jovens, somente nos resta puni-los. E é tão mais fácil punir do que educar... As ponderações são do professor Yves de La Taille, coordenador de pesquisas sobre desenvolvimento moral no Instituto de Psicologia da USP, acerca do tema que ganhou destaque depois do assassinato dos adolescentes Liana Friedenbach e Felipe Silva Caffé, no início de novembro, em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo.

A redução da idade para a maioridade penal vem suscitando opiniões divergentes dentro das mais diversas instituições e camadas sociais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já se posicionou contra a medida, da mesma maneira que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Na Igreja Católica, que tende a emitir opiniões consensuais em casos assim, o cardeal de Aparecida do Norte, dom Aloísio Lorscheider, chegou a defender imputação de pena para menores de 18 anos de idade, enquanto o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) manifestou-se contrário a essa posição.

Segundo pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), realizada em 16 Estados, 89% dos brasileiros acreditam que a medida pode funcionar como ação mitigadora da violência. O pai de Liana, o advogado Ari Friedenbach, pretende colher 2 milhões de assinaturas para promover a realização de um plebiscito sobre a questão da maioridade penal. “Não acho que tem de haver limite de idade para uma pessoa pagar por crimes hediondos. É preciso parar com esse discurso de medidas socioeducativas. Não existe educação sem repressão. Não se pode dizer que todos os males da nação se devem à exclusão social”, disse Friedenbach ao Jornal da USP.

A obtenção de assinaturas planejada por Friedenbach poderá funcionar apenas como um instrumento político. É que a convocação de plebiscito tem de ser feita por no mínimo um terço dos membros da Câmara ou do Senado, através de decreto legislativo. Trata-se, portanto, de competência exclusiva do Congresso Nacional, segundo um assessor legislativo da Câmara, onde um Grupo de Trabalho estuda mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a redução da idade para a maioridade penal. E o relator do grupo, deputado Vicente Cascione (PTB-SP), descartou a possibilidade de sugerir à mesa diretora da Câmara plebiscito nacional para discussão do tema. Para ele, o momento não é adequado por causa da comoção provocada pelo assassinato no Embu-Guaçu.

Resposta da sociedade – “O tema vem à tona como resposta a um crime terrível. É compreensível a reação do pai da menina, mas as pessoas estão colocando a questão da maioridade como uma panacéia, como se isso fosse resolver todos os problemas da delinqüência juvenil no País”, afirma o pesquisador Guilherme Assis de Almeida, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. “Crimes bárbaros se tornam fatos midiáticos e isso faz com que o sentimento de insegurança da população se alimente de eventos como esse.”

Para Almeida, a discussão está fora de foco. “Prender o jovem não adianta, mesmo porque a prisão é uma idéia do século 19 e há mais de um século não se mostra eficaz. No sistema carcerário brasileiro, por exemplo, o índice de reincidência é de 47%. Além disso, ao contrário do que se imagina, há apenas 10% dos jovens abaixo de 18 anos de idade na criminalidade e a maioria das infrações cometidas por eles se relaciona a crimes contra o patrimônio. Estupros e homicídios são minoria”, acrescenta Almeida, citando pesquisa da ONU realizada em 57 países. Nesses países, a participação de jovens abaixo de 18 anos na criminalidade é de 11,6%, o que coloca o Brasil um pouco abaixo desse patamar. Almeida acredita que reduzir a idade para a maioridade penal significa mexer nas garantias individuais asseguradas na Constituição Federal. “Antes de qualquer coisa, sugiro que o Congresso Nacional se reúna em sessão conjunta para discutir com juristas balizados se a redução da idade para a maioridade penal é ou não cláusula pétrea.”

Para Daisy Gogliano, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, que se diz favorável à redução, é legítimo alterar as leis sobre o assunto. “A maioridade penal é fixada por uma política criminal. Não se trata de objeto de garantia individual porque é fixada de acordo com as circunstâncias do tempo em que vivemos, dos valores e da cultura da sociedade”. Para alterar a legislação, no entanto, a professora ressalva a necessidade de se mudar completamente o sistema penitenciário. “As pessoas trabalham e estudam, por que não um infrator? Com horário, disciplina, trabalho e tratamento psicoterápico, é possível formar indivíduos dignos.”

O professor Roberto João Elias, que leciona Direito da Criança e do Adolescente na Faculdade de Direito da USP, afirma que não é mais possível aguardar até que o sistema carcerário seja reformulado, a fim de que se mude a legislação. Ele destaca que sua convicção favorável à redução da idade para a maioridade penal vem dos 21 anos trabalhando na área. “Minha experiência me leva a considerar essa possibilidade, porque muitos desses adolescentes sabem muito bem o que estão fazendo. Eles sabem que ficarão no máximo três anos na Febem e depois sairão ‘limpos’”, afirma Elias, que atuou como curador de menores infratores e hoje é procurador da Justiça do Ministério Público de São Paulo. “Concordo que devemos colocar a criança em estabelecimentos adequados, mas, se ficarmos dependendo disso, jamais tomaremos providências sobre esse fato.”

Segundo o ECA, o jovem que infringe a lei não pode ser condenado criminalmente, mas deve responder por seus crimes a partir da aplicação de medidas socioeducativas, que vão desde a advertência e a obrigação de reparar o dano até a prestação de serviços à comunidade e a internação. Para o professor Elias, esse fato empurra o jovem ao crime. “Valendo-se da inimputabilidade, muitas quadrilhas colocam o jovem à frente da criminalidade”, diz. Elias defende que se apliquem penas mais brandas a adolescentes na faixa dos 16 aos 18 anos de idade como forma de forçá-los a responder criminalmente por seus atos. “Só deveriam ir para a Febem os acima de 14 anos, pois com 11, 12 anos de idade eles só aprendem o que não devem. Para crianças infratoras, a correção deveria ser de responsabilidade dos pais. No caso de estes se mostrarem inaptos, a criança deveria ser encaminhada a um abrigo sob tutela do Estado, como forma de proteção, sem caráter de medida socioeducativa.”

A especificidade do crime deve determinar a pena, propõe o professor Alaôr Caffé Alves, que ministra Filosofia e Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da USP. “Não se pode tratar esse assunto de maneira tão genérica e abstrata. Para um criminoso que já era um homicida, três anos internado não são suficientes para reeducá-lo. Não podemos prescindir de medidas repressivas. É preciso fechar com mais eficiência a panela de pressão.”

Delitos e penas – “Há que se distinguir os delitos e se diferenciar as penas”, sugere a professora Henriette Tognetti Penha Morato, do Departamento da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. Para ela, colocar todos sob a mesma normatização é “demagogia”, da mesma forma que fazer um plebiscito para discutir a questão. “Precisamos pensar nas causas que levam o jovem à Febem. Há adolescentes que possuem elementos de sofrimento psíquico que exigem cuidado do ponto de vista da saúde e, nesse aspecto, é imprescindível haver articulação entre os dispositivos públicos, a fim de acompanhar esses jovens”, afirma Henriette, que desde 1999 coordena trabalhos de pesquisa e assistência na Febem.

Henriette denuncia a “hipocrisia” da sociedade civil, de organizações não-governamentais ligadas à questão e até do governo. “Já busquei apoio de ONGs e até do governo, mas responderam que não queriam seu nome associado à Febem. Para muitos desses jovens, sair da Febem e não voltar para o crime pode ser a morte. E tratá-los de forma caricatural é colocar distante um horror que está dentro de nós mesmos. Curioso é que, se o infrator vem de um extrato social mais alto, a sociedade tende a ‘deixar quieto’.”

A professora Miriam Debieux Rosa, do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, vê na reação da sociedade uma “atitude paranóide” em relação a esses jovens. “As pessoas não cuidam e depois se sentem ameaçadas. Quando é um jovem da classe média que morre, todos ficam comovidos. Mas, na periferia, há jovens morrendo todo dia e isso não aparece nos jornais.”

Para Túlio Kahn, doutor em Ciência Política pela USP e coordenador do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente (Ilanud), ao contrário do que se imagina, os jovens “são as maiores vítimas da violência e não seus maiores autores”. Reduzir a idade para a maioridade penal, segundo ele, não teria impacto significativo sobre a diminuição da criminalidade.

Para professora de Direito Penal da USP, juridicamente é possível alterar leis sobre o assunto, mas há a necessidade de melhorar o hoje precário sistema penitenciário
 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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