Se
pudesse sair daqui hoje, sairia correndo. A frase de Sebastião
Aguiar da Silva, porteiro desempregado, resume o desejo de diversos
vizinhos seus que possuem casas próximas aos barrancos da
favela Real Parque, região do Butantã, São
Paulo. O período das chuvas, que está começando
na cidade, coloca em alerta moradores de favelas e morros. É
nessa época que ocorrem deslizamentos, enchentes e surtos
de leptospirose que abatem especialmente as regiões desprovidas
de infra-estrutura e saneamento básico. “Quase não
durmo à noite com medo disso tudo cair”, fala Adelino
Correia Santana, que vive há sete meses com a esposa e quatro
crianças num barraco erguido sobre uma encosta na Real Parque.
Parte da casa, feita de madeira e compensado, já cedeu e
corre o risco de desabar a qualquer momento. Mas, se com o barraco
é ruim, pior sem ele. Famílias como a de Sandra Mara
Pereira do Nascimento vivem sob constantes ameaças da natureza
e do poder público. “A
Prefeitura já deu prazo para a gente sair e ofereceu R$ 3
mil. Mas isso não dá para nada. Um barraco hoje não
sai por menos de R$ 5 mil. Ou aceitamos os R$ 3 mil ou carregam
a gente com casa e tudo. Estou doida para sair, mas não posso”,
desabafa a dona de casa.
Como
convencer pessoas a abandonar áreas de risco tornou-se um
problema para as autoridades das grandes metrópoles. Mesmo
porque, se uma família sair dos locais precários,
outras virão, como aponta pesquisa divulgada em fevereiro
pela Prefeitura de São Paulo, segundo a qual o número
de favelas cresceu quase quatro vezes mais que a população
total do Município na última década. Se forçar
a saída dessas pessoas é quase impossível,
pelo menos tornar esses ambientes mais habitáveis e menos
arriscados ao convívio humano tem sido justamente um tema
que vem ocupando a cabeça de um grupo de estudantes do Instituto
de Geociências da USP, sob a coordenação do
professor Paulo César Boggiani, do Departamento de Geologia
Sedimentar e Ambiental.
“Este
é antes de tudo um problema social e é claro que a
solução seria melhorar as condições
de vida da população em geral. Mas somos geólogos
e, à luz de nossos conhecimentos, tentamos pelo menos minimizar
o risco para as famílias que habitam em encostas”,
diz Boggiani, que coordena na favela Real Parque o projeto Armando
o Barranco – Capacitação de comunidades em áreas
de risco geológico.
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Morador
da Real Park: ruim com o barraco,
pior sem ele |
Com
apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária,
o grupo realiza desde maio passado um trabalho que se estenderá
até maio de 2004, com o objetivo de capacitar lideranças
comunitárias e interessados em diagnosticar problemas ambientais,
tais como escorregamento, enchente e lixo. A partir de um mapeamento
dos problemas, elaborado com a ajuda dos próprios moradores,
o grupo busca encontrar as soluções adequadas à
realidade local e, através da estabilização
de encostas, promover o espírito da cidadania.
“A
experiência tem sido especialmente importante para os alunos
tomarem contato com essa realidade social que é tão
distante do convívio da maioria deles”, diz Boggiani,
que aponta problemas comunicacionais e até culturais como
empecilho ao trabalho de campo. “Ainda não encontramos
uma maneira eficaz de convencer todos os moradores a participar
de nossas reuniões, o que chega a ser até frustrante
em alguns momentos”, fala o professor sobre o trabalho que
teve sua versão inicial submetida a um concurso promovido
pelo Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee) e
Rede Globo e que conquistou o segundo lugar do Prêmio Ciee/SPTV
– Projeto Soluções, em janeiro de 2003.
Técnicas
– Desde maio, o grupo realizou quase 50 reuniões e
palestras. Mesmo com a participação menor do que a
esperada, os estudantes conseguiram sensibilizar alguns moradores
com quem mantiveram contato. Sebastião, o porteiro desempregado,
conta ter adquirido conhecimentos importantes que podem valer vidas.
“Participei de quase todas as reuniões, aprendi muita
coisa e já coloquei em prática no meu terreno”,
garante. Com a ajuda dos estudantes, canalizou o esgoto de sua casa
para evitar infiltração de água no solo, um
dos principais motivos que levam ao deslizamento, segundo Boggiani.
Nas trincas (outro indicativo de risco iminente) próximas
à sua casa foi feito um tipo de remendo com concreto, na
tentativa de promover a estabilização do solo.
Paredes
embarrigadas, árvores inclinadas nas proximidades de encostas,
degraus de abatimento (quando o solo cede e fica literalmente parecendo
um degrau) e exposição de alicerces de casas por ação
do encharcamento do solo são outras evidências de movimentação
do solo que ajudam a antever um deslizamento, diz o estudante Fabrício
Araujo Mirandola, um dos integrantes do grupo. “Mostramos
tudo isso a eles, com exemplos reais e também nas palestras
com ajuda de slides, mapas e desenhos. Com base nesses conhecimentos,
eles conseguem perceber mais claramente o risco e podem ajudar a
evitar um acidente. Posso garantir que muitos desses moradores sabem
mais sobre encostas do que muitos estudantes que estão começando
a graduação.”
Formiguinha
– Se e quando circular por alguma favela, não se surpreenda
caso pise em ratos ou mesmo excrementos. As fotos que no cinema
dão um certo ar romântico e melancólico para
a pobreza retratam imagens indescritíveis da vida real. Ao
vivo e em cores, o cheiro de uma favela é inesquecível.
Ao lado do esgoto a céu aberto, o lixo é um dos problemas
ambientais mais comuns encontrados em qualquer favela. Com esses
elementos, os ratos são a conseqüência natural.
“Meu
marido quase morreu há pouco tempo por causa de leptospirose”,
conta Iraci Verneck de Souza, mostrando o entulho de lixo amontoado
atrás de sua casa. “Canso de tirar, mas as pessoas
não respeitam. Só fazem o que interessa. Aqui falta
união”, diz Iraci, denunciando justamente uma das dificuldades
encontradas pelo grupo do Instituto de Geociências. “A
idéia inicial era fazer algo muito maior. Mas há problemas
de mobilização e cooperação. As pessoas
pensam em colaborar se ganharem algo em troca. Aí fica difícil”,
diz com ar de tristeza outra integrante do grupo, Cyntia Simon.
Entre
as 2.018 favelas do Município – segundo o levantamento
divulgado pela Prefeitura de São Paulo –, a Real
Parque pode até ser considerada “uma favela de Primeiro
Mundo”, como brincam alguns moradores. Por não ser
tão populosa – 2.700 pessoas habitam o local, de acordo
com dados de 2000 do IBGE –, seus problemas são
pequenos diante dos que apresentam as grandes favelas da capital.
A proximidade de ruas asfaltadas, por onde circulam linhas de ônibus
urbanos, é um atrativo. Além disso, muitas de suas
vielas são cimentadas e parte do esgoto, canalizado clandestinamente
pelos próprios moradores. Água e luz existem, graças
aos “gatos”, ou ligações clandestinas.
Mesmo
essas condições “favoráveis” não
garantem a qualidade de vida aos moradores. O ambiente poderia se
tornar mais agradável não fosse o acúmulo de
lixo nas encostas. Duas caçambas colocadas morro acima, fora
da favela e próximas a um centro comunitário, são
quase inatingíveis para uma população que reluta
entre hábitos básicos de higiene e sobrevivência.
Na
tentativa de vencer a barreira cultural, Boggiani já cogita
uma outra abordagem com os moradores. “Pensamos em fazer um
trabalho de formiguinha. Abordarmos as pessoas de casa em casa,
conscientizando e buscando soluções para os seus problemas”,
diz. Quem sabe, com o trabalho do grupo e a ajuda da população
local, futuramente o esgoto seja desviado e pare de escoar debaixo
da casa de moradores como Ednaldo de Souza, cuja residência
fica em frente à encosta, exposta ao lixo e ao esgoto.
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Vielas
mal-ajambradas e casas erguidas em encontas:
riscos diários |
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