Tratar
da universidade brasileira diante do futuro significa necessariamente
abordar o marco histórico da Universidade de São Paulo.
Foi ela a primeira semente que, plantada em solo nacional, germinou
e veio a florescer e frutificar. O Estatuto das Universidades Brasileiras,
de 1931, não teve suas intenções plenamente
realizadas na Universidade do Rio de Janeiro, que não chegou
a implantar sua espinha dorsal, a Faculdade de Ciências, Letras
e Educação. Ao contrário, o decreto de 25 de
janeiro de 1934, de Armando de Salles Oliveira, deu origem à
USP como instituição integral, composta, inclusive,
pela sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Cabe
recordar as palavras entusiásticas de Fernando de Azevedo,
membro da comissão que elaborou o seu plano: “Foi a
Universidade de São Paulo a primeira instituição
em que se verteu, no Brasil, a caudal de inquietação
que os homens possuem em face da natureza, da vida e de seus problemas,
e que nasceu, como a Academia Platônica, na Grécia,
e a Universidade, na Idade Média, da convicção
de que homens de responsabilidade cultural devem ser despertados
interiormente para a especulação, a pesquisa e o método
experimental ou, em poucas palavras, ‘para viver da verdade
e de sua investigação’” (Fernando de Azevedo,
A cultura brasileira, quarta edição, Editora da Universidade
de Brasília, 1963, página 679).
A inspiração
humboldtiana de Azevedo é clara e, embora sem nostalgia ou
regressismo, merece ser lembrada nos tempos pós-modernos,
em que, segundo Lyotard, a legitimação do ensino e
da pesquisa passa a fazer-se pela performatividade, tendo em vista
o melhor desempenho do sistema social e a competitividade internacional.
É interessante recordar também que a USP, em um mundo
menos e diferentemente globalizado, acertou o nosso relógio
do conhecimento, buscando cientistas no exterior, que pesquisaram
o Brasil e formaram mais de uma brilhante geração
de estudiosos, exemplo a repensar e a seguir.
Ilustração
– De fato, a universidade em sua origem era uma instituição
internacional, na escala de comunicação medieval.
Utilizando inicialmente o latim, a instituição procurava
recuperar o conhecimento, que progredia a passos lentos e se desvanecia
na memória dos precários registros anteriores ao papel
e à imprensa. Já naquele período a universidade,
não sem conflitos e dilemas, se inseria nas sociedades, exercendo
papéis de grande relevância. Transplantada para o Novo
Mundo, veiculou as idéias da Ilustração, que,
embora importadas como plantas exóticas, viriam a produzir
o fermento de revoluções e transformações
sociais.
Essa
dualidade, nas Américas, de instituição importada
e, ao mesmo tempo, veiculadora de um saber transformador, ressalta
a necessidade dos países em desenvolvimento no sentido de
ter uma universidade sua, mas não uma universidade isolada,
superada pelos acontecimentos e tendências mundiais. Ser particular
sem deixar de ser ecumênica e ser ecumênica sem deixar
de ser significativa para o seu contexto imediato é duplo
desafio, discutido pela Conferência de Paris, em 1998, organizada
pela Unesco.
Aquela
conferência enfatizou não só as relações
de compromisso entre a universidade e o seu entorno histórico-social,
mas também a sua integração com os demais níveis
educacionais. É possível interpretar que a função
de serviço se realiza tanto pelo ensino, quanto pela pesquisa,
quanto, ainda, pela própria extensão. Ademais, é
preciso ter sempre em mente que a universidade constitui uma parte
da educação superior. Em circunstâncias cada
vez mais diversificadas, esse nível educacional necessita
de plasticidade para responder às necessidades que lhe são
postas. Desse modo, o pensamento deve ser abrangente, já
que a universidade e a educação superior padecem das
limitações do sistema educacional e da sociedade,
ao mesmo tempo em que têm a missão de contribuir para
ambos.
Portanto,
a vocação da universidade, tal como a concebemos,
é a do comprometimento com a sua realidade, seja esta imediata,
na sua região e no seu país, como, ainda, no âmbito
internacional. Como antena sensível, capta e deve captar
as grandes tendências, discussões e alternativas do
mundo em que vivemos, oferecendo sua contribuição
para o desenvolvimento. Cabe-lhe também preparar os trabalhadores
para a sociedade do conhecimento, sob pena de perda de espaço
no processo de mundialização, de empobrecimento do
país e de aprofundamento das disparidades sociais. Nesse
sentido, cumpre-nos lembrar a conferência da Unesco chamada
“Paris + 5”, que em 2003 revisitou as conclusões
de 1998. Inserida nas encruzilhadas da história e com a sua
vocação ecumênica, a “educação
superior sem fronteiras” surge como uma realidade. Seu papel
é crescente nas sociedades e no desenvolvimento sustentável,
suscitando a necessidade de várias formas de cooperação
Sul-Sul e Norte-Sul, de modo a preencher o hiato de conhecimento.
Todavia, como a função da educação superior
é cada vez mais ampla e vital para todos, surgem nuvens escuras,
que anunciam este espaço global como arma de dois gumes.
Afinal, a educação superior é um serviço
público ou não?
Essa
é uma discussão arriscada, que não pode se
restringir aos pensamentos desejosos e que, como se sabe, poderá
ser decidida pelos governos sem maior participação
dos educadores. Além de uma atitude ativa de repúdio
à mercantilização da educação
superior, é indispensável que as universidades tenham
coerência entre pensamento e ação e que reforcem
cada vez mais as contribuições sociais à coletividade.
Por outro lado, cabe-nos destacar como profundamente preocupante
o fato de a liberalização da educação
superior como um serviço vendável confiar nas supostas
vantagens da mão invisível do mercado. Como a história
ensina, essa mão, embora invisível, obedece a vontades
determinadas. Assim, a interação desigual entre as
universidades dos Hemisférios Norte e Sul, dos países
desenvolvidos e em desenvolvimento pode contribuir para o apartheid
cultural e, mesmo, para a extinção daquelas consideradas
menos competitivas. Se, por um lado, cabe reconhecer que a educação
oferece significativos retornos econômicos, é inadmissível,
por outro lado, ter uma postura reducionista que ignore a relevância
social e cultural das instituições educativas, como
forma de descoberta dos contextos específicos e de alcance
de identidade social.
Paz
e democracia – Da mesma forma que temos optado inúmeras
vezes pelo caminho da igualdade, da democracia, da paz e do desenvolvimento
na história da educação superior, precisamos
reunir forças para prosseguir a caminhada. A história
da USP serve de base para refletir sobre a missão da universidade,
entrelaçando as vocações de enraizamento na
sua terra e de projeção dos seus ramos por todo o
mundo. Pensar
a universidade para o século 21 implica duplo movimento:
o de partir da nossa realidade para enriquecê-la com o amplo
conhecimento disponível no mundo, e o de voltar a ela, focalizando
os aspectos imanentes à nossa realidade, de modo a inseri-los
no que lhes transcende. Essa viagem de ida e volta permite que tenhamos
a sintonia das necessidades de um país em desenvolvimento,
sem jamais perder de vista o processo de mundialização
que não nos pergunta se dele queremos participar.
Além
disso, as relações entre a instituição
universitária e o mercado, no quadro da performatividade,
poderiam fazer o ideal humboldtiano parecer uma relíquia
arqueológica. No entanto, a indispensável preservação
do status da educação superior como bem público,
frisada por “Paris + 5”, faz um contraponto ao discurso
que reduz o desempenho universitário à vendabilidade
do conhecimento e a um labirinto de números. Nesse
sentido, cabe colher as lições da história,
inclusive da refuncionalização da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras. Universidade
é educação, é contribuição
significativa no espaço e no tempo e, necessariamente, tem
fundamentos filosóficos que definem a formação
do homem, da sociedade e da história.
Jorge
Werthein é doutor em Educação pela Universidade
de Stanford, nos Estados Unidos, e representante da Unesco (Organização
das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura) no Brasil
|