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Quando dona Neuza Guerreiro de Carvalho (foto acima) abre o seu baú, retira o diploma da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP de 1951 e espalha sobre a mesa centenas de fotos e documentos, o seu rosto se ilumina. Volta a ser a estudante idealista de História Natural que passava horas e horas discutindo com amigos e professores à sombra de uma figueira. A centenária figueira do luxuoso palacete da alameda Glete, que sediou a FFCL – hoje denominada Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – de 1938 até 1949, quando passou a ocupar o célebre prédio da rua Maria Antonia, na Vila Buarque.

“O palacete já não existe mais. No terreno, há um estacionamento, mas a figueira continua lá. Frondosa, imponente, amiga”, conta dona Neuza. E o mais importante: ela não está sozinha. “Passaram pelo palacete da Glete cerca de 200 alunos de História Natural. E mais de 400 geólogos. E os químicos então? Pelo menos mais de 300, além de mais de mil psicólogos. E a nossa figueira ali firme, acompanhando os jovens.”

Por esse testemunho a tantas histórias de luta, ex-estudantes formaram o Grupo Figueira da Glete com o objetivo de zelar pela sua vida. Para garantir o seu futuro, retiraram dela, com todo o cuidado, uma muda que, desde abril do ano passado, está crescendo em frente ao prédio do Instituto de Geociências, na Cidade Universitária. “A nossa intenção é espalhar novas mudas por todo o campus”, observa dona Neuza. “A figueira é um símbolo dos ideais e dos sonhos que a nossa Faculdade de Filosofia germina em todo o País”.

E dona Neuza, professora aposentada que cuida voluntariamente e com tanta sensibilidade da memória dos 70 anos da USP e da FFLCH – promovendo reencontros de ex-alunos, acompanhando a sua trajetória e lembrando os grandes mestres –, é um exemplo daqueles que vêm seguindo a trilha da filosofia, das ciências e das letras. Como Ernst Marcus, Paulo Sawaya, Ettore Onorato, Felix Rawitscher e Florestan Fernandes, entre tantos, tantos outros que continuam se empenhando para garantir a tradição da FFLCH como uma referência nacional e internacional.

Idealismo – É a história tão luminosa da FFLCH que, na opinião do diretor Sedi Hirano, abre espaço para os estudantes e professores. “Somos o fruto do idealismo dos grandes mestres. A FFLCH vai continuar sempre produzindo pesquisas originais e garantindo a produção de novos conhecimentos.” Hirano destaca que a USP nasceu com a Faculdade de Filosofia, que trouxe a concepção de que uma universidade não é apenas mero agregado de institutos e faculdades. “Ela deve ter uma universalidade de propósito no estudo das humanidades, das ciências, da cultura, da arte.”

No decorrer deste ano, a FFLCH vai comemorar a sua história com uma programação especial de palestras, seminários e publicações. “Vamos lançar em breve o Portal 70 Anos, que reunirá, entre outras matérias, depoimentos e entrevistas com ex-diretores, professores e alunos”, explica Hirano.

Sob a coordenação da jornalista Eliana Bento da Silva Amatuzzi Barros, uma equipe foi organizada especialmente para reunir documentos, fotos e detalhes do dia-a-dia da FFLCH. É integrada por Dorli Hiroko Yamaoka, Ebert Antão da Silva e estagiários especialistas em história. “Estamos entrevistando todos os ex-diretores e professores eméritos e esses depoimentos já estão sendo divulgados no nosso jornal Informe”, explica Eliana.

Formação de lideranças – Sedi Hirano conta que a FFLCH nasceu com um projeto de formação de lideranças que firmou um padrão de produção científica e gerou intelectuais formadores de opinião, além de especialistas em políticas públicas. “Vale lembrar que a FFLCH reúne grandes nomes, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi professor do Departamento de Ciências Sociais; Lourival Gomes Machado, diretor da Unesco; Sérgio Buarque de Holanda, autor de obras que se destacam no Brasil e no exterior. Há ainda a presença de Antonio Candido, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada; Florestan Fernandes, que é considerado fundador da moderna sociologia brasileira, e muitos outros.”

Hirano, filho de imigrantes japoneses que nasceu em Araraquara e cresceu puxando enxada Duas Caras (a melhor marca da época) em São Miguel Paulista, na zona leste paulistana, explica que Florestan foi quem o incentivou na vida acadêmica. “É a minha referência como mestre e, principalmente, como ser humano. Eu via nele um exemplo de luta e perseverança. Como Florestan, a minha origem também foi muito humilde e ele via nessa característica uma qualidade.”

Sedi lembra que estava se formando em Ciências Sociais, em 1964, quando foi chamado para conversar com os professores Octavio Ianni e Florestan Fernandes. “Eles disseram: ‘Senta que senão você vai cair de costas’. O professor Florestan disse que admirava o meu estilo de trabalho e me convidou para substituir o professor Fernando Henrique Cardoso enquanto ele estivesse fora do Brasil. Lembro que fiquei surpreso e perguntei por que eles estavam me escolhendo, quando havia outros alunos mais brilhantes. Florestan retrucou: ‘Sedi, sei disso. Mas já vi muitos talentos se perderem por falta de paciência e persistência. E você é a pessoa certa porque tem nádegas de paquiderme e ética no trabalho’. Assumi essa responsabilidade e estou aqui até hoje. Mas continuo o caipira que, por um conjunto de vicissitudes da vida, acabou se tornando uma pessoa com algumas características intelectuais”, diz, brincando.

Bons tempos – A história da Faculdade de Filosofia é lembrada assim. Com saudade e bom humor. “Bons tempos”, suspira José Sebastião Witter, homenageado, no final do ano passado, com o título de Professor Emérito da FFLCH. “Os mais incríveis da minha vida. Você andava pela Maria Antonia e ia encontrando o Fernando Henrique Cardoso, o Octavio Ianni, o Antonio Candido, o Sérgio Buarque de Holanda e tanta gente. Para conversar com pessoas que, anos depois, se tornariam tão importantes, era só deixar recado na recepção com a dona Floripes.”

Para reviver essas lembranças, Witter freqüenta até hoje o Bar do Zé, na esquina da rua Maria Antonia com a Doutor Vila Nova, perto do prédio que abrigou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras até 1968 – hoje sede do Centro Universitário Maria Antonia da USP. “Costumo ir com o Jorge Nagli. O arroz e feijão continua o mesmo. Mas o clima é muito diferente. Era um outro momento da história. Todos nós achávamos que podíamos mudar o mundo.”

 

José Aderaldo Castello também tem muito o que contar. Foi homenageado, no final do ano passado, com a publicação do livro A presença de Castello, pela Editora Humanitas, que reuniu em mil páginas artigos de professores e pesquisadores. “Entrar na FFCL foi uma grande oportunidade. Eu me considero uma pessoa de sorte por isso”, diz. “Sempre repeti aos meus alunos o conselho que tive dos meus mestres: o importante é ter convicção, ideal e responsabilidade.”

Castello conta que a FFCL, no início da década de 1940, já era um centro universitário de alto nível. “Os professores e alunos conviviam com amizade. Os bons estudantes eram convidados para ser assistentes na faculdade e acabavam fazendo carreira. Iniciei meus estudos quando a faculdade ocupava o terceiro andar da Escola Caetano de Campos.”

Aos 82 anos, Castello acompanha com satisfação as comemorações dos 70 anos da FFLCH e da USP. “Fico satisfeito por ter participado dessa história. Quanto ao futuro, não podemos vislumbrar. Mas a FFLCH passou por momentos excepcionais e também de crise, como é normal. E eu tive a felicidade de desfrutá-los.”

O diretor Sedi Hirano e duas fases da FFLCH:
70 anos de lutas e idealismo


 

 

 




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