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O trabalho da mulher sempre foi entendido como uma extensão do lar e o gênero feminino, apto para cuidar da casa e dos filhos e para exercer algumas profissões específicas. O de educadora, por exemplo. Assim, as últimas décadas foram tempos de romper barreiras, em busca de maior inserção no mercado e da conquista da cidadania plena, e isto ocorre na sociedade em geral, assim como na Universidade. Essa não foi uma conquista fácil em 70 anos, diz a historiadora Eni de Mesquita Samara, a primeira mulher a ocupar a Vice-diretoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e que deixou o cargo em dezembro passado para assumir a direção do Museu Paulista.

Segundo ela, na Universidade, apesar das oportunidades iguais na carreira, existem ainda poucas mulheres em postos de comando e ainda na hierarquia universitária predominam os homens. É natural, portanto, que seja mais difícil para as mulheres ocupar novos espaços, acrescenta. Por outro lado, na sociedade de modo geral, ainda nos dias de hoje existe o preconceito com relação ao trabalho feminino fora de casa, gerando inclusive comentários “jocosos” sobre a divisão dos trabalhos domésticos e o encargo dos filhos. Dentro da USP mesmo, nas unidades onde tradicionalmente há um forte contingente feminino, como na FFLCH, o acesso à hierarquia tem sido lento e, embora sejam inúmeras as professoras titulares, “na galeria dos diretores só há homens”.

Um pouco dessa luta das mulheres para ganhar novos espaços, maior acesso ao mercado de trabalho e entrar em profissões antes consideradas masculinas será contado em duas publicações com lançamento previsto para março de 2004, dentro do calendário oficial das comemorações dos 70 anos da USP. A primeira delas está sendo coordenada pela professora Eva Blay, com o título provisório A mulher nos primeiros tempos da FFLCH, e haverá ainda um número especial do Informe – publicação mensal da faculdade, editada pela professora Eni – que vai traçar o perfil das professoras no decorrer dos 70 anos da unidade, o núcleo em torno do qual se estruturou a primeira universidade estadual pública. A proposta é ouvir depoimentos das professoras mais antigas que, além de titulares ou eméritas, ocuparam posições de destaque na vida universitária. Elas vão contar sua história, suas experiências e como conseguiram superar preconceitos, quando admitidas.

A própria coordenadora dos trabalhos de recuperação histórica será uma das entrevistadas e poderá contar as dificuldades que encontrou ao longo da sua carreira, parte dela nos Estados Unidos, onde estudou na Universidade de Indiana e fez pós-doutorado na Universidade do Texas, apresentando tese e dissertação sobre a questão da mulher e da família. Sobre os Estados Unidos, ela conta que a luta das acadêmicas americanas pelo poder dentro da universidade é que está na origem da criação de departamentos vinculados às pesquisas de gênero, os Women’s Studies. A grande diferença da universidade americana em relação à do Brasil é que lá o estudo de história é área preferencialmente masculina, enquanto que aqui é praticamente dominado pelas mulheres. No entanto, Eni considera que as adversidades que as mulheres enfrentaram de certo modo foram positivas, pois as tornaram mais competitivas e nada impediu, por exemplo, que fosse considerada a pesquisadora mais produtiva do Population Research Center em sua área. Eni ainda relaciona algumas pesquisadoras da FFLCH que precisam ser ouvidas (Nicia Vilela Luz, Myriam Ellis, Paula Beigelmann, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Gilda de Mello e Souza), mas, no número especial do Informe, os depoimentos não podem ser muito longos porque o tempo é curto e a publicação projetada não comporta muitas páginas.

Eva Blay, que coordena o livro sobre a FFLCH, é a única professora titular do Departamento de Sociologia. Eva, que também é coordenadota-científica do Nemge (Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero), considera muito lenta a conquista de espaços pelas mulheres, que, na USP, continuam preferindo carreiras tradicionalmente consideradas femininas, como Enfermagem e Pedagogia. Nas ciências “duras”, ou exatas, os homens dominam tudo. No comando da Universidade, nunca houve uma reitora (só a vice Myriam Krasilchik), nem diretora da FFLCH. As professoras titulares são poucas, porque “os homens constroem redes acadêmicas e políticas com maior experiência do que as mulheres”. Mesmo assim, algumas se destacam, mas, segundo Eva, isso pode ser interpretado como álibi para esconder a divisão (injusta) entre sexos na carreira. O assunto merece mais discussão, principalmente com estudantes.

Para Eni Samara, que sempre trabalhou com o tema da mulher e sua relação com o mercado de trabalho e chegou a escrever dois capítulos para a obra de Michelle Perot sobre a história das mulheres, publicada na Europa, o pequeno poder feminino nas universidades, em geral, não se deve a falta de competência nem de iniciativa. Trata-se de uma questão histórica e visto nessa perspectiva é um projeto de conquistas, com marcos importantes como o direito ao voto, que no Brasil foi aprovado em 1934.

No caso da Escola Politécnica, o convite para que a professora Eni se pusesse à frente da tarefa de contar a trajetória das professoras da unidade veio na esteira de trabalho anterior que ela também organizou, a biografia dos diretores da unidade. A obra foi lançada em agosto de 2003, por ocasião das comemorações dos 110 anos da Poli. Esse livro tem por título ainda provisório Mulheres politécnicas: histórias e perfis e foi realizado com a ajuda de uma equipe de pesquisadores ligados ao Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (Cedhal). Também naquela escola as mulheres ocuparam espaços lentamente, tanto que só duas professoras chegaram ao grau de titulares – Maria Cândida Reginato Facciotti, vice-diretora da Pós-Graduação e primeira titular da Poli, e Inês Pereira, a primeira chefe do Departamento de Engenharia Elétrica. Ambas estão entre as docentes entrevistadas para o livro e Maria Cândida organiza também a publicação. Da equipe de colaboradores de Eni Samara fazem parte os alunos Maria Clarissa Seixas, Igor Renato Machado de Lima, Joseph César Ferreira de Almeida e Aziz Simão.

De acordo com pesquisa dos entrevistadores, a primeira mulher politécnica foi Ana Maria Fridora Hoffmann, formada em 1928. Nos anos 50, ampliou-se o número de alunas e na década de 90 a expansão da presença feminina foi significativa. Mas, em geral, elas se concentram em áreas que têm a ver com as suas profissões tradicionais, como as Engenharias Química, Elétrica e de Construção Civil. Nenhuma na Construção Naval e Oceânica. A própria Maria Cândida trabalhou no mestrado com o processo de industrialização da batata. “Isso é muito bom”, avalia Eva Blay. “Faz parte da experiência da mulher para a área de exatas. Melhor do que alguns homens inventarem instrumentos de culinária que as mulheres não podem usar, coisas da cozinha nada práticas.

De acordo com o plano inicial da obra, Mulheres politécnicas: histórias e perfis analisará questões como as mulheres no mercado de trabalho no Brasil, do período escravagista até os dias atuais. As mulheres da Poli, suas histórias e perfis, entram a partir da discussão das opções profissionais com o ingresso de mulheres em carreiras tradicionalmente masculinas. A seguir o livro faz um perfil biográfico das titulares, livre-docente e doutoras, completando um quadro geral das mulheres na instituição. Uma das propostas era também ouvir as novas gerações, para saber suas preferências; e outra, a de localizar as profissionais que ocuparam postos importantes no mercado de trabalho. Contudo, a exigüidade de tempo e os limites editoriais impossibilitaram o desenvolvimento dessa parte da pesquisa.

Eni Samara acha que ainda há muito o que fazer sobre a história da Universidade de São Paulo, que deve ser feita de uma maneira científica, mas agradável de ser lida. Para isso, existem inúmeros documentos e dados estatísticos disponíveis, que podem fornecer informações importantes que permitem fugir de uma história meramente laudatória para um texto que atinja o grande público. A expectativa é que isso aconteça em breve, já que essa é uma tentativa que os historiadores da atualidade têm buscado, trabalhando em textos que produzam maior impacto e ao mesmo tempo realcem a pesquisa documental. Com isso estão reescrevendo a história e inserindo novos personagens, como vai acontecer nessas publicações que vão sair brevemente.

A pesquisadora Eni Samara:
USP feminina

 

 




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