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A pesquisa cresce vigorosamente na USP. O vigor é tão pronunciado que, mesmo em uma data festiva como esta, ele nos tenta a deixar de lado a história para falar sobre o presente, e nisso o apóiam outros aspectos interessantes do momento em que vivemos, tais como a abrangência das investigações, as diferenças entre os projetos acadêmicos das unidades e o relacionamento com o setor privado. A pesquisa tem, além dessas, muitas outras facetas: o financiamento, a infra-estrutura, as publicações, a pós-graduação – tantas, contando bem, que melhor é escolher a mais importante, e assim chegamos à dimensão humana.

As motivações e as frustrações dos pesquisadores, bem como as circunstâncias que as motivaram e que fizeram crescer os laboratórios, bibliotecas e salas de estudo, deram origem à nossa diversidade. É isso que nos interessa. É verdade que a evolução de tais sentimentos é assunto complexo e está tão ligada a nossas vidas que na sua história o passado se confunde com os próximos anos. É também verdade, no entanto, que, em matéria de motivação e frustração, todos os nossos pesquisadores são especialistas. Por isso, a discussão do assunto não precisa ser exaustiva. As palavras que aqui não couberem poderão ser encontradas nas mentes dos leitores.

Antes de começar, vale a pena recapitular algumas noções básicas. A missão universitária é formar bons profissionais, capazes de resolver os problemas da sociedade. Para cumpri-la, algumas instituições se especializam em algumas matérias; outras dirigem sua força para a pesquisa científica; outras ainda, para a tecnológica. A USP tomou o caminho da diversidade, escolha que a leva, por exemplo, a manter a Estação Ciência ao mesmo tempo em que participa da construção de um telescópio no Chile. É tambàm a opção pela diversidade que motiva o interesse por praticamente todas as áreas do conhecimento e por todas as formas de abordagem. O investimento em campi e centros de pesquisa distantes da Cidade Universitária e a manutenção dos museus também decorrem dessa opção.

Diversidade – Em uma universidade com tal variedade de interesses, a pesquisa toma diferentes formas, e é necessário classificá-la. A seguinte nomenclatura, que servirá para guiar nosso pensamento, enfatiza os objetivos de curto prazo:
Ciência é a pesquisa cujo propósito imediato é gerar mais conhecimento. Ela abrange problemas de origem acadêmica ou prática. Exemplos são (1) o interesse de um astrônomo por uma galáxia; (2) o de um biólogo pelo código genético da bactéria responsável por uma doença; (3) o de um químico por novos materiais promissores para a nanoeletrônica; (4) o de um sociólogo pela organização de um movimento.

Desenvolvimento é a pesquisa que quer chegar, rapidamente, a um produto ou processo de interesse comercial ou social. Exemplos encontrados nos relatórios recentes da USP são (1) a simulação, na Escola Politécnica, do movimento das águas oceânicas no projeto de um riser para perfuração de poços de petróleo em águas profundas; (2) a produção, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), de uma substância capaz de atrair mariposas de uma praga de laranjais; (3) a criação, no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), em São Carlos, de um software para revisão de textos.

Instrumentação é o trabalho investigativo destinado a produzir equipamento que, embora sem valor comercial, é necessário para apoio à própria pesquisa.

Nem tudo o que se enquadra em uma dessas categorias é pesquisa. Medir, com sensores laser, o número de motoristas que atravessam o semáforo vermelho no cruzamento das avenidas Rebouças e Faria Lima, em São Paulo, pode ajudar a resolver rapidamente um problema prático. Falta a esse trabalho, no entanto, a necessidade de reflexão que permitiria caracterizá-lo como pesquisa de desenvolvimento, e ele tem de ser classificado como atividade de extensão.

Tomando essas noções como premissas, vejamos agora como evoluiu nosso sistema de pesquisa. A criação da USP agregou faculdades e escolas cujas identidades haviam sido consolidadas pelo tempo, com o cimento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). A nova unidade beneficiou-se da experiência de docentes trazidos de instituições européias por Teodoro Ramos, para delinear diretrizes para a investigação científica. Essa construção e a tradição das outras se amalgamaram para gerar um modelo que só seria substituído 35 anos mais tarde, pela consolidação da pós-graduação. As duas primeiras décadas de implantação da nova universidade, em ambiente político nacional e internacionalmente turbulento, geraram trabalhos científicos extraordinários, como os artigos sobre os traços deixados por mésons em emulsões publicados por Lattes, Occhialini e Powell na revista Nature, em 1947. Não se pode dizer, porém, que tais trabalhos descrevam uma cultura própria, influenciados como foram pela importação de cérebros.

Mais significativos, nesse período, são dois marcos que abrem a janela por onde podemos vislumbrar o pensamento dos pesquisadores da época. Um deles é a contribuição tecnológica da Escola Politécnica para a implantação da indústria nacional. Entre os avanços infra-estruturais necessários para a criação de um parque industrial, sobressaía a produção do aço, um desafio que muitos acreditavam estar acima da capacidade do País. A Poli o aceitou e, por meio de visitas a centros produtores, estágios de pesquisadores estrangeiros em São Paulo, implantação de um Departamento de Metalurgia no IPT e pesquisas cooperativas, a escola conseguiu em poucos anos difundir a tecnologia que se pensava inacessível e abriu espaço para a instalação das siderúrgicas que, três décadas depois, inscreveriam o País no rol dos grandes produtores.

O segundo marco encontra-se na história da Faculdade de Medicina, que no início dos anos 50 foi reconhecida pela American Medical Association como um dos melhores centros de formação profissional do mundo. A Faculdade de Medicina sobressaíra entre as unidades fundadoras pelo impulso da visão de seu idealizador. Arnaldo Vieira de Carvalho não viveu para conhecer a Universidade de São Paulo, mas sua percepção da missão universitária introduziu no corpo docente o espírito da Casa de Arnaldo, que atravessou a virada do milênio.

No interior – Ao final dos primeiros 20 anos, dois acontecimentos alteraram o rumo da evolução da Universidade: a implantação de novas unidades de ensino e pesquisa, em Ribeirão Preto e São Carlos, e a criação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), com sede no Rio de Janeiro. Isso revolucionou o fomento à pesquisa, que até então dependia de recursos da própria Universidade e de doações – estas principalmente de organizações estrangeiras, como a Fundação Rockefeller e a Unesco. Mais que uma fonte de recursos, o ato do governo federal criou uma instituição que, aos poucos, iria ramificar-se, gerando outras agências e novos conceitos, entre os quais o da iniciação científica.

A criação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e da Escola de Engenharia de São Carlos são carregadas de significado, pois indicam que a sociedade interiorana, impressionada com o exemplo da Esalq, reconhecia o valor da pesquisa. Em Ribeirão, os que batalharam pelos decretos de criação sabiam que o crescimento econômico da cidade exigiria que ela se aparelhasse para defender a saúde de seus habitantes e que das festas de formatura sairiam profissionais bem preparados, que instalariam, nas avenidas arborizadas, consultórios a que acorreria a população de toda a região. Em São Carlos, os defensores do campus da USP mantinham raciocínio semelhante, voltado para a vocação industrial que a cidade parecia ter na metade do século.

Na década seguinte, 1954-1963, a Universidade afirmou-se. Surgiram valores nela formados, e a FFCL despontou com grandes contribuições para biologia, teoria literária, filosofia, física, geografia, história, sociologia, e química. Nomes como os de Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda e Mário Schenberg se incorporaram ao cotidiano da cultura brasileira. Em 1958, um docente do Setor (nome que designava os departamentos da faculdade) de Química publicou dois artigos na Nature e mais um no ano seguinte, feito sem paralelo nas últimas décadas, mesmo porque apesar de substancial incremento nos últimos anos, endereços da USP têm aparecido menos de duas vezes por ano naquela revista.

As unidades profissionalizantes exibiam sinais igualmente positivos. Na Esalq, Marcílio de Souza Dias conseguiu nesse período, por meio de melhoramento genético, aclimatar hortaliças – tomate, alface, brócolis, couve-flor, cenoura, cebola e berinjela – ao ambiente brasileiro. O cultivo, antes restrito a climas frios, pôde assim difundir-se por todo o País. A Faculdade de Medicina desenvolveu trabalhos científicos que quatro décadas mais tarde ainda são citados, sem descuidar dos problemas da população afeitos a sua área de atuação. Emblemática dessa preocupação é a criação do Instituto de Medicina Tropical, sob a liderança de Carlos da Silva Lacaz. Em Bauru, implantou-se a Faculdade de Odontologia, para mais tarde constituir um dos mais importantes centros de recuperação de anomalias faciais. Em poucos anos, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto adquiriu reputação internacional pela qualidade dos resultados ali desenvolvidos. Na Escola Politécnica, o respeito à missão universitária fez com que uma reestruturação ampla dos cursos desse origem a novos departamentos e renovasse a força de outros. Dois exemplos servem para manifestar a vocação sintética da pesquisa desenvolvida na escola: (1) a pedido do Instituto Oceanográfico, a primeira turma do curso de Engenharia Naval projetou o navio Professor Besnard; (2) o Grêmio Politécnico fundou um escritório piloto, precursor das empresas juniores.

A descrição desse sistema de pesquisa, cujos resultados parecem hoje desproporcionais às suas dimensões, requer ressalvas. Embora seja evidente o interesse das unidades de ensino profissionalizante por soluções práticas, nessa época todas elas dedicavam parte de seu trabalho a investigações científicas. As seções da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ligadas às ciências humanas e sociais, premidas pelo dever profissional de diagnosticar e divulgar os problemas sociais da nação e lideradas por pesquisadores como Florestan Fernandes, que não admitia dissociação entre a geração do conhecimento e a sua aplicação direta na solução daqueles problemas, envolveram-se fortemente com os setores externos. As seções ligadas às ciências físicas e biológicas, por outro lado, tinham pouco interesse pela pesquisa de desenvolvimento, porque a indústria incipiente estava muito distante dos laboratórios e porque se acreditava que a evolução da comunidade científica a capacitaria para produzir inovações que mais tarde despertariam o interesse comercial das empresas.

Como se vê, tanto umas como outras seções advogavam para si um papel indutor, com a diferença de que as primeiras encontravam no presente oportunidade para ação, enquanto as últimas esperavam que o futuro trouxesse tal oportunidade. Com o correr dos anos, esse descompasso iria ampliar-se.

Junto com ele, cresceria outro conflito. Desde a fundação da USP, os professores catedráticos eram apoiados por assistentes contratados pela Universidade. Com o tempo, a importância destes para o sistema de pesquisa cresceu e, aos poucos, eles passaram a exigir maior autonomia. Resultou desse movimento a Associação dos Auxiliares de Ensino, que elegeu como meta a implantação de uma agência de fomento que atendesse diretamente aos pesquisadores, para liberá-los do controle econômico imposto pelos catedráticos. A campanha teve sucesso em 1962, quando o governador Carvalho Pinto pôs em prática a já então antiga lei de criação da Fapesp. O tempo mostraria que a Associação tinha identificado corretamente a base dos problemas de seus membros; corroída esta, o modelo implantado em 1934 ficou abalado.

Ditadura militar – A década seguinte, de 64 a 73, logo trouxe um segundo abalo. O golpe militar trouxe novo modelo de desenvolvimento, que exigia mudanças na Universidade. O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE) passou a financiar projetos das unidades ligadas às áreas tecnológicas, com recursos a que as demais escolas e faculdades não tinham acesso. As necessidades do sistema econômico em expansão criaram outras oportunidades de pesquisa, e as unidades pertinentes se aparelharam para aproveitá-las.

Datam dessa época a primeira fundação de apoio (à Engenharia de Produção na Escola Politécnica) e o Instituto de Pesquisas Econômicas (IPE) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA). A implementação do plano estratégico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), que a dividira em três departamentos no início dos anos 60, logo a fez sobressair como centro de integração da tecnologia com o planejamento, a história e as ciências sociais, fortemente acoplado a setores externos. Essas novidades criaram preocupação com o futuro da pesquisa científica, e em 1965 o Conselho Universitário criou o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP).

Enquanto isso a pesquisa continuava a gerar resultados notáveis. As Faculdades de Medicina continuaram com seu trabalho voltado para a ciência aplicada e desenvolvimento; estudos realizados em Ribeirão Preto nesse período permitiram que, anos mais tarde, uma empresa farmacêutica multinacional desenvolvesse um medicamento contra hipertensão, com mercado de bilhões de dólares. Em São Paulo, a equipe de Euryclides Zerbini realizou o primeiro transplante de coração do Brasil. A Escola Politécnica desenvolveu o Patinho Feio, primeiro computador brasileiro, abrindo o que parecia caminho promissor para a microeletrônica nacional. No Centro de Biologia Marinha (Cebimar), foi desenvolvido o Projeto Mexilhão, que deu origem à cultura comercial do molusco na costa de Santa Catarina. Em 1970, o Instituto Oceanográfico construiu o primeiro batiscafo brasileiro. No mesmo ano, um trabalho de iniciação científica desenvolvido no Instituto de Biociências foi publicado na revista Science.

A concentração de poder nas mãos dos catedráticos, entretanto, impunha limitações ao crescimento do sistema de pesquisa e gerava insatisfação que, alimentada pelos acontecimentos de dezembro de 1968, acabou trazendo grandes mudanças. Em retrospecto, vemos que a reforma universitária era indispensável, e não só porque havia insatisfação com o modelo ou porque os ventos da mudança, impulsionados no Brasil pela oposição ao regime militar, varriam o mundo. Os terríveis golpes que o AI-5 aplicou na Universidade criaram um tal clima de desalento que só a figura da fênix poderia trazer de volta a esperança aos pesquisadores. Cientes disso, as lideranças da época se apressaram em promover a reforma.

Consideradas as suas dimensões e o curto período em que foram preparadas, é forçoso reconhecer que as mudanças foram muito bem-sucedidas. Não surpreende que elas tenham introduzido alguns problemas resistentes. Uma reforma súbita cria estruturas que, como uma betoneira esquecida em uma sala na pressa de se erguerem paredes, são difíceis de remover. Assim foi com a normalização dos departamentos como peças unitárias de ensino: em muitas unidades, essa concepção veste mal os interesses dos grupos de pesquisa; em quase todas, ela obstrui o planejamento. A reforma também construiu barreiras que bloqueiam o desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares.

Frente às vantagens, porém, tais dificuldades se apequenam. Como as três décadas seguintes mostrariam, a reforma abriu espaço para o crescimento sustentado do sistema de pesquisa. Entre os vários componentes que propiciaram tal expansão, merece menção especial a flexibilidade oferecida aos programas de pós-graduação. Essa modalidade de ensino, praticada informalmente em muitas unidades desde os meados da década de 60, foi estruturada pela perspicácia de Paschoal Ernesto Américo Senise, do Instituto de Química, que elaborou regras simples e lutou pela sua implantação e manutenção por mais de duas décadas. Seu decálogo modelou os regulamentos de pós-graduação em todo o Brasil, integrou-se muito bem com as demais mudanças e permitiu que os programas aproveitassem as iniciativas de fomento do CNPq e da Capes. Na história da pós-graduação brasileira, somente a posterior implantação do sistema Capes de avaliação tem comparável importância.

Empresas – Estruturada a pós-graduação, reorganizada a administração, reforçado o sistema com a incorporação de pesquisadores provindos da Argentina e do Chile e apoiado o trabalho por concessões da Finep, criada em 1967 e que aos poucos assumiu o papel inicialmente desempenhado pelo BNDE, do CNPq, da Capes e da Fapesp, a pesquisa feita na USP cresceu e se aprimorou. As agências de fomento investiram em bolsas de pós-graduação ou pós-doutoramento no exterior, que muitos aproveitaram para trazer novos conhecimentos e novas idéias e para criar novas linhas de pesquisa, novos grupos e novos procedimentos.

Entre os resultados, sobressaem os devidos a lideranças que souberam definir objetivos. Há vários exemplos. Pequenos grupos de pesquisadores recém-doutorados em 1970 deram origem a algumas das grandes sociedades científicas brasileiras de hoje. Na década de 70, um pequeno conjunto de pesquisadores especializados em bioquímica convenceu a Fapesp a lançar um programa pioneiro, o Bioq-Fapesp, cujas coerência e exigência conduziram os docentes da área a um patamar elevado de qualidade. No final dos anos 90, a receita foi adaptada à genômica. Pequenos departamentos da Escola de Engenharia de São Carlos tornaram-se independentes no início dos anos 70, gerando os institutos de São Carlos, e com a unidade-mãe transformaram a cidade em um pólo de tecnologia. A Santa Casa de São Carlos é o único hospital brasileiro com tomógrafo de ressonância magnética fabricado no País. Nas décadas de 80 e 90, pesquisadores comissionados pela USP e pela Unicamp construíram em um sítio próximo a Campinas o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, jóia da instrumentação brasileira. Jovens lideranças estão renovando a vocação biotecnológica da Esalq.

A Faculdade de Direito manteve seu posto de referência internacional na área, com resultados especialmente importantes na defesa dos direitos humanos e no aprimoramento das relações internacionais. A postura crítica das faculdades especializadas em ciências sociais e humanas preservou a reserva moral da nação no pós-68. Tal atitude prejudicou o crescimento quantitativo da pesquisa nessas faculdades, prejudicado nos tempos dos generais pelas aposentadorias forçadas, pelo cerceamento de atividades e pela dificuldade de acesso ao fomento e refreado mais recentemente por tradições que os anos difíceis cristalizaram. Entre estas, a de distanciamento em relação à pesquisa desenvolvida nas demais unidades é um dos problemas que a Universidade só começa a enfrentar, timidamente.

Outro problema antigo aflige institutos e escolas tecnológicos. No final dos anos 60, o sistema de pesquisa era pequeno e inexperiente demais para atender às demandas de uma indústria em rápida expansão. Não encontrando aqui condições de desenvolver a tecnologia de que necessitava, esta passou a importá-la, e o setor empresarial se divorciou da pesquisa.
Para a Universidade, tal separação é um sério problema, porque os estudantes não encontram o ambiente mais adequado para atividades de desenvolvimento. Forma-se um ciclo vicioso, pois falta aos formados a preparação de que necessitariam para implantar laboratórios de desenvolvimento nas empresas. Para o País, o problema é também muito sério, como até o Ministério da Fazenda reconhece, em artigo assinado pelo próprio ministro na edição de 4 de janeiro de O Estado de S. Paulo. Isto posto, desconcerta saber que, menos de um mês antes, o mesmo governo editara medida provisória solapando uma das poucas ações federais que minoravam o problema (ver manifestação sobre a pesquisa no setor elétrico no endereço www.usp.br/prp).

Política científica – No final da década de 80, a Universidade procurou mecanismos para aproximar-se dos setores externos. Em 1988, o novo Estatuto da USP introduziu a flexibilização do RDIDP, medida que visava a estimular o desenvolvimento de programas cooperativos de pesquisa com os setores público ou empresarial. Infelizmente, embora tenha atendido a esse propósito, com freqüência acima da desejável a flexibilização serviu para prestação de serviços ou simples consultorias, atividades que fogem ao seu objetivo.

O Estatuto de 1988 trouxe outras novidades, entre as quais a criação de Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs), estruturas temporárias que o Conselho Universitário periodicamente avalia. A subordinação dos Núcleos de Apoio à Pesquisa à Pró-Reitoria de Pesquisa permite agregar sob um mesmo teto pesquisadores de diferentes departamentos ou unidades. Entre os cerca de 50 grupos que se organizaram dessa forma, metade dedica-se a pesquisas multidisciplinares. Os demais se concentram em diferentes áreas do conhecimento, com predominância das ciências sociais e humanas, e se beneficiam da flexibilidade que o Regimento Geral oferece aos NAPs. Boa parte dos núcleos teve excelente desempenho e alguns alcançaram projeção internacional. No outro extremo, alguns receberam avaliação negativa e tiveram de ser desativados. Os NAPs não são exceção à regra de heterogeneidade que descreve a pesquisa na USP. O conjunto deles, não obstante, é comparável às unidades mais produtivas.

A criação das Pró-Reitorias deu apoio institucional a iniciativas até então desenvolvidas por iniciativa dos pesquisadores. Como conseqüência, em particular, a iniciação científica teve grande expansão na década de 90. Além de preparar estudantes para a pós-graduação, essa atividade tem dado grandes contribuições para a complementação do ensino formal nas unidades profissionalizantes.

Na área do fomento, houve também avanço a partir do final da década de 80. Este se deveu à determinação de Alberto Carvalho da Silva, diretor-presidente da Fapesp, cuja carreira como docente da Faculdade de Medicina fora interrompida pelo AI-5. O doutor Alberto passou longos dias e noites na Assembléia Legislativa até conseguir que a Constituição paulista de 1989 destinasse à agência 1% das receitas tributárias do Estado. Com esse reforço orçamentário, a Fapesp pôde ampliar a sua carteira de programas, que em 1990 passou a incluir os projetos temáticos e, cinco anos mais tarde, uma dúzia de outras linhas de fomento.

Tal diversificação, que amparou a expansão do trabalho investigativo no Estado e estimulou a busca por novas modalidades de trabalho, é sinal claro de que as agências de fomento acompanharam o amadurecimento do sistema de pesquisa. No plano federal, muito embora a inflação, crises econômicas e a indefinição de prioridades tenham reduzido substancialmente os orçamentos, o exemplo da Fapesp e os lançamentos de programas especiais (como o Pronex, na segunda metade da década de 90, e o Programa Institutos do Milênio, em 2001, os quais atraíram muita atenção e exigiram julgamento cuidadoso) aprimoraram a avaliação de pedidos. Hoje, o bom preparo técnico do sistema de fomento torna especialmente dolorosa a comparação entre as necessidades dos pesquisadores e o fluxo de recursos que chega aos cofres das agências.

A escassez de bolsas e a sua desvalorização ameaçam estrangular a pós-graduação e, com ela, a evolução da pesquisa. Falta também investimento em infra-estrutura. Até o início da década de 90, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) supria essa necessidade. O acordo BID-USP compensou inicialmente a retração do FNDCT. Cinco anos mais tarde, a compensação proveio dos programas infra-estruturais da Fapesp. Após a substituição destes pela reserva técnica, associada a cada concessão individual, ainda que entre 1996 e 2001 a soma de tais dotações suplementares tenha injetado a média de R$ 20 milhões anuais na USP, a pulverização das aplicações impediu a maioria dos departamentos de investir em projetos infra-estruturais de porte. Reencontramos aqui a questão mal resolvida do conflito entre a estrutura departamental e a organização dos grupos de pesquisa. A crescente desigualdade entre a demanda recebida nos balcões da Fapesp e os recursos de que a fundação dispõe a torna ano a ano menos capaz de resolver esse problema.

A estrutura de fomento à pesquisa arquitetada no início da presente década pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com recursos de fundos setoriais automática e continuamente alimentados pelo setor empresarial acena com uma solução. Para que ela se concretize, porém, é necessário que o Tesouro deixe de desviar o fluxo que deveria irrigar os fundos. Em 2003, por exemplo, um montante da ordem de R$ 1 bilhão foi seqüestrado. Se esse fluxo for reconduzido ao seu leito natural e se cada solicitante receber fração dos recursos proporcional ao mérito de sua solicitação, a Universidade terá oportunidade de restaurar e manter sua infra-estrutura de pesquisa.

Excelência – Ao menos até aqui, tais dificuldades e preocupações não têm diminuído o ímpeto com que o sistema de pesquisa da USP se desenvolve. Uma tendência particularmente auspiciosa despontou nos últimos dez anos: grupos com excelente desempenho científico têm-se dedicado, cada vez mais, a atividades de desenvolvimento com impacto direto sobre a sociedade. Como ilustração, a seguinte lista apresenta exemplos de aplicações concretas desenvolvidas por grupos cientificamente muito produtivos em diferentes unidades. Para limitá-la a meia dúzia de exemplos, o rol inclui apenas aplicações na área de saúde.

* No início dos anos 90, o grupo de Medicina Computacional da Faculdade de Medicina formulou estratégia para vacinação contra rubéola que foi subseqüentemente aplicada pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, com economia de cerca de US$ 4 milhões em relação à estratégia menos eficiente recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS);

* Desde o início da década de 90, o Centro de Terapia Celular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto desenvolveu grande número de procedimentos e políticas públicas voltadas para o aprimoramento dos bancos de sangue;

* O Grupo de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências mantém um centro de aconselhamento genético que oferece atendimento gratuito à população;

* O grupo de Parasitologia Pura e Aplicada do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) mantém um centro de pesquisa em Rondônia, com uma base na Capital e outra na pequena cidade de Monte Negro. Ambas dão assistência médica e odontológica à população, além de ajudar o governo estadual a formular sua política de saneamento;

* No final da década de 90, o Grupo de Óptica e Fotônica do Instituto de Física de São Carlos adaptou às condições brasileiras uma terapia fotodinâmica com notáveis resultados no tratamento de câncer de pele.

* No final de 2002, o grupo de Terapia Celular e Molecular do Instituto de Química desenvolveu procedimento de purificação que permitiu o primeiro transplante de ilhotas pancreáticas da América Latina.

A pesquisa na USP chega aos 70 anos como uma criança passa à adolescência: cheia de vigor e pronta para explorar a experiência que o tempo lhe propiciou. O crescimento dos últimos anos fez com que de cada 240 artigos publicados na literatura internacional um traga o endereço da Universidade. O aprimoramento de nossa pesquisa fez com que mais e mais trabalhos aqui realizados apareçam nas capas de revistas científicas internacionais. Nas décadas de 50 e 60, os da USP com extraordinário brilho resultaram de esforços individuais. O sistema de hoje começa a repetir mais sistematicamente aquelas façanhas. Éramos ilhas; somos agora um continente, com vales e montanhas, em ascensão.

A Universidade tem à sua frente vários obstáculos. As seis realizações na área de saúde listadas acima mostram o caminho para eliminar os mais sérios deles: (1) compor forças para enfrentar dificuldades e (2) dirigir parcela maior de sua pesquisa para o desenvolvimento, com o objetivo de resolver problemas encontrados fora de seus campi. Em cada um dos seis casos mencionados, o grupo de pesquisa engloba número grande de pesquisadores e o desenvolvimento da aplicação demandou esforço incomum de organização. Voltamos, assim, a um tema freqüente nos depoimentos sobre a evolução da Universidade: a USP resultou do trabalho de lideranças bem qualificadas. É com esse mote em mente que devemos enfrentar nossos desafios, que constituem o material com que a história dos próximos 70 anos será escrita.

Luiz Nunes de Oliveira é pró-reitor de Pesquisa da USP

 

 

 




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