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Universidades públicas com orçamentos agonizantes e papéis sociais deformados ou não cumpridos; orientação acadêmica e curricular voltadas ao mercado de trabalho, em detrimento das missões próprias de ensino, pesquisa e extensão; poderes de decisão e de atuação política esvaziados em todas as esferas, especialmente na da pesquisa científica; faculdades particulares que não cumprem determinações da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). Para alguns intelectuais da USP, o futuro reserva um quadro pessimista para o ensino superior, em especial para as universidades públicas, caso o meio acadêmico e o governo não discutam e implantem uma reforma ampla no setor. “Sou do tempo em que a universidade tinha um papel mais peculiar, sobretudo a formação crítica do cidadão. Isso se perdeu em função das exigências do mercado”, diz o professor do Departamento de Filosofia Franklin Leopoldo e Silva, para quem as universidades públicas se integraram tanto ao perfil mercadológico a ponto de as fundações passarem a intermediar e quase dominar a relação do ensino com o mercado.

As propostas para o futuro do ensino superior suscitam críticas e polêmicas dentro e fora do meio acadêmico. Pesquisadora do tema há 30 anos, ex-secretária nacional de Educação Superior (1992) e de Política Educacional (de 1995 a 1997) do Ministério da Educação, a antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior da USP (Nupes) Eunice Ribeiro Durham defende “reorganizar organicamente” as instituições de terceiro grau, no sentido de redefinir suas vocações, sejam de pesquisa, ensino ou formação profissional qualificada, a exemplo do que já acontece nos Estados Unidos.

Já a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) pretende apresentar ao governo federal, em abril, seu projeto de reforma. Em outra frente, o Ministério da Educação, através de uma comissão interministerial nomeada pelo presidente da República, concluiu em 23 de dezembro e já entregou à Casa Civil um diagnóstico da situação do ensino superior que deverá nortear a reforma do ensino prometida pelo governo federal a partir de 2005 (leia textos na página ao lado).

Marilena Chauí: questões profundas

Propostas da USP – Na USP, as propostas de diretrizes acadêmicas e de gestão vêm sendo discutidas no Fórum de Políticas Públicas, ligado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA). Com redação final de Marilena Chauí e Sérgio Cardoso, ambos do Departamento de Filosofia da USP, um documento sobre o tema deverá chegar no início de fevereiro às mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e também aos Ministérios da Fazenda, da Educação, do Desenvolvimento Social e da Ciência e Tecnologia, além da Casa Civil. O texto inclui idéias vindas de debates em todo o País e fóruns realizados via Internet, que buscam resgatar o papel original da universidade e revitalizar a rede pública de ensino superior. “A universidade deve se obientar pelas exigências sociais e, se isso incluir necessidades do mercado, ótimo. Caso contrário, que pena. Fato é que o significado da universidade precisa ser repensado. Precisamos resgatar a autonomia universitária num sentido amplo e isso não pode se limitar a uma discussão reduzida ao lugar-comum ‘mais verbas, mais vagas, mais docentes’. Nossa proposta vai além e envolve questões mais profundas”, afirma a professora Marilena Chauí.

O documento produzido na USP se pauta essencialmente pelo resgate da autonomia acadêmica relativa ao ensino, à pesquisa, à extensão e ao acesso à universidade, além da redemocratização das relações institucionais. Num contexto amplo, diz Marilena, a autonomia é inseparável da democratização universitária. “Democracia, nesse sentido, significa autonomia sobre o uso de recursos, sobre a escolha de grades curriculares e linhas de pesquisa, entre outras coisas. Não se trata simplesmente de eleição direta de reitores ou de comissões.”

No item pesquisa, os intelectuais defendem que decisões, condução e gestão de projetos, incluindo orçamentos, passem gradativamente das agências para as universidades. Marilena afirma que as instituições públicas começaram a perder seu poder de iniciativa a partir do surgimento, na década de 60, das agências de fomento como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Segundo a professora, esses órgãos, no início, tinham o mérito de ser instâncias independentes do poder e dos grupos universitários. A independência era garantida pelo modo de financiamento e comitês de julgamento. Com o tempo, houve o corte gradual das verbas e as agências passaram a definir conteúdo, forma, prazos e linhas de pesquisa. Além disso, seus comitês foram gradualmente substituídos pelos grupos de poder de dentro das universidades, o que fez com que as agências perdessem sua independência. Por isso, ela defende que o poder de iniciativa e a alocação de verbas voltem para as universidades “de modo que a instituição não fique nas mãos de grupos ou corporações”.

Para o professor Sérgio Cardoso, as agências funcionam excepcionalmente bem para os moldes brasileiros e por isso mesmo esvaziam a capacidade institucional da universidade decidir sobre sua própria atuação. “Tenho o maior respeito, por exemplo, pela Fapesp. Mas o modelo baseado em agências preocupa por seus limites. O mais sério é a cristalização dos grupos de decisão que escolhem os projetos. No fundo, esses organismos são dirigidos por determinados grupos há 10, 15 anos. Isso não é democrático.” Para promover democraticamente a pesquisa, a saída é que as universidades sejam financiadas institucionalmente, “desde que existam planos de atuação”, afirma.

“Para recuperar, como instituição, sua capacidade de iniciativa, a Universidade deve tomar consciência do que quer, através de planos de atuação. A idéia é que esses planos sejam elaborados periodicamente e estruturados pela Reitoria e pelo Conselho Universitário, envolvendo a idéia do orçamento participativo”, diz Cardoso. Ele afirma que hoje a Universidade decide seu orçamento “através da inércia” ou por um conjunto de decisões tomadas no passado e que continuam vigorando sem que se faça um questionamento mais profundo a respeito. “Já participei de várias comissões e as decisões acabam sendo de cunho burocrático e formal. Os planos de atuação seriam instrumentos centrais porque obrigariam a Reitoria a discutir com as unidades e a pensar o futuro.”

Reivindicação antiga na USP e um dos motivos da greve que paralisou a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), em 2002, os intelectuais propõem ainda aumentar o número de professores como quesito básico para revitalizar o ensino público. A medida não só diminuiria a quantidade de alunos por sala como melhoraria as condições de aprendizagem na graduação. As salas deveriam suportar, no máximo, 40 pessoas.

Dedicação exclusiva – A reforma também pretende incluir no sistema universitário mais professores em regime de dedicação exclusiva e tempo integral. “No caso da USP, muitas unidades contam com docentes trabalhando em tempo parcial e que usam o nome da Universidade em função de seus interesses profissionais”, alerta Cardoso. Para ele, não basta melhorar o regime de trabalho, mas também a remuneração. Além disso, propõe maior fiscalização sobre docentes com dedicaçe3o exclusiva, para que cumpram esse contrato profissional. “Sinto muito dizer, mas há muito professor contratado em regime de dedicação exclusiva que não o cumpre.” É fundamental, diz Cardoso, que todos os cargos de direção da Universidade sejam ocupados por docentes com dedicação exclusiva e tempo integral. “Para que a Universidade funcione bem, precisa de gente que se dedique a ela.”

O professor ressalta que aumentar vagas para alunos sem garantir mais professores causa a massificação e deterioração do ensino e não necessariamente a inclusão social através da educação. “Essa situação desgasta a vida universitária. Não temos mais um ambiente de trabalho que estimule a pesquisa e o trabalho universitário em geral. Dar aula para 120 pessoas não é o mesmo que para 30. Não dá para discutir a contento ou fazer observações ao aluno. E tem a questão da pós-graduação. No meu departamento, a pós-graduação durava sete, oito anos e agora passou para três anos e meio ou quatro. Passamos a vida em bancas de admissão, qualificação, mestrado e doutorado.”

Para Cardoso, qualificar o nível dos ingressantes nas universidades pode ajudar a melhorar as condições de ensino e aprendizagem. Por conta disso, o documento propõe uma ampla rearticulação do ensino superior com o ensino médio e fundamental. Além disso, enfatiza que os exames vestibulares e seus formatos de provas e critérios de avaliação sejam supervisionados pelos colegiados docentes dos cursos ou faculdades específicas a que se destinam os estudantes. “Ninguém está satisfeito com esse exame perverso de vestibular, que desmoraliza alunos excelentes e cria problemas psicológicos graves. Esse tipo de exame não traz para nós os melhores estudantes porque a forma de seleção é feita por alto, por um conjunto de matérias secundárias, e não pelo perfil de estudante que cada curso quer selecionar.” E denuncia: “Isso continua como está porque é um sistema que facilita a vida das universidades e porque mexe com uma indústria que são os cursinhos pré-vestibulares”.

Para Marilena, “o futuro da universidade depende de que uma reforma seja feita, senão ela morre. O modelo de universidade que está por aí é uma forma de reter as pessoas fora do mercado de trabalho e de negar uma escolarização de qualidade. É uma forma de promover a infantilização e prolongar a adolescência”. Na USP, os intelectuais continuarão as discussões sobre a reforma do ensino superior e prevêem debates e palestras, segundo Cardoso, ainda com datas a definir.

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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