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Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto:
rumo à interdisciplinaridade

A universidade pública é um instrumento de soberania da nação e, historicamente, assim foi compreendida no Brasil pelos Patriarcas da Independência. Os irmãos Andradas (José Bonifácio, Antonio Carlos e Martim Afonso) defenderam a criação dos Cursos Jurídicos – implantados em São Paulo e em Olinda em 1828 – como forma de consolidar a autonomia política e formar líderes para um país independente. Pelo menos este é o entendimento do diretor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, professor Ayrton Custódio Moreira, que assim analisa não apenas o surgimento da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas da própria Universidade de São Paulo e de seus campi no interior do Estado. Para ele, a demanda por cursos superiores deriva da aspiração das populações locais e o processo ocorre em ciclos.

Assim foi com a USP em 1934, dois anos depois da Revolução Constitucionalista, quando o Estado precisava marcar posição contra a política de Getúlio Vargas; assim foi após a Constituinte de 1946, quando a população de São Carlos e de Ribeirão Preto iniciou a campanha pela criação de universidade pública no interior (Piracicaba já tinha a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), na forma de campi completos, que ministrassem cursos nas áreas de exatas, biológicas e humanas, sem restrição; foi assim, em ondas sucessivas, que se seguiu a implantação, em Ribeirão, da Faculdade de Medicina, depois de Enfermagem, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Faculdade de Odontologia e Farmácia, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, do Departamento de Música e de cursos noturnos, conforme determina a Constituição de 1988. De onda em onda, em três anos Ribeirão aumentou em 80% o total de vagas, alcançando, em 2003, 8.400 alunos da graduação e da pós, somados. E a onda continua.

Com exceção de Piracicaba e de Bauru, onde a projetada expansão de cursos e vagas se atém às áreas de sua “vocação” tradicional, nos demais campi pretende-se desenhar um novo perfil, quase um retorno ao projeto original de unidades completas, incluído o ensino de humanidades e de artes. Nada de cursos estanques, auto-suficientes; mas interdisciplinares, que acudam às necessidades multifacetadas da ciência e da vida moderna. Assim, cursos de Direito velariam pelos acertos das decisões tomadas na área do meio ambiente; cursos de comunicação facilitariam o diálogo entre os cientistas e a comunidade; cursos de formação de professores garantiriam a transmissão do conhecimento gerado na Universidade; e o ensino de artes fecharia o ciclo da formação integral do aluno da USP.

Esse aspecto transdisciplinar da educação, como o praticaram os homens do Renascimento, é caro a um dos decanos da USP em São Carlos, professor Sérgio Mascarenhas, para quem a educação plena consiste em entender o mundo em todos os seus aspectos. Nessa visão a arte é fundamental: “Um jovem não apresentado às grandes obras da humanidade é um bronco computadorizado”, sentencia Mascarenhas.

Mas a interdependência dos saberes também ocorre em escala menor, como nas disciplinas médicas. Ainda para ficar no exemplo levantado pelo professor Ayrton Custódio, a Medicina de Ribeirão Preto teve de se expandir para outras áreas, porque a moderna concepção de saúde é multiprofissional: quem sofre um derrame precisa de médico, de neurologista, de cardiologista, de enfermeira, de fisioterapeuta, de terapeuta ocupacional, de fonoaudiólogo, de nutricionista, de psicólogo. Outro exemplo de parceria e interdisciplinaridade em Ribeirão envolve a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade e a Escola de Enfermagem. Ambas as unidades preparam um curso de Gestão em Saúde, em nível de mestrado e 40 vagas, a fim de formar especialistas em administração de hospitais e em projetos de políticas públicas para a área da saúde.

Experiências com laser do Grupo de Ótica do Instituto de Física de São Carlos (acima) e uma vista aérea do campus de São Carlos: professores querem eliminar barreiras entre exatas e humanas

Segundo Ayrton Custódio, ainda por três anos ou quatro há no campus espaço para crescer na área de saúde; depois é pensar na área de humanidades. “Por que não abrir disciplinas optativas como Teatro, Direito, História, Meio Ambiente, Jornalismo (para defesa da escola pública)? Em vez de 8 mil alunos, por que não ter 80 mil, sempre com o cuidado de não deixar cair a qualidade do ensino? Porque aí está a diferença entre a USP e as universidades particulares e algumas federais, onde ou se visa ao lucro ou os professores são horistas, não em tempo integral. O grande ensino no Brasil tem origem na escola pública; dele vêm a Embraer, a Embrapa, a Petrobras, a Aeronáutica de São Carlos.” O diretor diz que um estudo socioeconômico dos alunos revela que houve democratização de acesso às vagas oferecidas pela Fuvest.

Não pode ficar sem registro o plano de expansão da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Incorporada à USP em 1974, a FFCLRP é a unidade do sistema público de ensino superior do Estado de São Paulo com uma estrutura peculiar, em que convivem diferentes ramos do saber. Até 1999, mantinha os cursos de graduação em Biologia, Química e Psicologia; nos últimos anos, houve grande expansão, criando-se os cursos de Física Médica, Pedagogia, Ciências da Informação e Matemática Aplicada a Negócios (2004). Para 2005, o diretor Oswaldo Baffa pretende implantar cursos de graduação nas áreas de Letras, Biologia (manejo de sistemas ambientais), Biotecnologia e Engenharia Biomédica. Gradualmente, a faculdade vai tentando ganhar um perfil de humanas que, de acordo com o professor Ricciardi Cruz, do Departamento de Música, pressupõe a reflexão filosófica, histórica e artística.

São Carlos – São Carlos é o município onde as parcerias entre a USP, outras universidades, o Estado e a União ganham destaque, visando à consolidação da região como pólo de desenvolvimento tecnológico. O projeto governamental de criar um parque aeronáutico demandará mão-de-obra especializada, que as universidades devem formar. A tecnologia custa caro e não se improvisa. O diretor do Instituto de Química, professor Douglas Wagner Franco, lembra um exemplo antigo: a ascensão de Portugal no tempo das descobertas dependeu de investimentos altos; um monumento erguido em honra dos conquistadores, em Lisboa, provaria que os portugueses sabiam perfeitamente da existência do Brasil e onde ficava, graças aos estudos sobre a arte de navegar. “A Escola de Sagres era a Nasa do barco.”

Mas a decadência veio em seguida ao desmantelamento dos programas de pesquisa. Do mesmo modo a Universidade e o poder público não podem abandonar a pesquisa. Outro diretor de São Carlos, professor Antonio Rocco Lahr, da Escola de Engenharia, propõe reflexões sobre a melhor maneira de harmonizar o finito dos recursos com o infinito das aspirações dos campi. Depois de assinalar que o conhecimento novo precisa ser expandido para a comunidade em forma de algum bem ou serviço, pergunta se não valeria a pena examinar a possibilidade de, diante do novo, desvencilhar-se de algumas coisas – disciplinas, cursos – que já não têm a mesma relevância dos tempos passados. “Às vezes, para cada coisa que fazemos, uma parte precisa ficar de lado. Não gostaria de pontuar o quê, mas creio que a USP não pode desconsiderar a hipótese de deixar algo para trás”, disse.

Pesquisadores da USP em Ribeirão Preto: campus em expansão

Os cursos de menor demanda poderiam ser, total ou parcialmente, descontinuados. A verdade é que o campus de São Carlos tornou-se insuficiente, fisicamente, para comportar tantos cursos e tantas atividades acadêmicas; agora a expansão se fará no Campus II, já em obras, e para lá, segundo Rocco Lahr, tem sido levantada a possibilidade de um Instituto de Humanidades. “Não podemos mais manter a fragmentação entre exatas e humanas, pois o conhecimento vai caminhando para a fusão de áreas e a interdisciplinaridade é cada vez mais necessária.” Os novos cursos poderiam ser, entre outros, Administração Pública, Direito Ambiental e Idiomas, este sobretudo para atender às necessidades da informática. Para o diretor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, professor Plácido Zoégas Taboas, seriam ainda bem-vindos cursos de Turismo e Jornalismo Científico.

A propósito de Jornalismo, o professor Roberto Mendonça Faria, diretor do Instituto de Física, diz que gostaria de encontrar na imprensa mais notícias sobre atividades de pesquisa brasileira, defendendo parcerias entre cientistas e jornalistas. “Já não existe mais o preconceito de que se o pesquisador aparecesse na mídia era um picareta em busca de fama. Hoje, precisamos prestar contas à sociedade do nosso trabalho. A ciência brasileira alcançou a fase adulta e responde rapidamente às necessidades nacionais. País sem ciência e tecnologia está fadado a carregar pedras para quem as tem.”

Pirassununga – Um Instituto de Humanas, independente, é também aspiração do campus de Pirassununga. O diretor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, professor José Bento Ferraz, disse que assumiu o cargo, na época do reitor Jacques Marcovitch, com a missão de traçar um plano estratégico para o campus. “Temos um grupo de estudo composto por professores da Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Direito, Escola de Comunicações e Arte, Educação Física, Faculdade de Educação e da própria FZEA. Isto aqui vai ser um verdadeiro campus quando essas unidades vierem para cá”, observa, assinalando que algumas idéias já tomam corpo, a exemplo de Direito, Educação, Ecoturismo e Licenciatura na área de ciências agrárias. De acordo com o diretor, Pirassununga é o campus que mais espaço tem para novas construções, além de dispor de excelente infra-estrutura. Por isso mesmo, transformou-se em centro de treinamento e de eventos da própria Universidade. O município é típico de classe média, prestador de serviços públicos, onde se destacam três instituições: USP, Exército e Aeronáutica. Muitos jovens da cidade, mais de mil, são obrigados a estudar em outros municípios, quando poderiam freqüentar a USP, se houvesse mais cursos nas especialidades que procuram. Num raio de cem quilômetros a partir do centro de Pirassununga existem 2 milhões de habitantes; 4 milhões se considerados os municípios de Campinas e Ribeirão Preto.

Piracicaba – Na Esalq, em Piracicaba, o diretor José Roberto Postali Parra adianta que não há espaço para ciências humanas, embora reconheça que atualmente, ao contrário do tempo em que se formou, há 35 anos, quando se exigia especialização em algum ramo do conhecimento, procuram-se pessoas mais ecléticas, que conheçam áreas como computação e línguas. “Mas estamos em alta e é preciso aproveitar. O campo gera empregos, ajuda a balança comercial do País; só precisamos de vontade política e competência para suprir o mercado. Em 15 anos o Brasil será o celeiro do mundo.”

O vasto campus da USP em Pirassununga, centro de excelência na área da zootecnia: idéia é abrir cursos ligados às humanidades

De curso mais próximo das humanas, a Esalq só tem Economia, mas voltado para o homem do campo, ministrando Sociologia Rural e Cooperativismo. Nada, porém, como Antropologia, Sociologia ou Artes. Mas, na área de sua vocação – ou limitação –, o campus criou nos últimos anos três cursos noturnos, Gestão Ambiental, Ciências de Alimentos e Ciências Biológicas, que vieram se juntar a outros três cursos diurnos já consolidados: Agronomia (com 102 anos), Engenharia Florestal e Economia Florestal. Há proposta de criação de um curso de Engenharia de Madeiras, envolvendo o Departamento de Florestas da Esalq e a Federal de São Carlos. Historicamente, a USP de Piracicaba deu forte contribuição para a área de genética, agronegócios, logística de transporte e, mais recentemente, para o controle biológico de pragas em culturas como cana-de-açúcar.

No Cena (Centro de Energia Nuclear na Agricultura), instituto especializado do campus de Piracicaba, a novidade é a proposta de um curso diurno de graduação em Gestão Ambiental, em parceria com a Esalq, se possível para início em 2005. A justificativa para transformar o instituto em unidade de pesquisa e ensino, segundo o diretor Reynaldo Luiz Victoria, é que o Cena vem trabalhando com meio ambiente desde 1968 e tem professores especializados nessa área. Seus trabalhos na Amazônia sobre ciclagem de água e nutrientes, no Nordeste sobre recarga de aqüíferos e na bacia do Prata também sobre aqüíferos ganharam reconhecimento internacional. O projeto de graduação não significa abandono das pesquisas com energia nuclear aplicada a alimentos, tecnologia que passa a ser usada mais como ferramenta de trabalho. Um irradiador de grande porte está sendo instalado no campus de Piracicaba sob a responsabilidade do Cena. O diretor insiste em tranqüilizar a população que porventura ainda considere perigoso o processo de irradiação de frutas, sementes, plantas ou qualquer outra coisa. Não há possibilidade de efeitos colaterais, nem sequer nas pessoas que manejam os equipamentos, de segurança máxima. “A desinformação do público é que dificulta a instalação do irradiador”, diz Victoria. O Cena fez parte do Projeto Genoma, da Fapesp, e dispõe de moderno laboratório de seqüenciamento genético. Técnicos trabalham com genoma da cana-de-açúcar, de uva, de drosófilas (mosca) e com técnicas de transgenia.

Laboratório de Biologia de Insetos (esquerda) da centenária Esalq, em Piracicaba: pesquisas colaboram para o bom resultado da balança comercial brasileira e para a geração de empregos

Bauru – Em Bauru, a expansão de cursos e vagas só é pensada na área biológica, informa a diretora da Faculdade de Odontologia Fidela de Lima Navarro. “Talvez Terapia Ocupacional e Fisioterapia.” No município existem boas escolas de ciências humanas, como Arte e Direito, e a própria Unesp. De acordo com a diretora, a Faculdade de Odontologia tinha uma reivindicação antiga, de estar mais ligada aos órgãos centrais da Universidade. “Quando a pós-graduação foi instituída, em 1970, durante 17 anos ninguém da USP central tomou conhecimento disso. A Universidade precisa integrar-se mais.”

A expansão no campus de Bauru levou em conta a constatação de que a medicina odontológica não se limita aos dentes, mas abrange um todo formado pela boca e órgãos correlatos. Nasceu então o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho, hoje um gigante na área de fissuras e lesões craniofaciais, e depois o curso de Fonoaudiologia, que na década de 90 foi considerado um dos melhores do Brasil, interagindo com a área médica. Tanto o hospital como o curso de Fono prestam atendimento ao público, até mesmo de outros Estados. Ao mesmo tempo, são desenvolvidas linhas de pesquisa de ponta, a exemplo do estudo na área de bioquímica voltado para a engenharia de tecidos. Células retiradas de pacientes que passaram por transplante, e cultivadas em laboratório, crescem e são inseridas nesses pacientes, livrando-os de cicatrizes. “No futuro”, diz a professora Fidela, “será possível desenvolver dentes e implantá-los onde hoje só se fazem implantes metálicos ou próteses.” A diretora acredita que, a partir de agora, a tendência da Universidade seja incentivar intercâmbios, adaptar-se à globalização do desenvolvimento e, sobretudo, passar mais benefícios para a comunidade: “A USP seguirá sempre o lema de Cora Coralina: o futuro agora, o presente sempre”.

O novo prédio do Centrinho, ainda em fase de construção (esquerda), e uma das clínicas de atendimento à população da Faculdade de Odontologia de Bauru: visão mais ampla da saúde bucal

 

 




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