PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
 

A morte de dois presos de um distrito da zona oeste de São Paulo, em decorrência de tuberculose, fez com que as autoridades da Polícia procurassem o Centro de Saúde de Pinheiros com o pedido para que todos os detentos fossem examinados. Na época, a farmacêutica bioquímica Regina Maura Cabral de Melo Abrahão, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, iniciava sua pesquisa de doutorado. Regina entrou em contato com o então delegado titular da 3ª Delegacia Seccional de Polícia – Oeste, Fernão de Oliveira Santos, para aplicar os testes de identificação do bacilo de Koch nos presos de todos os distritos da região. Com o respaldo do delegado, a farmacêutica coordenou uma equipe multidisciplinar que fez busca de casos da doença em 1.052 detentos, chegando a dados assustadores. O principal deles: 64,5% dos presos estavam infectados. “Isso representa um problema de saúde pública muito sério”, alerta a pesquisadora. A tese de doutorado, orientada pelo professor Péricles Alves Nogueira, foi defendida no início de fevereiro passado na FSP.

Apesar de ser uma das doenças mais antigas e pesquisadas da história, a tuberculose ainda está entre as dez principais causas de mortalidade no planeta. Mantida a tendência atual, estima-se que até 2020 cerca de 1 bilhão de pessoas estarão infectadas no mundo – 200 milhões vão adoecer e 35 milhões perderão a vida. A facilidade do contágio, que se dá por via respiratória, é um dos grandes aliados na sua propagação. Tratada adequadamente com antibióticos ao longo de seis meses, a tuberculose é curada em 100% dos casos. Mas, como o paciente começa a melhorar já a partir do final do segundo mês, ele acaba abandonando o tratamento.

“É esse o grande problema mundial. Podemos tornar a doença incurável porque as cepas do bacilo vão ficando multirresistentes às drogas utilizadas”, diz Regina Abrahão. Outro problema grave é o vírus HIV. A Aids abala a imunidade do organismo e se torna um “combustível” para a tuberculose, que acaba sendo o maior fator de mortalidade em pacientes HIV-positivo. O estudo encontrou três presos portadores de cepas multirresistentes às drogas antituberculose. Para tratar esses doentes, o custo é muito mais alto e o período é bem mais longo, podendo chegar a até dois anos. Os antibióticos têm que ser administrados por injeções, não mais por via oral, e, além disso, por causa da resistência, perde-se tempo para descobrir qual droga fará efeito em cada caso.

Endemia mundial – A pesquisa de Regina Abrahão foi realizada entre os anos de 2000 e 2001 em nove distritos policiais da zona oeste. Logo na primeira visita, a farmacêutica experimentou a sensação chocante de entrar numa carceragem: superlotação (em média, 30 presos ocupavam celas destinadas a oito pessoas), péssimas condições de higiene, umidade e o forte cheiro. Três investigadores faziam a segurança dos pesquisadores nas delegacias. Os detentos passavam por uma entrevista sobre seus dados socioeconômicos e histórico de saúde. Esse levantamento mostrou, por exemplo, que 70% deles haviam nascido na Região Sudeste e, destes, 93% no Estado de São Paulo. A grande maioria também era muito jovem – 71,3% entre 18 e 29 anos de idade – e com pouca escolaridade (64,5% não haviam completado o ensino fundamental).

Após a coleta do escarro, foram feitos dois exames. A baciloscopia é a análise da amostra na lâmina em microscópio. Esse teste pode dar negativo mesmo numa pessoa infectada, e por isso as amostras eram ainda colocadas num meio de cultura em tubos de ensaio para um diagnóstico exato. Pela baciloscopia, o trabalho de Regina encontrou um coeficiente de prevalência de 787 por 100 mil detentos, cerca de 30 vezes mais do que a média da população da cidade. Pela cultura, o resultado foi ainda mais alarmante, com 5.310 por 100 mil – mais de 200 vezes o da população. Na Rússia, que tem proporcionalmente a maior população prisional do mundo, a incidência de tuberculose entre os presidiários é 80 vezes superior à geral. Para o especialista americano Alex Goldfarb, essa situação transforma aquele país no “epicentro de uma epidemia mundial de multidroga-resistência”.

A doutora Vera Galesi, coordenadora do Programa de Tuberculose da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, confirma que o quadro é seriíssimo. “A gravidade da endemia mundial de tuberculose no sistema prisional é enorme”, diz. Vera acompanhou desde o início o trabalho da pesquisadora da USP, que qualifica como “de muito valor, relevância e consistência”.

Regina Abrahão defende que a sociedade deve prestar atenção ao problema da tuberculose nos estabelecimentos prisionais porque, dada a facilidade de contágio da doença, os familiares dos presos são potenciais disseminadores para fora dos muros da cadeia – vale lembrar que mesmo nos distritos existe a visita íntima. “A sociedade não aceita que se gaste dinheiro com essas pessoas, mas toda a população está envolvida nisso”, afirma. Outra conclusão é que, quanto maior a permanência na cadeia, maior a chance de se infectar. O perigo é o mesmo para policiais, investigadores e escrivães que circulam nas delegacias.

A alta rotatividade dos presos, seja por transferência, fuga ou fim da pena, contribui para piorar a situação. “Quando um detento é transferido, a informação sobre a doença não segue no seu prontuário, e o tratamento é interrompido”, alerta a pesquisadora. Um dos três presos encontrados com cepa multirresistente era fugitivo de várias cadeias. A pessoa infectada por essa variedade, mesmo que jamais tenha tido tuberculose antes, terá que entrar diretamente no tratamento longo.

Mão decepada – A farmacêutica não hesita em chamar a realidade que conheceu de “mundo cão” – tanto que um dos profissionais que participavam da coleta de material não agüentou a dura rotina e desistiu do trabalho. O caso mais violento ocorreu depois que um preso inadvertidamente abriu, dentro da cela preparada para a ocasião, a cortina que ocultava um casal em pleno desfrute da visita íntima. Como a prisão se rege por um código de ética próprio (entre outras coisas, é inadmissível faltar com o respeito aos familiares, e ninguém pode encarar a mulher do outro), a punição ao detento, a servir de exemplo aos demais, apareceu no dia seguinte: a mão e o coração do preso estavam no pátio da delegacia.

Mesmo tendo vivido essa realidade, Regina Abrahão defende que 70% dos presos que conheceu não deveriam estar naquela condição. “Eles são recuperáveis e poderiam cumprir penas alternativas. Do jeito que estão, ficam lá dentro aprendendo do crime”, diz. Entre suas recomendações, sugere que o acesso dos profissionais de saúde seja facilitado nas delegacias e que exames para tuberculose e HIV sejam feitos tanto nos detentos quanto nos funcionários que ingressam no sistema prisional. A doutora lembra que moradores de rua, albergados e outros grupos marginalizados também são potenciais disseminadores da tuberculose e deveriam ser alvo de ações de saúde pública. “Minha visão sobre o assunto mudou bastante. É preciso parar de olhar apenas para quem está mais próximo de nós, e procurar o mais difícil. É fácil tratar de quem está limpinho e arrumadinho, mas é preciso ir na direção de quem está preso, vivendo na rua ou em albergues”, conclui.

 

Polícia contesta dados

Para o delegado Fernão de Oliveira Santos – que à época da coleta dos dados era titular da 3ª Delegacia Seccional Oeste –, assim como o Carandiru não existe mais, o trabalho da pesquisadora Regina Abrahão não reflete a realidade atual, embora “seja importante e tenha méritos”. “Várias das carceragens pesquisadas na época foram desativadas, como as do 7º e 33º DPs (Lapa e Pirituba). Mas qualquer trabalho de avaliação médica é bem-vindo”, afirma.

Para o delegado, agora no Departamento de Polícia Judiciária da Capital (Decap), no Jabaquara, o governo do Estado está preocupado com o assunto e tem desativado outras carceragens, transferindo os detentos para penitenciárias. “Estou há mais de 30 anos na Polícia e nunca vi nenhum governo fazer isso”, diz.

O número de pessoas presas no Estado de São Paulo praticamente dobrou nos últimos anos. Em 1997, eram 67 mil, contra quase 124 mil no final de 2003. Destes, 99 mil estão em penitenciárias e centros de detenção, sob responsabilidade da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), e os quase 25 mil restantes permanecem em delegacias, distritos e presídios – as chamadas “cadeias” – da Secretaria de Segurança Pública (SSP). Na capital, segundo dados da assessoria de imprensa da SSP, existem 55 carceragens, com 6.740 detentos. Desse total, 41 serão desativadas até o primeiro semestre de 2005 e as 14 restantes não podem ser fechadas porque atendem a presos especiais ou em trânsito. Nos últimos anos, 38 carceragens foram desativadas na capital e seus 4.151, enviados para o sistema penitenciário.

Em tese, a SAP deveria ficar com os já sentenciados, e a SSP com os não-sentenciados. No entanto, 30% dos entrevistados por Regina Abrahão já haviam sido julgados e cumpriam pena nas cadeias.

Municipalização – A assessoria de imprensa da SSP também afirma que o trabalho da pesquisadora da USP está defasado, pois “o número de presos nos 14 distritos da 3ª Delegacia Seccional, sendo que seis ainda têm carceragem, é 30% menor que o citado na pesquisa”. De acordo com essa informação – que se refere apenas à zona oeste da cidade –, permanecem detidas cerca de 740 pessoas nessas seis unidades, média de 123
em cada uma.

Vera Galesi, da Secretaria de Saúde do Estado, explica que a assistência aos presidiários nas penitenciárias da SAP é feita em hospitais e unidades próprias, inclusive com a criação de um corpo de profissionais dentro do sistema prisional. Nas cadeias, desde a municipalização da saúde, o trabalho cabe aos órgãos municipais, “que o realizam com as pernas que têm”, salienta. A coordenadora lembra que, em 24 de março, Dia Mundial da Tuberculose, um evento reunirá em Guarulhos cerca de 700 profissionais de saúde e representantes de ONGs e entidades que trabalham com portadores de HIV, moradores de rua e assistência a presos. “É mais uma oportunidade para chamar a atenção da sociedade
para o problema”, diz.

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]