Se
temos uma família não precisamos inventar outra. A
frase de Thomas Mann, ensaísta alemão – Prêmio
Nobel de Literatura em 1929 –, abre a tese de doutorado do
médico neurocirurgião Adriano Yacubian Fernandes.
Essa frase, aliás, tem conduzido a carreira científica
do pesquisador, que em vez de mergulhar em estudos estratosféricos
prefere olhar ao redor e perceber o que pode ser melhorado.
Foi assim no projeto de pesquisa inédito – transformado
em tese defendida, em 2002, no Programa de Pós-Graduação
em Neurologia da Faculdade de Medicina da USP – que desenvolveu
com pacientes do Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais, o popular Centrinho da USP, em Bauru. “Já
havia no hospital um trabalho sólido e reconhecido com pacientes
portadores de síndromes (conjunto de sintomas que coletivamente
caracterizam uma doença). Então, o que fiz foi complementar
a atenção dada aos pacientes com um aparato tecnológico
capaz de propiciar diagnósticos por imagem e também
sistematizar pesquisas importantes por meio desse equipamento”,
relata.
A
mesma lição de Thomas Mann, seguida à risca
pelo pesquisador, também pode explicar a intrínseca
relação que a família Yacubian Fernandes mantém
com a Universidade de São Paulo. Afinal, eles são
todos filhos da USP.
Sem distinguir vida pessoal de profissional, Adriano ressalta que
a medicina ainda tem algo de sacerdócio. “É
uma escolha, uma opção de vida”, define. Sacerdócio
e opção que, no seu caso, foram praticamente herdados.
Filho do neurologista Laertel Fernandes Fassoni e da neuropediatra
Lucin Yacubian, Adriano, de 35 anos, transita entre os jovens médicos
que se destacam no Brasil não só pela atuação
clínica, mas pela dedicação à pesquisa
e à extensão de serviços para a comunidade.
Família uspiana
A história dessa família de uspianos começou
a ser escrita lá atrás, em 1961, quando a décima
turma do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto fervilhava de idéias e ideais. Oitenta alunos movimentavam
aquela fazenda, que guardava, bucolicamente, anseios de uma profissão
cheia de status e glamour. Entre eles, a vitoriosa Lucin, que superara
as dificuldades enfrentadas por descendentes de estrangeiros e ingressara
no curso de Medicina da USP – um orgulho para a família.
Seus pais armênios vieram para o Brasil na década de
30, fugindo dos turcos. Na mesma turma, o bauruense Laertel tornava
seu sonho realidade.
“A USP ainda representa a nata cultural e intelectual da sociedade,
por isso, às vezes, quando falamos que somos uspianos, causamos
um certo mal-estar nas pessoas. Como se a USP fosse inatingível”,
observa Lucin Yacubian. “Para mim, que vinha de uma família
humilde, ingressar na USP, no curso de Medicina, foi uma conquista.”
Ainda no segundo ano da faculdade, o então aluno de Medicina
Laertel Fernandes Fassoni e mais oito amigos fundaram o Curso Oswaldo
Cruz (COC) de Ribeirão Preto – hoje, a maior escola
particular da região –, onde chegou a lecionar. “Nós
éramos muito unidos e atuantes”, diz.
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Adriano
com o pai,
o também médico Laertel Fernandes Fassoni (acima).
Ao lado o jovem cientista em atividade na USP
de Bauru:
vidas dedicadas ao bem-estar
da sociedade brasileira |
No quarto ano de medicina, em meio a badalos, trabalhos e pesquisas,
a amizade de Laertel e Lucin se transformou em namoro. Em 1967,
logo após a formatura, eles se casaram. Na residência
médica, em 1968, no Hospital das Clínicas de Ribeirão
Preto, nascia Adriano, o primeiro filho do casal. “Os médicos
que acompanharam a gravidez e fizeram o parto eram nossos professores”,
recorda-se Lucin. “Eu nasci, literalmente, no meio do trabalho
de meus pais”, brinca Adriano.
Brincadeiras
à parte, inevitavelmente Adriano sofreu influência
dos pais na escolha da profissão. Mas, segundo ele, o que
falou mais alto mesmo foi o desejo, que surgiu naturalmente, de
ser útil à sociedade. Antes da escolha, porém,
fez algumas tentativas para se certificar de que estava fazendo
a opção correta. Aos 14 anos, em Bauru, cidade natal
de seu pai – para onde o casal se mudou dois anos depois da
residência médica e se estabeleceu na área clínica
–, ainda cursando o ensino fundamental, Adriano prestou vestibular
para o curso de Direito do Instituto Toledo de Ensino (ITE) e obteve
o quinto lugar. No ano seguinte, só para checar seu grau
de conhecimento, decidiu repetir o vestibular de Direito e encabeçou
a lista de classificados. “Eu já não pensava
em cursar Direito. Prestei o vestibular só para testar meus
conhecimentos”, revela com certa timidez. “Não
vejo mérito nessas classificações. Eu era jovem
e tinha a oportunidade de estudar.”
Mas o brilhantismo do aluno não parou aí. Aos 17 anos,
o jovem Yacubian foi o segundo classificado para o curso de Medicina
da USP, em São Paulo, vendo-se obrigado a deixar a família
para morar na capital paulista. “Foi um período de
muitas mudanças, o curso de medicina é exigente, mas
o convívio no campus, as festas e as atividades esportivas
foram fundamentais para a minha adaptação”,
lembra. A promissora e brilhante trajetória dava, então,
seus primeiros passos em meados da década de 80.
“Ainda na época do vestibular Adriano questionava qual
seria o melhor caminho a seguir. Eu só apontei o leque de
possibilidades da área médica. Ele decidiu”,
conta o pai. Mas ele admite que, até o período da
residência, o jovem fazia cobranças pela vida sacrificada
que levava, vivenciando a medicina das 6 da manhã às
10 da noite. “Eu só respirei aliviado no dia em que
vi o Adriano fazendo a cabeça do caçula, Rodrigo,
para seguir a medicina”, lembra. “O Adriano é
de 7 de setembro, é caxias até nisso. E o caçula,
o Rodrigo, é de 6 de setembro. Portanto, eles têm exatamente
seis anos e um dia de diferença e passaram por experiências
muito parecidas. Essa é uma curiosidade de família”,
observa o pai, bem-humorado. O filho Rodrigo Yacubian Fernandes,
28 anos, também é formado em Medicina pela USP, em
São Paulo, e especializado em radiologia. “Além
de médico, Rodrigo é esportista. Recebeu medalha de
prata no Pan-Americano de 2003 no pólo aquático”,
ressalta a mãe.
“Hoje eu me questiono se nós influenciamos nossos filhos
na escolha pela medicina. Mas acho que não. A Luciana, por
exemplo, optou por fazer arquitetura”, reflete Lucin. A segunda
filha do casal é formada pela Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU) da USP, em São Paulo. “Nós costumamos
dizer que a Luciana é a única inteligente da família
porque escolheu artes”, brinca Adriano.
“Uma espécie de aviação”
Os livros de neurocirurgia comparam o ofício à aviação,
em virtude dos altos riscos e da necessidade de tomada de decisões
rápidas que equivalem à vida ou à morte. Por
isso mesmo é que Adriano não pensava em fazer residência
na área de cirurgia. “A matéria de neurociência
já me interessava muito, mas até o último ano
eu não pensava em fazer cirurgia porque essa área
tem um perfil específico, com nível de exigência
muito alto”, conta.
Às vésperas de começar a residência médica,
com duração de cinco anos, num ato denominado por
ele mesmo como rebeldia, Adriano optou pela residência em
neurocirurgia. “Era uma residência sabidamente mais
sacrificada e, talvez por isso mesmo, eu fiz a escolha.” Ele
conta que alguns colegas desistiram no meio do treinamento porque,
realmente, em alguns momentos, o trabalho vivido pelos jovens médicos
beira o desumano. “Não pensei em desistir, mas só
no final eu estava completamente satisfeito com a escolha”,
confidencia. “O tempo todo tomamos contato com situações
delicadas que dependem de decisões rápidas e, especialmente,
de compromisso com o paciente. Se um dia eu não mais praticar
a neurocirurgia, valeu por tudo o que aprendi como profissional
e ser humano”, relata.
Especialista
em Neurocirurgia pela Associação Médica Brasileira
e Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, doutor em Neurologia pela
Faculdade de Medicina da USP, membro titular da Sociedade Brasileira
de Neurocirurgia (SBN) e segundo vice-presidente da Sociedade de
Neurocirurgia do Estado de São Paulo (Sonesp), Adriano é,
também, diretor do Departamento Científico da Associação
Paulista de Medicina (APM), Regional Bauru, onde se responsabiliza
pela organização de eventos da casa. É membro
da equipe de neurocirurgia da Associação Hospitalar
de Bauru e, há seis anos na USP, desenvolve trabalhos numa
linha de pesquisa na qual poucos se destacam – estudos neurocirúrgicos
de malformados por meio de métodos de imagens, com apoio
da Fapesp, onde se enquadra como jovem cientista.
Tal atuação vem lhe garantindo uma trajetória
científica promissora, inclusive no cenário internacional.
Ele coordena, por exemplo, um intercâmbio universitário
com o Hospital de Bicètre, em Paris, que oferece anualmente
uma bolsa a brasileiros. Num outro trabalho – que já
dura cinco anos –, feito em parceria com especialistas de
Bauru, Adriano reestruturou o serviço de neurocirurgia de
alta complexidade de um hospital público da cidade –
o Hospital de Base, pertencente à Associação
Hospitalar de Bauru –, aumentando significativamente o número
de cirurgias de traumas e oferecendo melhores condições
de atender à demanda de pacientes. Resultados preliminares
desse trabalho foram apresentados como modelo no 12º Congresso Europeu
de Neurocirurgia, realizado em Portugal em setembro de 2003.
Além dessas atividades, Adriano é docente da Faculdade
de Odontologia de Bauru (FOB) da USP e da Faculdade de Medicina
de Botucatu da Unesp. Também ministra aulas como professor
convidado do Curso de Pós-Graduação do Centrinho,
nas disciplinas de Distúrbios da Comunicação
e Imaginologia Aplicada aos Distúrbios da Comunicação
Humana.
Pense Bem
A formação humanista oferecida pelos pais, com respaldo
da USP, complementada pela filosofia interdisciplinar disseminada
pelo Centrinho, abriu para Adriano um horizonte sem fronteiras.
Dessa maneira, o médico atua com a mesma dedicação
e mobilidade desde a área da pesquisa altamente especializada,
passando pela clínica e desencadeando exemplos de ações
preventivas e educativas em trabalhos voluntários.
O bem-sucedido projeto Pense Bem, de prevenção de
traumas de crânio e medula espinhal, promovido pela Sociedade
Brasileira de Neurocirurgia, é o maior trabalho de ação
comunitária coordenado pelo médico. Implantado em
Bauru em 2000, graças à iniciativa voluntária
de Adriano, de seus colegas neurocirurgiões Mateus Violin
Silva e Paulo Laronga e da psicóloga Luciana Neuber Bien,
o projeto foi criado no Brasil a partir da versão do original
americano Think First, existente nos Estados Unidos há mais
de 15 anos.
“A idéia é prevenir neurotraumas, fazendo campanhas
de conscientização contra a violência urbana,
principalmente em escolas”, afirma Adriano. O público-alvo
desse projeto são os jovens de 15 a 24 anos. Descaso, displicência,
distração, alcoolismo e consumo de drogas ilícitas
estão no topo da lista dos fatores de risco responsáveis
por acidentes que terminam com sérios traumas cranianos.
Segundo ele, num único dia o Hospital de Base registrou dez
casos de traumas cranianos. Só nos Estados Unidos, a cada
ano 50 mil crianças têm danos cerebrais associados
a acidentes com bicicletas, das quais 400 morrem. Outro dado que
chama a atenção é o número de americanos
que apresentam ferimentos cerebrais traumáticos: mais de
2 milhões por ano, a maioria com idade entre 13 e 18 anos.
Atualmente, seis voluntários atuam no Pense Bem de Bauru.
A idéia é simples: mensalmente, um grupo médico
se reúne para elaborar estratégias de prevenção
e de esclarecimento à população. A partir dessas
estratégias, eles vão às escolas proferir palestras,
apresentar vídeos e conversar com os estudantes, muitas vezes
levando um jovem que tenha sofrido algum traumatismo e esteja disposto
a relatar sua história. De acordo com os voluntários,
essa é uma das atividades mais impactantes do programa, justamente
por trazer à tona relatos de jovens que sofrem com o trauma.
“Esses relatos são importantes para que os jovens entendam
que as lesões podem acontecer com qualquer um que esteja
realizando atividades de risco, comuns à adolescência”,
conta Gustavo Ducatti, neurocirurgião voluntário do
programa Pense Bem em Bauru. “Pessoas de todas as idades e
profissões podem e devem participar, afinal a nossa mensagem
é para que todos entendam que podem se divertir e, ao mesmo
tempo, evitar ferimentos, se pensarem bem e usarem a mente para
proteger o corpo”, completa Adriano. Mais informações
sobre o programa Pense Bem estão na página eletrônica
www.sbn.com.br/programas/pensebem.htm.
Uma
tecnologia de ponta
Estima-se que haja no Estado de São Paulo apenas dez equipamentos
similares ao adquirido pela Fapesp e utilizado pelo neurocirurgião
Adriano Yacubian Fernandes e sua equipe na pesquisa de pacientes
do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais,
o Centrinho da USP, em Bauru. Trata-se de uma tecnologia de ponta
utilizada no pós-processamento de imagens obtidas por equipamentos
de tomografia computadorizada, ressonância magnética
e medicina nuclear.
Por meio de um sofisticado algoritmo chamado 3D Volume Rendering,
a estação de trabalho associa diferentes cores e transparências
aos vários tecidos que constituem o corpo humano, criando
imagens tridimensionais de alta qualidade. É um poderoso
auxiliar para o diagnóstico médico e tem grande importância
no planejamento cirúrgico.
Além
de processar imagens, essa estação de trabalho também
funciona como unidade de distribuição de imagens via
Internet. Com uma senha é possível acessar o equipamento
e baixar reconstruções 3D em qualquer computador ligado
à rede. Todas essas características estão reunidas
em uma única interface, desenvolvida pela Toshiba. O software
utilizado é o Alatoview, que roda sob uma base computacional
Silicon Graphics. Esse é o mesmo tipo de computador utilizado
em Hollywood para a elaboração dos efeitos especiais
no cinema. Por se tratar de uma plataforma desenvolvida especificamente
para processamento de imagens, a Toshiba optou por ela, pois permite
rápido processamento de grandes volumes de dados, comuns
nas imagens clínicas.
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