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Mary McAleese na USP: “O saber é o grande recurso da Irlanda”


A
entrada da Irlanda na União Européia (UE), em 1973, mudou a face do país e permitiu que a nação, que chegou a ser conhecida como uma espécie de representante do Terceiro Mundo no continente, se transformasse numa das mais ricas da Europa. A experiência irlandesa foi narrada pela presidente do país, Mary McAleese, que fez palestra a estudantes e professores no dia 26 de março na Sala do Conselho Universitário da USP. O salto da Irlanda é tão significativo que o PIB per capita do país, que era de 60% da média européia, hoje chega a 130%, disse a presidente. No Brasil, Mary McAleese cumpriu um programa de visitas a autoridades como o governador Geraldo Alckmin e o presidente Lula. A conferência na USP foi uma iniciativa do Programa de Pós-Graduação de Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês, ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e teve apoio da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses.

“É impossível listar tudo o que mudou no país nesses 30 anos”, disse a presidente. “A história da Irlanda é a história de sucesso por excelência da UE.” A fundação da então Comunidade Econômica Européia deu-se em 1957, depois que líderes do continente concluíram que a reconstrução dos países destroçados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) demandaria parcerias e visões conjuntas de futuro. No próximo dia 1º de maio, dez novas nações se juntarão ao bloco: Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e República Checa. No momento, a Irlanda ocupa a presidência rotativa da UE, o que, para Mary, a deixa na posição de “dar calorosas boas-vindas aos novos integrantes”. “O grande desafio será gerenciar uma família que passa de 15 para 25 membros”, afirmou. Entre os temas a ser analisados pela nova “família” está a finalização da Constituição Européia.

Mary salientou o mérito dos novos integrantes da UE, pois o ingresso no bloco depende do enquadramento em rígidas normas políticas e econômicas. “Alguns dos países que entram têm uma história profundamente trágica. Para eles, a Segunda Guerra acabou há pouco mais de dez anos.” Lembrando que “a Europa possui milhões de túmulos de jovens e adolescentes que morreram em guerras”, a presidente reiterou que “a UE é para que todos possam chegar à meia-idade e à velhice. Lutando juntos, vamos tornar mais forte a vida dos nossos jovens.”

A história de sucesso e mudanças da Irlanda foi extremamente difícil. Basta lembrar que, a partir de 1845, o país enfrentou a chamada Grande Fome, provocada por fungos que afetaram as plantações e causaram a morte, por fome ou doenças, de aproximadamente 1 milhão de pessoas. Abandonaram a ilha outros cerca de 1,5 a 2 milhões de cidadãos, que emigraram principalmente para os Estados Unidos, Austrália e outras regiões. Por muito tempo a terra dos celtas sofreu as conseqüências dessa tragédia, o que fez Mary McAleese dizer que, “pela primeira vez em 150 anos, estamos recebendo imigrantes e também os irlandeses de volta”. Vivem no país atualmente cerca de 3,7 milhões de habitantes.

Conhecimento

Alcançar os patamares de hoje foi um processo de décadas de sacrifício, lembrou a presidente, não um fato que se deu do dia para a noite. O principal investimento foi em educação. “Não temos grandes recursos naturais. Nosso grande recurso é o conhecimento do nosso povo”, afirmou. O desemprego, que batia na casa dos 20% da população, hoje está em 4%. Outro fator importante lembrado por Mary foi o ingresso decidido da mulher em todos os setores de atividade. “Hoje somos uma sociedade tentando voar com duas asas, não só com uma, como no passado.”

Também fez parte do processo de mudanças a diminuição da histórica dependência política e econômica do país em relação à Inglaterra. “Quase sempre o vizinho mais próximo é o seu principal problema”, disse, referindo-se às relações com a nação-chefe do Reino Unido. Durante décadas, os irlandeses lutaram pela independência dos britânicos, proclamando a República no Levante da Páscoa de 1916. Entre 1919 e 1921, travou-se a Guerra da Independência. Em conseqüência dela, em 1922 um tratado criou o Estado Livre da Irlanda, deixando de fora os territórios do Norte, que permaneceram ligados ao Reino Unido. O país foi aos poucos cortando os laços com a Grã-Bretanha e em 1949 a República da Irlanda tornou-se finalmente independente. “Depois que nos sentamos à mesa como iguais e nos tornamos parceiros, a atitude é completamente diferente. Somos bons vizinhos um para o outro e diminuímos os conflitos de gerações, inclusive ajudando no processo de paz da Irlanda do Norte”, disse Mary.
Apenas entrar na UE, entretanto, não basta, revelou. É preciso saber aproveitar as oportunidades. “É aí que vejo a Irlanda como exemplo”, apontou. A oportunidade que foi dada ao país, segundo ela, foi a de poder negociar, em pé de igualdade, com as potências européias. “Entendemos nosso papel e demos uma contribuição significativa para o futuro da comunidade. Adquirimos uma voz muito mais forte na Europa e no mundo.” Em função disso, os laços econômicos e culturais da Irlanda com outras partes do mundo se expandiram bastante. Os resultados foram excelentes: a Irlanda certamente produziu nomes importantes na história ocidental de forma quase desproporcional ao seu território de pouco mais de 70 mil quilômetros quadrados. Na literatura, por exemplo, o país formou escritores como Samuel Beckett, James Joyce, George Bernard Shaw, W. B. Yeats e Oscar Wilde. “Sempre que vou à França, tenho que lembrá-los de que Beckett não é francês”, brincou a presidente.

Mary McAleese também falou do papel fundamental do país para a conservação da cultura européia e do cristianismo quando da queda do Império Romano e das invasões bárbaras, a partir do ano 410. É o escritor Thomas Cahill, no livro Como os irlandeses salvaram a civilização (Editora Objetiva), quem atesta: “Enquanto ruía o Império Romano, enquanto a Europa se emaranhava e bárbaros imundos saqueavam cidades, apossando-se de objetos de arte e queimando livros, os irlandeses, que então começavam a ler e a escrever, assumiram a grande tarefa de copiar toda a literatura ocidental – tudo que lhes caía em mãos. Através do trabalho de tais escribas, as culturas greco-romana e judeu-cristã seriam transmitidas às tribos da Europa, recém-estabelecidas em meio ao entulho e aos vinhedos destruídos de uma civilização que acabava de ruir. Onde quer que fossem, os irlandeses levavam consigo seus livros, muitos desaparecidos da Europa há séculos, e traziam-nos amarrados à cinta, em sinal de triunfo, assim como os heróis lendários traziam à cinta a cabeça dos inimigos. Onde quer que fossem, levavam consigo o gosto pelo estudo e o talento para a confecção de livros. Nas baías e vales do exílio, restabeleceram o letramento e deram vida nova à exaurida cultura literária européia”.

Terrorismo

Mary McAleese ressaltou que Brasil e Irlanda não são estranhos um para o outro. Em sua opinião, o Brasil, país de grandes recursos naturais, não pode usá-los apenas para o benefício de uma elite. “Temos a obrigação de compartilhar com todas as pessoas tudo aquilo que promove inclusão social”, defendeu. Perguntada sobre o futuro da Europa em relação ao terrorismo, a presidente lembrou que seu país tem grande experiência no combate a grupos paramilitares como o IRA (Exército Republicano Irlandês). “Como políticos democratas, temos a convicção de que a violência é o caminho errado. Temos que dizer aos terroristas e a seus parceiros políticos que não se atingem seus objetivos com violência. Não estamos dizendo não aos objetivos, mas sim ao método”, afirmou. Para ela, os “serviços de inteligência nacionais têm que trabalhar muito mais juntos do que hoje, fazendo com que a informação flua mais rápida e livre”.

Antes de sua conferência, Mary McAleese recebeu a Medalha de Honra da USP das mãos do vice-reitor, professor Hélio Nogueira da Cruz. A mesa foi composta ainda pelo professor da Faculdade de Direito Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso. A presidência da Irlanda, ocupada por Mary desde novembro de 1997, não é um cargo com poderes executivos, que pertencem à função do primeiro-ministro, e é vista como uma espécie de guardiã da Constituição do país. Nascida em 1951 em Belfast, Mary McAleese tornou-se a primeira presidente oriunda da Irlanda do Norte. É formada em Direito e trabalhou como professora e jornalista.


 




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