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Vanderlei Bispo, da Aplicação: alunos rodeados por livros
 
 



Q
uando o aluno do quarto ano do ensino fundamental continua sem saber ler nem escrever; quando, no último ano do ensino médio, não consegue entender e interpretar o livro que foi obrigado a ler; ou quando, já na universidade, é incapaz de fazer uma síntese pessoal dos conteúdos ministrados nas diversas disciplinas do curso, alguma coisa está errada. No aluno, no professor, na escola ou no sistema de educação do País. Educadores que atuam na USP ou em instituições privadas apontam problemas e sugerem tentativas de solução, que passam por mais investimentos, por uma formação voltada não exclusivamente para o consumo e o mercado, mas para as humanidades, a literatura e as artes. Em resumo, para a formação da personalidade.

A diretora da Faculdade de Educação da USP, professora Selma Garrido Pimenta, acredita que a educação vai se tornando cada vez mais um meio de consumo, numa sociedade globalizada em que o indivíduo deve construir a própria empregabilidade e investir na sua qualificação profissional para enfrentar o mercado; não há mais a configuração do trabalho em forma de emprego, como havia 20 anos atrás; agora o jeito é ser autônomo. Se de parte do governo faltam investimentos para melhorar o nível das escolas, públicas e gratuitas, resta aos jovens próximos da fase do primeiro emprego se preparar para a vida, arcando com os custos de cursos práticos, como inglês, espanhol e informática. E quem consegue entrar na universidade, continua considerando o ensino superior como uma maneira a mais para competir no mercado.

Pela lógica da finalidade da educação escolar, todo aluno que terminasse o ensino médio deveria estar em condições de cursar o terceiro grau; no entanto, como o sistema universitário não consegue absorver todos os concluintes do curso médio – assim como a estrutura do ensino médio não comportaria todos os alunos egressos do ensino fundamental –, criou-se a figura dos exames vestibulares e, em seguida, a dos cursinhos, que, segundo a professora Selma, são uma evidência de que a escolaridade fundamental não dá conta do preparo.

As provas dos vestibulares determinam o projeto pedagógico dos cursinhos e, num efeito cascata, o ensino médio, especialmente nas escolas particulares, acaba também ajustando o seu projeto pedagógico ao que o vestibular pede. Para fugir um pouco a esse círculo vicioso, os próprios vestibulares se sofisticaram, introduzindo alterações nas provas, para torná-las mais abertas e mais exigentes do que as perguntas de múltipla escolha assinaladas com um X e com boa probabilidade de acerto por acaso.

Nesse contexto entra a valorização da literatura e o incentivo à leitura das grandes obras, passos importantes na formação dos jovens. A reação imediata dos cursinhos à lista de livros da Fuvest (e outros organizadores de provas) foi, segundo Selma, traduzir a exigência dos vestibulares em mais um requisito técnico para se sair bem nos testes. “O livro acabou sendo colocado como mais um fator de mercado, de consumo. O jovem lê, não por conta do que o livro lhe possa dizer, mas como obrigação, da mesma forma que antes aprendia matemática ou as fórmulas da física ou da química, apenas para passar no vestibular.”

De acordo com a diretora da Faculdade da Educação, muitas escolas do ensino médio deixam de aproveitar a exigência de leitura num trabalho de formação humana, educativa, e entram no jogo dos cursinhos, pressionadas pelas famílias dos alunos que querem os seus filhos na universidade a qualquer preço. “O valor da educação como formação humana”, insiste a professora, “está profundamente esgarçado e esvaziado no social. O ensino médio se reduziu a preparar o aluno para o vestibular.”

Segunda categoria

Também na opinião de outro professor da USP, Antonio Joaquim Severino, de Filosofia de Educação, as pressões fizeram do ensino médio “vestíbulo para o vestibular”, um segmento frágil, precário e abandonado, particularmente na escola pública. Não se leva em conta que o ensino médio deve ter caráter de terminalidade; pelo contrário, todo jovem que entra nele aspira chegar à universidade, meta cada vez mais acessível em razão da proliferação de escolas privadas de terceiro grau, em grande parte de má qualidade. Considerar o ensino médio como sendo de segunda categoria é uma forma de preconceito da sociedade. É preciso torná-lo mais abrangente com a inclusão de disciplinas como filosofia e ciências humanas, mas o sistema federal demonstra má vontade em relação a isso. O governo cuida mais do ensino fundamental, que tem acesso facilitado e material didático de melhor qualidade. No ensino médio deveria ser dada continuidade a esse processo, mas, ao contrário disso, ele começa a ser pensado como transição para a universidade. De qualquer modo, Severino não vê saída se não houver mudança geral na educação, considerando os vestibulares um defeito do sistema, e os cursinhos, uma aberração.

Voltando à professora Selma Pimenta, ela considera que a forma errada de aprendizado no ensino médio terá reflexos na formação que o aluno terá na universidade, se chegar lá, e no exercício de sua profissão. Como poderá contribuir para o aprimoramento da sociedade em que vive se nunca desenvolveu a sua própria sensibilidade? Selma também distingue informação de conhecimento; este só existe quando a pessoa é capaz de fazer uma análise das informações, de descobrir as fontes geradoras da informação, de fazer um trabalho de mediação. Não existe conhecimento quando, por exemplo, se reduz o ensino da literatura a uma desconstrução mecânica do texto; é preciso entendê-lo por dentro. E aí entra o papel da escola e do livro didático.

Confirmando o que disse o professor Severino em relação à melhor estruturação do ensino fundamental, Selma observa um esforço de investimento em material didático por parte de editoras e do próprio governo federal. A professora dá sua contribuição pessoal num projeto de livro didático da Editora Cortez. Várias editoras têm divulgado boa literatura em diferentes formatos, começando pelos infantis, escritores são convidados a apresentar textos com nova linguagem e o Ministério da Educação anuncia um programa de lançamento de obras reescritas de autores como João Guimarães Rosa.

Tradicionalmente, o MEC, por intermédio de um corpo de especialistas em várias áreas, analisa os conteúdos dos livros didáticos lançados em todo o País e os recomenda ou reprova. As escolas públicas recebem de graça os livros do ensino fundamental; para este ano, o Programa Nacional do Livro Didático anuncia a entrega de 116 milhões de títulos, referentes a Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, História e Geografia, além de dicionários de Português e livros em braile. É um recorde mundial, segundo o MEC.

Em vez de comprar os livros de entidades privadas e distribuí-los, talvez fosse mais interessante que o MEC investisse na formação de bibliotecas básicas nas escolas, que poderiam enriquecê-las com literatura regional, conforme o projeto pedagógico de cada uma, visto que cada unidade da Federação tem aspectos geográficos e sociais específicos, necessitando de tratamento diferenciado. Esta é uma das propostas de professores da Faculdade de Educação da USP, que ainda apresentam outro bom motivo para a montagem de bibliotecas básicas: o fato de os professores, que em tese devem examinar os livros didáticos e escolher os mais apropriados para uso na sua escola, nem sempre estarem preparados para a tarefa. Por último, a remessa pelo correio de milhões de livros custa muito caro ao MEC, despesa que seria eliminada ou minorada sensivelmente.

Aplicação

A Escola de Aplicação da USP, com aproximadamente 700 alunos distribuídos pelo ensino fundamental e médio, é uma das beneficiárias dos livros do MEC. Eles são sugeridos por grupos de professores com acompanhamento da comissão pedagógica educacional. “Nosso projeto pedagógico tem como princípio que o aluno seja o sujeito máximo de sua aprendizagem”, explica o diretor da escola, professor Vanderlei Pinheiro Bispo. “A escolha do livro didático precisa atender ao projeto. Só que esse critério é apenas uma parte do trabalho; o mais importante é o professor”. Segundo o diretor, a Escola de Aplicação prefere sempre manuais menos dirigidos, que em nada se pareçam com camisa-de-força e que permitam ao aluno desenvolver suas habilidades e competências. É claro que não podem ter erros conceituais, nem sugerir algum tipo de discriminação ou preconceito, “como ocorre muitas vezes”.
A Escola de Aplicação tem como característica atuar no campo da pesquisa educacional. No momento, existem cerca de 20 estudos, levados adiante por pesquisadores da Faculdade de Educação, de outras unidades da USP e de outras universidades. Segundo o diretor da escola, as pesquisas constituem reflexões sobre diversos aspectos da educação e podem até ser aproveitadas pela equipe pedagógica. O que lá não se tolera é o ensino apostilado, geralmente preparado por cursinhos e dirigido preferencialmente aos vestibulares. “Não queremos isso”, afirma Vanderlei Bispo; “o vestibular é decorrência da escolarização. Temos objetivos maiores e usamos os recursos didáticos produzidos pelos professores, como vídeos e jogos. Materiais conteudísticos, de reprodução, não atendem às nossas necessidades. Para nós, o importante é que o professor saiba usar o material e produzir o seu”. A escola possui quatro laboratórios — de química, física, ciências e biologia. Ao final do curso boa parte dos alunos consegue entrar na universidade, ou em uma das três oficiais do Estado (USP, Unesp e Unicamp) ou em instituições particulares.



Como carrapato na cabeça

“O ensino de coisas não inseridas no contexto pragmático do aluno equivale à introdução de um carrapato no cérebro, que suga a memória e a inteligência para si, tirando-as da vida do aluno.” A observação do médico-psiquiatra e educador Carlos Amadeu Botelho Byington no livro A construção amorosa do saber (Religare, 2003) bate com as recomendações do coordenador pedagógico do Grupo Positivo, professor Durval Machado Tavares. Fundado em 1972 por professores empresários e atuando nas áreas de educação (do nível infantil ao universitário), informática e editorial, o grupo de Curitiba fornece livros didáticos para 2.200 escolas brasileiras e faz um acompanhamento continuado de seu uso.

Segundo o coordenador, o projeto pedagógico leva em conta que a aprendizagem extrapola o ambiente escolar, exigindo do aluno, além do domínio do conteúdo das disciplinas, criatividade, liderança e poder de síntese. Sem desprezar a memorização, que é necessária em muitos casos (tabuada, fórmulas matemáticas ou de química e física), o projeto pedagógico e, conseqüentemente, o livro didático, precisam incluir noções de cidadania e meio ambiente. E o mais importante: o aluno só domina o conhecimento científico quando envolvido pessoalmente no assunto da aula, “adora quando sente que há uma finalidade”.

Um exemplo: uma aula sobre a água no ensino fundamental leva o aluno a entender as fontes, o desperdício, o porcentual de água potável no mundo, a leitura pelo hidrômetro (matemática), as contas de água, a tecnologia de tratamento (substâncias químicas usadas), a poluição, etc. Se a aula for de geografia física, em vez de o professor exigir a memorização mecânica dos rios da Amazônia, conseguirá melhores resultados se incluir informações sobre a vida humana na região, a cultura dos brancos e índios, seus hábitos, a fauna, a flora, a pesca, as enchentes, as diferentes cores da água. “O ser humano se sente realizado quando aprende
e a recompensa é a satisfação pelo que foi aprendido. O professor é o elemento instigador.”
Tudo de acordo com a pedagogia simbólica junquiana, explicada por Byigton, que entre outros temas para uma aula participativa e interessante propõe estes: “A física da chuva que está caindo na pátio. A físico-química de um chá com bolinhos preparados pela classe. A digestão desde a produção da saliva até o bolinho ir para o bolo fecal. A urina resultante do chá, filtrada pelo rim e fazendo parte do ecossistema. O sistema de filtração dos rins e a poluição do rio Tietê e da represa de Guarapiranga. As reservas de água...”.

Despertar no aluno a vontade de estudar é o que pretendem os livros didáticos que o professor Durval Tavares coordena. Dois momentos históricos fundamentam a sua pedagogia: o do predomínio da razão, que tem em René Descartes o representante maior, e o da emoção, mais recente e que despertaria a vontade de estudar. Também aí o professor de Curitiba dá um exemplo: quando um aluno da 7a série não sabe calcular a área de um quadrado, é bom que o professor saiba que o mais grave não é o fato de o estudante desconhecer o modo de calcular a área do quadrado, mas de nunca ter tido vontade de calculá-la. Não era problema de sua vida e não foi estimulado a aprender.

“O interesse é filho da necessidade.” Outra coisa: o professor passa 80% da aula dando respostas a perguntas dele mesmo,
não dos alunos. A escala do aprender é pensar, sentir, querer.

Sobre a tendência do ensino médio, de dar prioridade à preparação para os vestibulares, Durval Tavares diz que, se a escola pensar o tempo todo nisso, o seu aluno acaba passando mesmo nas provas, mas, já no terceiro grau, não saberá como fazer. O desafio é envolvê-lo profundamente no estudo, que é para a vida, não para a escola.

Outro grupo envolvido no ensino e na produção de livro didático (apostila-caderno) desde os anos 70 é o Anglo, de São Paulo, que mantém convênios com cerca de 500 escolas em todo o País. Nicolau Marmo, coordenador-geral do sistema, afirma que a proposta é dotar o aluno de uma estrutura mental que lhe permita processar as informações e transformá-las em conhecimento útil. O material didático apóia-se, segundo o professor, em cinco pilares: aula bem proposta, aula bem preparada, aula bem dada, aula bem assistida e aula bem estudada. Na aula “bem assistida” as portas se fecham e o aluno não pode sair antes do fim; na “bem estudada”, o aluno deveria levar para casa tarefas e exercícios de todas as disciplinas. Sobre os vestibulares, Marmo informa que apenas no terceiro ano do ensino médio pensa-se neles
como prioridade.

 

 

 




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