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O sociólogo Octavio Ianni: um cientista admirável e empenhado
na análise e na resolução dos conflitos brasileiros


D
ia 3 de março, uma platéia calculada em 2 mil pessoas, entre alunos e professores que lotaram o interior e os espaços abertos do anfiteatro da USP, aplaudiu por dez minutos a aula inaugural do semestre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, despedindo-se informalmente do sociólogo Octavio Ianni, que escolheu para último tema “Variações sobre ciência e arte”; dia 5 de abril, a despedida final do professor foi na capela do cemitério municipal de Itu, sua terra, sob aplausos de uma outra platéia, mais sisuda, mas também composta por admiradores, ex-alunos, sociólogos e acadêmicos da USP, Unicamp e outras universidades. Embora convictamente marxista, Ianni, que morreu no hospital Albert Einstein vítima de câncer, teve sepultamento cristão com direito a ritual católico, padre e reza coletiva do pai-nosso e ave-maria. A homenagem foi a expressão do reconhecimento de sua dedicação ao País, à pesquisa e, principalmente, ao aluno brasileiro, contribuição reconhecida por todos os que se manifestaram sobre ele na despedida.

Na observação do professor Sedi Hirano, também sociólogo, diretor da FFLCH e representante da Reitoria no sepultamento, Ianni não dividia os alunos em bons, médios ou medíocres, porque considerava a todos potencialmente capazes de contribuir intelectualmente para o desenvolvimento da sociedade.

Opinião semelhante foi expressa pela professora licenciada e coordenadora da pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes, Maria Immaculata Lopes, para quem Ianni, que vinha dando cursos naquela unidade desde 2001 sobre teorias da globalização e sobre Antonio Gramsci, apreciava muito os alunos da ECA por serem irrequietos e questionadores. Se gostava dos alunos, estes gostavam dele, “professor exemplar, de conhecimento enciclopédico, aberto ao diálogo e ao debate”, como o definiu o professor do Departamento de Sociologia e ex-aluno Rui Braga. Ao final da aula magna do dia 3, Octavio Ianni teria confidenciado a amigos que, diante de tanta solidariedade, poderia morrer tranqüilo.

Mas Ianni não teve uma carreira acadêmica tranqüila; sempre polêmico e contestador de políticas públicas que não levassem ao desenvolvimento social e com justiça, esteve visado pela ditadura, que o afastou da Universidade em 1969. Mesmo depois da redemocratização do País e da chegada ao poder da esquerda brasileira, primeiro com Fernando Henrique Cardoso, com quem participou da criação do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e até dividiu escritos sobre sociologia, depois com Luiz Inácio Lula da Silva, continuou crítico dos governos e coerente com o próprio pensamento.

O professor José Arthur Gianotti, seu colega desde os anos 50, conta um pouco da trajetória acadêmica de Ianni e como ambos tomaram rumos diferentes, anos depois. Em 1958 formou-se um grupo de intelectuais com integrantes como Fernando Novais, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, ele próprio e outros, que se pôs a ler Karl Marx, depois Keynes e outros autores, e a formar uma geração de pensadores inicialmente voltada para a esquerda. Em 1964 houve o golpe militar e a dispersão do grupo, alguns obrigados a sair do País, outros afastados da Universidade. Mas em 1969 eles se reagrupam parcialmente fundando o Cebrap, onde também não houve consenso sobre a natureza do trabalho e das pesquisas a serem desenvolvidos. Alguns preferiam linhas mais gerais, outros, como Octavio Ianni, temas específicos, pesquisas focadas. Ianni também tinha manifestado especial interesse pela docência, que exerceu na USP até ser cassado pelo Ato Institucional número 5.

Mas foi a partir dos anos 80 que, segundo Gianotti, se clarearam as tendências ideológicas: o grupo de Ianni pendeu para a esquerda, o de Gianotti, para o centro, posições que se mantiveram até o fim. Gianotti afirma que, apesar de assim diferenciados politicamente, apreciava muito Ianni, considerando a diversidade de pensamento muito positiva. Da obra de Ianni diz apreciar com maior interesse os pequenos ensaios.

Marxismo

Em Itu, Sedi Hirano disse que para Ianni o marxismo não era ideologia; era metodologia de conhecimento científico. Marx já havia afirmado que um cientista deve ir à raiz dos problemas; ser radical, que é conhecer pela raiz. Nesse sentido, com metodologia e dialética, Ianni inaugura uma fase de pesquisa pela raiz em favor do desenvolvimento e da justiça social no Brasil. Situam-se aí seus estudos sobre os negros e outras etnias, numa continuação da linha de pesquisa de Florestan Fernandes, seu mestre e de quase toda a sua geração.

Outro sociólogo de renome e pensamento sintonizado com o de Octavio Ianni, Francisco de Oliveira disse, em Itu, que “o Brasil perde agora, quando sofre o ataque dos liberais e neoliberais, um professor de primeira plana, seu defensor e educador de gerações de estudantes. Perda muito grave, mas das gerações que ele formou sairão os pensadores que continuarão a defender a universidade pública, laica e gratuita, que ele amava”. Sobre as convicções marxistas do professor desaparecido, Oliveira observou que o marxismo é poderosa arma de interrogação sobre os problemas nunca resolvidos do capitalismo e de sociedades que estão no sistema capitalista. Está convencido de que o pensamento de Ianni vai continuar atual e varar o século com proveito para todos os que têm por tarefa teórico-prática desvendar esse sistema. Mas Oliveira alerta que só o trabalho dos intelectuais não será capaz de mudar para melhor a sociedade brasileira; as forças sociais devem tomar a si essa tarefa; sem isso, “a ação dos intelectuais meio que cai no vazio”.

O professor aposentado da USP disse ainda que, até onde pode entender com auxílio da ciência sociológica, da qual Ianni foi figura extraordinária, o projeto de governo de Lula não tem futuro, nem vai resolver os problemas do País. Também presente no velório, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) elogiou “a integridade admirável” de Ianni e sua independência, manifesta antes em relação ao governo FHC e agora de Lula: “Ele fez críticas que precisam ser ouvidas por todos”.

Definindo-se marxista, o professor Rubem Murilo Leão Rego, diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, disse que conheceu Ianni desde a rua Maria Antonia (endereço antigo da Filosofia da USP) e o considera um cientista admirável pela obra e pelo empenho na análise dos problemas brasileiros e na defesa do povo, tendo como tema central dos estudos o desenvolvimento da sociedade. Para isso pesquisou temas como a questão agrária, os efeitos perversos do processo de globalização e das políticas capitalistas. Nisso consiste, segundo ele, a discordância em relação aos governos FHC e Lula. Mas nada está perdido: “Ianni deu demonstrações de que a superação dos problemas é possível”.

O enterro em Itu: Ianni mostrou que a superação dos problemas é possível


O Brasil global

Leão Rego e outros professores presentes em Itu consideraram Octavio Ianni um dos representantes daquela geração que estudou o Brasil globalmente, sob vários pontos de vista, mencionando, entre outros, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Novais, José de Souza Martins (integrante da comitiva da FFLCH), Paul Singer, Gabriel Cohn, João Manuel Cardoso de Melo e Caio Prado Junior (historiador e político sobre o qual Leão Rego escreveu Sentimento do Brasil).

Depois da USP, Octavio Ianni passou a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp, que, conforme disse em Itu o reitor Carlos Henrique de Brito Cruz, preza muito o seu “exemplo de pessoa acadêmica, que passou a vida empenhado em compreender o Brasil”. Sobre a constante discordância de Ianni dos governos de Fernando Henrique e de Lula, Cruz disse que, como já observou Marx, “a história não se faz nas condições que se quer, mas nas condições dadas, que muitas vezes são desfavoráveis”.

Outro professor da Unicamp, Laymert Garcia dos Santos, que trabalha no departamento de Ianni e pesquisa a sociologia da tecnologia, acha que o marxismo continua valendo como teoria do entendimento do capitalismo. “Marx não fez tudo, mas não se passa sem ele para entender o capital.” Ianni, a seu ver, era uma dessas figuras em desaparecimento, que consideram o valor da universidade acima de tudo. “Morre em momento em que tais pessoas fazem falta e, assim considerado, é insubstituível”.

Insubstituível também para quem leva a sério o estudo da história. Como Zilda Yokoi, do Departamento de História da USP, que explica o entrelaçamento das duas especialidades e, particularmente, a obra de Ianni. Ele fez trabalhos teóricos fundamentais sobre escravidão e o negro, temas fortes na História. Estudou o escravo em muitas dimensões, desde o escravo de eito até o de ganho. É a sociologia ajudando os historiadores a pensar o Brasil. Também tem trabalhos sobre Estado e Planejamento do Brasill – a formação do Estado brasileiro a partir dos anos 30, especialmente o processo de planejamento, as políticas de “proteção” ao trabalhador, ao mesmo tempo que se apropria das lutas populares.

Ianni estuda a forma de outorga pelo Estado ao trabalhador de uma série de benefícios sociais, uma vez que as lutas anteriores pelos direitos trabalhistas e suas vitórias, dos anos 10 a 20, não chegaram às classes dominantes da época como obrigação. Quando Getúlio Vargas obriga os empresários a cumprir a legislação, acaba formando um Estado que, ambiguamente, controla e ao mesmo tempo dá vantagens ao trabalhador. Zilda aproveitou a ciência sociológica nos seus estudos sobre trabalhadores do campo, entre os quais se inclui o MST. ”Com Ianni se encerra uma geração.”



 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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