Com
a serenidade de sempre, José Mindlin vive o desafio de contagiar
crianças e jovens com um vírus incurável. Um
vírus que contraiu aos 12 anos, lendo Machado
de Assis. E o transformou no personagem de hoje, um apaixonado pelos
livros que escreve a sua história com as histórias
de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e tantos outros
que integram uma biblioteca de mais de 30 mil livros. Um acervo
que doará para a USP, na expectativa de disseminar o vírus
da leitura e, quem sabe, incentivar a formação de
incontáveis leitores e grandes escritores.
Em entrevista ao Jornal da USP, Mindlin fala da leitura, capaz de
mudar o mundo e abrir horizontes inesperados. Aos 89 anos, continua
o mesmo José curioso que ia atrás do irmão
mais velho só para pesquisar livros nas bibliotecas. Uma
curiosidade que pretende passar para os estudantes através
dos exemplares raros que foi encontrando em sebos, antiquários
e livrarias do mundo inteiro.
Jornal
da USP Qual é a sua opinião sobre a Bienal
do Livro? Ela é importante para a formação
do leitor?
José Mindlin A Bienal do Livro tem uma grande
importância porque divulga o que está sendo produzido
no País, tanto em matéria de criação
literária ou científica como na parte editorial. Infelizmente
não temos número suficiente de livrarias, e o conhecimento
que se produz no campo editorial só é realmente possível
numa visão de conjunto. As livrarias não têm
nem podem ter estoques grandes e a Bienal traz um conjunto que propicia
surpresas mesmo aos leitores mais habituados. O mais curioso é
que se tornou um entretenimento que atrai um público numeroso,
que encontra nessa visita um incentivo para desenvolver o hábito
da leitura.
JUSP
E o senhor consegue se surpreender com as novidades da Bienal?
Mindlin É claro. Há surpresas para todos
os gostos. Porém, um problema da Bienal é o tamanho.
Você tem uma massa de informação que não
é fácil de absorver. Então seria muito importante
que essa absorção fosse devidamente facilitada através
de uma orientação maior.
JUSP
Apesar das campanhas, o livro ainda é considerado
privilégio de poucos.
Mindlin Desde a minha remota mocidade, o livro é
privilégio de uma minoria. E, infelizmente, continua sendo
assim. A minha expectativa sempre foi de que a grande massa da população
tivesse fácil acesso aos livros. E, para tanto, há
uma série de problemas a ser resolvidos. O custo do livro
é um deles. Na realidade, comprar o livro não deveria
ser condição para leitura. É claro que ter
o livro é um prazer, mas poder ler nas bibliotecas já
resolveria boa parte das dificuldades.
JUSP
A implantação de mais bibliotecas públicas
seria, então, uma solução?
Mindlin Sim. Temos um número muito pequeno
de bibliotecas públicas. Nos Estados Unidos, não há
uma cidadezinha que não tenha uma biblioteca circulante,
e a biblioteca particular é quase uma exceção.
Hoje em dia, as bibliotecas particulares lutam com problemas de
espaço. Os apartamentos são pequenos e conheço
várias pessoas que têm livros acumulados e são
sempre um fator de desordem. Até para esses leitores mais
habituados a biblioteca pública é uma solução.
JUSP
E as escolas têm incentivado a formação
de leitores?
Mindlin Acho que um leitor deveria encontrar incentivo
na sua própria casa ou na escola. Conheço muita gente
que não tinha livros em casa e que se tornou grandes leitores
na escola. Mas é importante considerar que os professores
estão ganhando muito pouco. Trabalham em vários lugares,
não têm tempo de ler nas bibliotecas nem dinheiro para
comprar livros. Como é que podem, então, incentivar
a leitura que eles não têm?
JUSP E o leitor José Min-dlin, como se formou?
Mindlin
Sempre gostei de ler. Esse incentivo começou em casa.
Meu pai, Ephim Henrique, era dentista, minha mãe era do lar.
Os dois saíram da Rússia em 1905, mas por caminhos diferentes.
Encontraram-se nos Estados Unidos e vieram para o Brasil em 1910.
Tiveram quatro filhos, todos brasileiros: Henrique, Arnaldo, Esther
e eu. Nós tínhamos uma biblioteca em casa. Meu irmão
mais velho, o Henrique, gostava muito de ler e eu o acompanhava nessa
leitura. A partir dos 12 anos, comecei a ler de tudo. Alexandre Herculano,
Machado de Assis
Meu pai adorava artes plásticas, eu
também gosto. Mas a minha grande paixão sempre foram
os livros. Como isso aconteceu ninguém explica. Paixão
ninguém explica. Só que a paixão pelos livros,
ao contrário das outras, é incurável. Não
muda. Dura a vida inteira.
JUSP
Como o senhor vem disseminando esse vírus da paixão
pelos livros?
Mindlin Eu faço questão de disseminá-lo.
Procuro contagiar o maior número de pessoas, especialmente
as crianças e adolescentes. Digo sempre que uma boa leitura
muda o jeito de a gente de encarar a vida. A leitura abre horizontes
inesperados. Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, e Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes, são um mundo sem fim. Dá
até vontade de ser um personagem. Sempre presenteei os meus
filhos com livros. No aniversário de um, os outros também
ganhavam. Hoje a leitura está na ordem do dia, mas não
há receita para isso. Um dos princípios básicos
da leitura é o prazer.
JUSP Quais os escritores que mais influenciaram a
sua história?
Mindlin Eu não seria o mesmo sem Machado de
Assis, sem Marcel Proust. Com Machado aprendi muito. Influenciou
na minha serenidade de observação. Gosto mais de ouvir
do que de falar, de procurar sentir como as pessoas são através
de meios indiretos, como os gostos, opiniões políticas,
atitudes na vida. E Machado vai descrevendo a sociedade com uma
naturalidade absoluta e a gente vê as personalidades diferentes,
as ambições, os problemas, a inveja, os amores, a
natureza humana. Ele foi dos primeiros na literatura brasileira
a mostrar a psicologia das mulheres. Proust é o oposto. Ele
descreve os mecanismos interiores do amor, do ciúme e também
da vida social, do vazio, descreve a natureza sob prismas diferentes.
A concepção de amor de Proust mostra que o amor não
está na pessoa amada, mas na maneira de ver. É uma
lição de vida. A pessoa que está numa situação
de ciúme ou de problemas pessoais lê Proust e fica
surpresa. Percebe que as coisas que parecem ser fundamentais mudam
com o passar do tempo. Não sei se você já entrou
no mundo de Proust, mas deveria.
JUSP Além de Machado de Assis, quem mais o
senhor destacaria entre os brasileiros?
Mindlin Machado é o nosso grande escritor do
século 19 e Guimarães Rosa, do século 20, embora
atue nos limites do sertão e não da sociedade em geral.
Grande sertão: veredas é uma obra-prima, um enredo
de personalidades diferentes. O ambiente e a linguagem oferecem
todo um universo. Não é uma leitura fácil no
início, mas depois você começa a ler e não
pára mais.
JUSP
E os poetas?
Mindlin Gosto muito de Carlos Drummond de Andrade.
Éramos muito próximos, nos correspondíamos,
falávamos por telefone. Nos dez últimos anos de sua
vida, tivemos muito contato. Era tímido, mas desses tímidos
que resolviam tudo direitinho. Vencida a barreira da timidez e da
resistência, era um papo ótimo. Teve muitas aventuras
amorosas, volta e meia se apaixonava. Tenho vários livros
que ele me dedicou com versinhos inéditos. Gosto também
de Vinicius, que também prega as paixões e também
o fim das paixões.
José Mindlin e sua biblioteca: "Faço
questão de disseminar o 'vírus' dos livros. Procuro
contagiar o maior número de pessoas, especialmente as crianças
e os adolescentes. Digo sempre que uma boa leitura muda o jeito
de a gente encarar a vida. A leitura abre horizontes inesperados"
JUSP Depois de tantas leituras, os livros ainda influenciam
o seu cotidiano?
Mindlin Muito e sempre. Quando aparece qualquer situação
desagradável, penso que poderia ser pior. Eu me contento
com o que faço e muitos problemas que aborrecem as pessoas
não me afetam. De vez em quando, diante de tantos afazeres,
eu me surpreendo querendo reclamar, mas depois penso que o contrário
seria terrível. A leitura influi até na seleção
de problemas. Há problemas que justificam o aborrecimento,
mas há outros que não. Por exemplo, uma pessoa que
procede mal com a gente, que é desleal. Eu até continuo
convivendo, mas a distância, com indiferença. Com isso
ganho tempo e mais tranqüilidade para os livros. A leitura
é sempre uma boa companhia.
JUSP
Quantos livros o senhor lê por mês?
Mindlin Durante muitos anos, conseguia ler uma média
de sete, oito livros por mês e a minha leitura é feita
de pequenos períodos. Leio 20 minutos, depois cuido de outra
coisa e continuo como se não estivesse interrompido. Eu fiz
Direito na USP e me formei em 1936. Alguns professores liam as preleções
com uma voz monótona, então eu me sentava no fundo
da classe e lia Shakespeare. Depois, chegava em casa e estudava
as mesmas lições em quinze minutos. Estou sempre com
um livro na mão. Antes lia no trânsito, mas agora com
tantos buracos fica difícil. Quando desço, levo o
livro comigo, porque se me roubarem o carro não me surrupiam
o livro.
JUSP
Como o senhor vê o futuro da sua biblioteca na USP?
Mindlin Eu fico muito feliz por saber que a biblioteca
que formamos ao longo de uma vida vai estar nas mãos de milhares
de estudantes, pesquisadores, professores. Afinal, esse é
o destino dos livros. Comecei a montar o acervo e não parei
mais. Eu e a minha esposa, Guita, conseguimos reunir mais de 30
mil volumes, que versam sobre os mais diversos assuntos. Livros
que fomos encontrando nos antiquários, sebos e livrarias
de praticamente todo o mundo. Imaginar que os jovens poderão
apreciar Grande sertão: veredas na sua primeira versão,
observar todas as anotações de Guimarães Rosa
com a sua caligrafia, me dá uma grande alegria.
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