Uma
das características marcantes da história do pensamento
moderno tem sido a clara demarcação entre filosofia,
ciências naturais, ciências sociais e artes; de tal
modo que a religião e outras modalidades de vida cultural
e intelectual são postas à parte, como alheias e incompatíveis
com a modernidade. A metáfora desencantamento do mundo
expressa esse processo, esboçado em tempos antigos e medievais,
mas que adquire crescente predomínio desde a Renascença,
a descoberta do Novo Mundo e a invenção da imprensa,
acontecimentos esses que se beneficiam do clima intelectual que
acompanha a Reforma Protestante.
Em escala crescente e de forma cada vez mais intensa e generalizada,
as distinções entre as linguagens filosófica,
científica e artística acentuam-se, adquirindo contornos
de narrativas radicalmente distintas. As demarcações
tornam-se crescentemente nítidas e, muitas vezes, rígidas.
Aos poucos os modernos distinguem-se dos antigos,
inclusive porque não mesclam teologia nem mitologia com filosofia,
ciência e arte. Ao mesmo tempo que se afirma e reafirma o
nascimento da filosofia no âmbito do pensamento grego, esquecem-se
as exegeses de tradições do pensamento e mitologias
gregas e de outras civilizações, com as quais nascem
algumas proposições fundamentais de metafísica
e epistemologia. A partir de Bacon e Galileu, assim como de Maquiavel,
Descartes, Spinoza e outros, desenvolvem-se metodologias e epistemologias,
codificando procedimentos científicos e filosóficos,
bem como demarcando orientações que serão cada
vez mais adotadas e generalizadas. Aos poucos, instaura-se o experimentalismo,
como emblema da maioridade do pensamento científico.
Experimentalismo esse que tem sido, desde então, imitado
por cientistas sociais, entusiasmados com a indução
quantitativa, a busca da objetividade, o ideal
da ciência rigorosa, madura ou dura, esquecendo que o mundo
sociocultural e político-econômico, ou histórico,
articula-se dialeticamente, envolvendo atividades físicas
e espirituais, à práxis humana, individual e coletiva.
Essas demarcações têm sido uma vigorosa tendência
e, muitas vezes, uma obsessão de filósofos, cientistas
dedicados à natureza e à sociedade,
bem como escritores e outros artistas. Daí a crescente e
generalizada subdivisão de áreas, setores,
campos, especializações. Daí
a contínua e generalizada reversão técnica
e ciência, em lugar do contraponto ciência
e técnica, o que tem provocado uma acentuada primazia
da técnica, da busca de tecnologias para a operação,
a organização, a mudança e o controle dos processos
e estruturas que constituem os diferentes setores da sociedade,
nacional e mundial.
Daí o barbarismo tecnociência, com o qual
se busca subordinar continuamente o ensino e a pesquisa às
exigências das organizações públicas
e privadas, de modo a aperfeiçoar as instituições,
organizações e estruturas de dominação
e apropriação, com as quais se afirma e reafirma a
ordem social prevalecente. Essa tem sido a reversão por meio
da qual a razão instrumental, pragmática,
utilitarista, tem sido imposta no ensino e na pesquisa, na teoria
e na prática, em detrimento da razão crítica,
com a qual se podem descobrir configurações, movimentos
e tendências da realidade social, em âmbito nacional
e mundial.
Contraponto
São muitos, em todo o mundo, os que reconhecem que as ciências
e as artes encontram-se e fertilizam-se contínua e reiteradamente.
Esse é um contraponto que vem de longe e que se afirma e
reafirma no curso dos tempos modernos. São muitos e notáveis
os cientistas que trabalham suas narrativas artisticamente, incorporando
soluções literárias e temas suscitados pelas
fabulações de escritores e outros artistas.
Também escritores e outros artistas beneficiam-se das criações
e enigmas propostos por cientistas. Há temas e inquietações
que impregnam as narrativas de uns e outros, em diferentes ocasiões.
São notáveis os casos em que há evidente contemporaneidade
de temas e inquietações desafiando uns e outros. Esse
é um contraponto que estava presente no pensamento político
de Maquiavel e nas tragédias políticas de Shakespeare.
Contraponto esse que ressurge nas obras de Hegel, Goethe e Beethoven;
assim como na anatomia da sociedade burguesa realizada por Balzac
e Marx; continuando na descoberta da alienação individual
e coletiva desvendada por Kafka e Weber, em criações
e reflexões sobre a racionalização do mundo.
Em distintas épocas e ocasiões, são evidentes
as convergências e fertilizações recíprocas,
além da contemporaneidade. Em suas distintas linguagens,
compreendendo metáforas e alegorias, conceitos e categorias,
essas narrativas contribuem para o desenvolvimento e a recriação
das múltiplas gradações e possibilidades de
esclarecimento. Tomadas em conjunto, no curso dos tempos modernos,
contribuem decisivamente para o desencantamento do mundo,
e simultâneo reencantamento do mundo, em busca
de utopias, ou de alguma alegria.
A despeito da ampla gama de assuntos compreendidos pelas narrativas
que se sucedem e multiplicam no curso dos tempos, é inegável
que se podem distinguir alguns temas marcantes. São marcantes
não somente porque tratados simultaneamente por cientistas,
escritores e algumas vezes também filósofos, mas também
e principalmente porque são temas emblemáticos do
que tem sido o curso da história e do pensamento modernos.
Vale a pena examinar, ainda que de modo breve, alguns desses emblemas.
Em uma fórmula breve, é possível tomar as narrativas
que compõem a vasta biblioteca da modernidade, a despeito
das suas distintas linguagens, como diferentes formas de esclarecimento,
envolvendo possibilidades diversas de articulação
da autoconsciência de uns e outros, a despeito da realidade
e do imaginário, do visível e invisível, apreendendo
o ser e o devir, o fluxo das coisas, gentes e idéias, bem
como as volições e as ilusões. Vistas assim,
como um todo, como se fossem um amplo e infindável mural
em movimento, múltiplo, babélico e polifônico,
elas compõem novas modalidades e possibilidades de metanarrativas,
nas quais se cartografam diferentes configurações
do palco da história e do mundo imaginário, surpreendendo
muito do que pode ser real e fantástico.
A história do mundo moderno, em suas diferentes épocas
e em seus distintos aspectos, está registrada principalmente
em narrativas. Nem sempre elas taquigrafam plenamente os acontecimentos
e as formas de pensamento, mas registram muito do que tem sido a
realidade e as criações do imaginário. É
como se as narrativas estivessem sempre desafiadas a captar o visível
e o invisível, o real e o possível, o ser e o devir,
a realidade e a interpretação, o significado e a ilusão.
No conjunto, vistas como uma vasta biblioteca, Babel ou polifonia,
as narrativas parecem adquirir consistência e vigência.
Podem ser vistas como uma ampla, movimentada e viva cartografia
das diversidades dos indivíduos e coletividades, povos e
nações, culturas e civilizações, bem
como das teorias e interpretações, articulando significados
e enigmas, com os quais se forma e transforma o mundo moderno. Tanto
é assim que muitos, em diferentes épocas e em todos
os lugares, têm sido levados a crer que o mundo moderno é,
principalmente ou exclusivamente, uma ampla, complexa e infindável
narrativa.
Toda narrativa bem realizada expressa, sintetiza ou sugere algo
do que se pode denominar visão do mundo. Independentemente
da diversidade das linguagens, cada narrativa bem realizada confere
ao leitor algo ou muito de uma visão de conjunto ou perspectiva
do seu tema, objeto, inquietação ou fabulação.
Além e aquém das intenções do autor,
a narrativa surpreende o leitor com o que pode ser uma taquigrafia,
arquitetura ou configuração da época. É
como se ela sugerisse ou descortinasse todo um mundo, desde um olhar
situado ou desterritorializado, enraizado ou errante. Parece uma
estilização ou paroxismo do que se vê e não
se vê, do que se conhece e desconhece; de tal modo que o leitor
adquire uma visão mais ou menos articulada, verossímil
ou ilusória do que parece ou seria, presente, passado e futuro.
Seja ela ensaística ou monográfica, realista ou idealista,
naturalista ou impressionista, romântica ou expressionista,
assim como lírica, dramática ou épica, a narrativa
confere ao leitor toda uma visão de conjunto ou os fragmentos
de uma visão de conjunto, seja o seu tema um indivíduo
ou grupo, situação ou tensão, estado de espírito
ou alucinação, processo ou ruptura, modo de ser ou
devir. Sim, além do que afirma Lucien Goldmann, a propósito
da obra literária ou artística, também a grande
obra filosófica ou científica pode expressar algo
ou muito de uma visão do mundo. Toda grande obra literária
ou artística é expressão de uma visão
do mundo, um fenômeno de consciência coletiva que alcança
seu máximo de clareza conceitual ou sensível na consciência
do pensador ou do poeta (Lucien Goldmann, Dialética
e cultura).
A gênese e os desenvolvimentos da modernidade, por exemplo,
somente se esclarecem quando se examinam, combinadamente, criações
artísticas, filosóficas e científicas.
Habitualmente se afirma que a modernidade se inicia com a Renascença,
a descoberta do Novo Mundo, a Reforma Protestante e a invenção
da imprensa. Essa é a época em que as narrativas,
as idéias e as novas formulações científicas,
filosóficas e artísticas de Thomas More, Erasmo de
Rotterdam, Maquiavel, Cervantes, Shakespeare, Camões, Galileu,
Copérnico, Kepler, Giordano Bruno, Leonardo da Vinci, Hieronimus
Bosch e outros estão surpreendendo e desafiando pensadores
de diferentes orientações, bem como indivíduos
e coletividades. Essa é a época em que Camões
escreve Os lusíadas, um poema épico que pode ser visto
como o primeiro hino à ocidentalização
e cristianização do mundo, na esteira do mercantilismo.
Sem esquecer que as tragédias históricas de Shakespeare
contêm todo um tratado de ciência política,
contemporâneo de O príncipe, de Maquiavel; e contribuindo
para revelar que a política passava a desempenhar,
nos tempos modernos, o mesmo papel que o destino havia
desempenhado na tragédia grega. É também nessa
época que ocorre a substituição da teoria geocêntrica
pela heliocêntrica, subvertendo cosmogonias, princípios
e dogmas, que se haviam formulado em tempos antigos.
Copérnico, Kepler, Galileu e outros contribuíram decisivamente
para que se realize um passo fundamental do processo de desencantamento
do mundo.
O pensamento e a imaginação guardam sempre alguma
contemporaneidade com as configurações e os movimentos
da realidade sociocultural, histórica; mobilizando figuras
e figurações da linguagem, signos e símbolos,
emblemas e enigmas, conceitos e categorias, metáforas e alegorias.
É claro que o pensamento e a imaginação são
livres, descolam-se desta ou daquela realidade, revertem o fluxo
de vida, inventam modos de ser e devir. É o que se pode verificar
em cada uma e todas as obras científicas e de ficção
mais notáveis. São narrativas nas quais a realidade
social, as formas de sociabilidade e os jogos das forças
sociais nem sempre aparecem; ou mesmo estão ausentes, podendo
estar ou não metaforizados. Em todos os casos, no entanto,
ressoa algo ou muito do espírito da época,
do clima cultural, das tensões e contradições,
ou alucinações, que germinam nesse tempo.
Ocorre que a grande obra nunca é apenas a tradução
do engenho e arte do seu autor, seja este escritor, filósofo,
cientista, pintor, músico, arquiteto, escultor ou cineasta.
Em geral, a grande obra é também, ou mesmo principalmente,
a expressão do clima sociocultural, intelectual, científico,
filosófico e artístico da época, conforme se
expressa em alguma coletividade, grupo social, classe social, etnia,
gênero ou povo. Há modulações de narrativa
que ressoam determinações remotas ou invisíveis,
reais ou imaginárias. Tanto é assim que a narrativa
expressa o talento do autor e, simultaneamente, as inquietações
de uns e outros do seu tempo, podendo ressoar não só
o presente, mas também o passado e até mesmo o futuro.
São muitas as obras nas quais conjugam-se diferentes inquietações
e ilusões, realizações e frustrações,
alimentando a criatividade individual e coletiva, fazendo com que
a obra bem realizada expresse a visão do mundo que se esconde
no espírito da época.
Já era claro, para Thomas Hobbes e outros em sua época,
que a sociedade mercantil, moderna, em formação, passava
a ser o novo palco da história. O direito natural
revelava-se uma codificação das condições
de organização da sociedade, compreendendo a economia
e a política. As faculdades físicas e espirituais
dos homens passavam a organizar-se e expressar-se no âmbito
das condições ancoradas na propriedade privada,
no trabalho e na competição.
A figura da guerra de todos contra todos já se
apresentava como um código fundamental da organização
e funcionamento da sociedade, em seus diversos setores, destacando-se
a esfera da política.
O Estado nasce aí, no contraponto da luta pela vida,
da qual falará Charles Darwin no século 19, desdobrando
a idéia de guerra de todos contra todos. Sem
dar-se conta, ou talvez com pleno conhecimento, Hobbes já
colocava uma das primeiras versões da política
como fundamento da tragédia moderna, secularizada. Na
natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia.
Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança;
terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os
outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e
a terceira, a reputação. Com isso se torna manifesto
que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz
de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição
a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens. As paixões que fazem os homens tender
para a paz são o medo, o desejo daquelas coisas que são
necessárias para uma vida confortável e a esperança
de consegui-las através do trabalho (Thomas Hobbes,
O leviatã).
Vibração
literária
Há reflexões nas quais combinam-se o discernimento
com a vibração literária, o impacto da idéia
com a entonação da frase, o que leva o leitor a surpreender-se,
assustar-se ou maravilhar-se. Nesses casos, a narrativa torna-se
emblemática, marcante, constituindo-se como referência
indispensável de algum momento excepcional de esclarecimento.
Tudo o que parecia estabelecido, codificado, explicado logo se revela
problemático, diferente, desmistificado. Institui-se outra
perspectiva de percepção, análise, interpretação
ou fabulação. Aos poucos ou de repente, descortinam-se
outra realidade e imaginário, modos de ser e devir, condições
e possibilidades. É como se o autor, como em um passe de
mágica, revelasse o inextricável, deslumbrando o leitor
e deslumbrando-se.
São notáveis os textos científicos nos quais
está presente a elaboração literária,
compreendendo figuras de linguagem, entonação, ritmo,
revelações inesperadas, promessas de novos descobrimentos,
compreendendo inclusive a dramatização do que se diz
e do modo de dizer, de tal forma que o leitor pode maravilhar-se
do que lê. Algo que é freqüente e indispensável
na obra literária, romance, drama ou poesia, pode estar presente
na obra científica ou filosófica.
Além do mais, também na obra literária de categoria
muitas vezes encontram-se revelações da maior importância
para a ciência ou a filosofia. Nesse sentido é que
algumas obras tornam-se marcantes, excepcionais ou clássicas,
revelando-se como se fossem sismógrafos nos quais ressoam
configurações e movimentos da realidade e do imaginário,
apreendendo premonitoriamente o que a maioria, ou todos, ainda não
percebem.
Esse o clima em que se revela que a intuição,
a paixão e a imaginação
estão presentes em narrativas artísticas, científicas
e filosóficas. É claro que em cada um desses estilos
da narração entram também outras faculdades,
umas especificamente filosóficas, outras científicas
e também as artísticas. Há recursos narrativos
do romance que podem ser muito diversos dos que se mobilizam nos
outros estilos. Mas toda narrativa notável, que
se torna marcante, revela algo ou muito de inspiração,
paixão e imaginação.
Tanto é assim que são freqüentes as narrativas
nas quais o autor se revela presente, visível ou subjacente,
projetando-se ou sugerindo-se, a despeito de sua intenção.
Pode entusiasmar-se, mostrar-se indiferente ou mesmo brigar com
o tema, situação, personagens presentes ou supostos;
sem esquecer os que tomam partido na trama das relações,
no jogo das situações, reais ou imaginárias,
presentes, pretéritas ou futuras.
Este é um enigma que se cria e desenvolve desde os inícios
dos tempos modernos: a despeito da crescente distinção
entre filosofia, ciência natural,
ciência social e arte, no âmbito
da modernidade ou do vasto processo de desencantamento
do mundo, são freqüentes as interlocuções
abertas ou veladas entre essas esferas de cultura, do pensamento
e do esclarecimento. A despeito da divisão do trabalho intelectual,
induzida pelo positivismo, da institucionalização
e crescente especialização do ensino e pesquisa e
das diferenças de linguagem entre essas formas ou estilos
de pensamento, multiplicam-se os diálogos entre filosofia,
ciências e artes; em geral enriquecendo a cultura, o pensamento
e o esclarecimento. São diálogos que já estavam
presentes nos escritos de Galileu, Giordano Bruno, Bacon e Vico,
bem como em Shakespeare, Cervantes, Camões e Rabelais, continuando
pelos séculos seguintes com Goethe, Diderot, Nietzsche, Freud
e Sartre, assim como com Kafka, Musil, Beckett e Borges.
Note-se que as noções de tempo e espaço,
além de outras, tais como presente e passado,
ser e devir, parte e todo, aparência
e essência, singular e universal, podem
encontrar-se, evidentes ou implícitas, em diferentes criações
científicas, filosóficas e artísticas. Em certos
casos, fica bem claro o modo de desvendar o que pode ser a situação,
o indivíduo, a vivência, a
subjetividade, as modulações de consciência,
bem como a continuidade e descontinuidade, a crise
e ruptura, o dramático e o épico.
Dependendo da forma de narração, um texto científico
pode ser lançado em uma entonação dramática
ou épica; também lírica. Em alguns casos revela-se
o pathos trágico que parecia atributo da obra de arte, mas
que se revela também na criação científica,
bem como filosófica; dependendo da arquitetura, ritmo e tensão
com que está sendo narrada.
Reflexões
São várias as questões que se colocam, quando
se exercita uma reflexão abrangente sobre criações
intelectuais que caracterizam a história e o pensamento no
curso dos tempos modernos. Ainda que em termos exploratórios,
suscetíveis de novos dados, debates e análises, é
possível afirmar que a comparação entre diferentes
narrações relativas a determinados temas ou emblemas
permite formular algumas idéias ou hipóteses.
Primeiro, depois da intensa e generalizada demarcação
das fronteiras entre a filosofia, as ciências e as artes,
compreendendo inclusive uma crescente especialização
e fragmentação de cada uma e todas as disciplinas,
muitos são levados a reconhecer que a filosofia, as ciências
sociais e as artes participam decisivamente, muitas vezes em colaboração,
da formulação e reformulação de alguns
dos emblemas marcantes dos tempos modernos. São vários
e reconhecidamente notáveis os emblemas com os quais uns
e outros, filósofos, cientistas e artistas, bem como indivíduos
e coletividades, em todo o mundo, compreendem, explicam ou desvendam
a realidade e o imaginário, os povos, reinos e nações,
as culturas e civilizações, as identidades e alteridades,
as diversidades e desigualdades, a multiplicidade de etnias e a
racialização do mundo, os fundamentalismos religiosos
e a pluralidade dos mundos.
Segundo, o cientista social, o filósofo e o escritor, bem
como outros artistas, em geral estão também taquigrafando
algo da vida, realidade, modo de ser, situações, convulsões
sociais, objetividades, subjetividades, inquietações,
ilusões ou imaginários, sempre de modo a esclarecer,
compreender, explicar ou revelar o labirinto, babel ou caos indecifrável,
indizível. Quando tem êxito, o autor confere à
narrativa clareza e graça, algo que parece inteligível,
convincente, verossímil. A maioria, se não todos,
aos poucos são capturados pelo que narram. No curso da própria
narração, revelam-se fascinados pelas pessoas ou personagens,
figuras ou figurações, indivíduos ou coletividades,
em sua façanhas e sofrimentos, realizações
e frustrações. É como se o tema,
o objeto ou o personagem, literal ou figuradamente,
capturasse o narrador, levando-o a tornar-se seu porta-voz. Uma
reversão da qual nem sempre o narrador se dá conta,
como se estivesse sendo levado pela sua criatura.
Terceiro, o mundo moderno, em alguns dos seus aspectos fundamentais,
tanto geohistóricos e culturais como intelectuais, tem sido
principalmente o que se encontra em narrativas, principalmente as
mais notáveis, com as quais se institui o esclarecimento
e o esclarecido, a fabulação e o fabulado. Alguns
emblemas reconhecidamente fundamentais contribuem para revelar ou
demonstrar que a modernidade tem sido muito mais a que está
nos textos, narrativas. É como se, diante da realidade e
do imaginário infinitos e inextricáveis, a narrativa
se revelasse um modo de esclarecimento ou uma forma de encantamento,
com o que indivíduos e coletividades, bem como intelectuais
e artistas, exorcizam enigmas da razão e da fantasia.
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