A década de 90 representa um divisor de águas
no que se refere à situação do trabalho no
Brasil. Após 50 anos de progressivo aumento do trabalho assalariado
e da formalização das relações de trabalho,
houve uma drástica regressão no mercado, com aumento
de todas as formas de desemprego, aumento dos vínculos vulneráveis,
queda dos rendimentos reais e concentração de renda.
Essa é a conclusão do Dieese (Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos) no seu mais
recente estudo sobre o assunto, A situação do trabalho
no Brasil, publicado em 2002, que faz um amplo mapeamento de temas
como distribuição de renda, salários, empregos,
mulheres, negros, crianças e adolescentes no mercado de trabalho,
previdência e seguridade social.
No livro, o Dieese confirma o imenso abismo social existente no
Brasil, ressaltando as diferenças na distribuição
de renda e na situação das famílias. As
disparidades existentes entre as regiões do País ocorrem
também intra-regionalmente, com grande distanciamento entre
os ganhos de trabalhadores e famílias mais
bem remunerados e aqueles auferidos pelas populações
de menor poder aquisitivo, afirma o Dieese.
Ao longo dos anos 90, continua o estudo, as disparidades na renda
familiar foram agravadas pelo crescente desemprego, que naquele
período atingiu patamares recordes em todas as regiões
pesquisadas pelo Dieese. Em 1999, em seis regiões analisadas
São Paulo, Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto
Alegre, Salvador e Recife , havia 3,2 milhões de pessoas
desempregadas, enquanto outras 12,9 milhões estavam ocupadas.
Ou seja, cerca de um quinto da população economicamente
ativa desse conjunto de regiões não tinha emprego,
e boa parcela dela estava desempregada há mais de um ano.
Mudanças
Mesmo a situação de quem estava empregado se deteriorou
ao longo dos anos 90, diz o Dieese. Nesse período, os contratos
de trabalho fora dos marcos legais se expandiram, as jornadas de
trabalho se tornaram mais extensas, e mudanças na legislação
deterioraram as condições de trabalho. As novas condições
aprofundaram o caráter heterogêneo do mercado de trabalho
nacional, avalia o estudo. Um reflexo dessas mudanças
é verificado com a redução da importância
do emprego industrial nas seis regiões pesquisadas e o aumento,
em contrapartida, do emprego doméstico e no setor de serviços,
mais flexíveis e menos estruturados.
Ainda segundo a pesquisa, a insegurança no emprego aumentou.
O que antes era um paradigma de relações de
trabalho o emprego por tempo integral, de longa duração,
protegido pela legislação trabalhista e pelos contratos
de trabalho acordados pelos sindicatos passa na década
de 90 por uma implacável demolição, afirma
o estudo. Os vínculos vulneráveis vão
aumentando sua participação no mercado de trabalho.
Crescem o assalariamento sem carteira assinada, o trabalho de autônomos
que operam em condições precárias, o emprego
doméstico e a ocupação de crianças e
idosos. O núcleo protegido dos empregos diminui e aumenta
a margem dos vulneráveis.
A renda do trabalho também teve comportamento negativo nos
anos 90, destaca o Dieese, e não acompanhou os ganhos de
produtividade da economia. Nem mesmo se manteve o poder de
compra dos que vivem de seus salários. Ao contrário,
apesar de alguns momentos de recuperação, o saldo
do período é de diminuição do poder
aquisitivo de todos os que têm no trabalho a sua fonte de
renda. Em 1989, por exemplo, o rendimento médio mensal
dos trabalhadores na região metropolitana de São Paulo
era equivalente a R$ 1.079,00. Em 1999, esse valor passou para R$
886,00.
Salário
mínimo
O salário mínimo, um importante instrumento
distributivo e de regulação do mercado de trabalho,
teve uma trajetória descendente na última década
do século 20. Sem uma política de valorização
contínua, conseguiu apenas pequenos aumentos esporádicos
em seu valor real, contribuindo para a manutenção
de amplos segmentos da população na pobreza e exclusão
social, constata o Dieese. Ao longo da década,
o salário mínimo perdeu 34,52% do que valia em 1989.
A estagnação relativa do salário mínimo
é responsável também pelo aumento do desemprego,
que sobe em função da pressão de contingentes
que ou permanecem no mercado de trabalho, como é o caso de
trabalhadores aposentados, ou entram prematuramente, como é
o caso de jovens em idade escolar.
As mulheres, negros, crianças e jovens ganharam capítulos
específicos em A situação do trabalho no Brasil.
Cada vez mais presentes no mercado de trabalho, as mulheres detêm,
segundo a pesquisa, taxas de desemprego entre 4 e 6 porcentuais
superiores às dos homens e ainda têm dificuldades em
ascender na hierarquia profissional. Encontram-se predominantemente
em atividades de execução e de apoio, com remuneração
inferior à auferida pelos homens. Nem mesmo a educação
lhes garante paridade salarial e acesso a melhores postos de trabalho.
Para os negros, o quadro é ainda mais grave, afirma o Dieese.
As taxas de desemprego entre eles são sempre superiores às
taxas verificadas entre os brancos de acordo com a região
estudada, podem chegar a mais de 8 pontos porcentuais. Os salários
são muito inferiores, mesmo em áreas onde a população
negra é majoritária. Sua inserção
no mercado de trabalho ocorre freqüentemente nas situações
mais frágeis e com vínculos mais precários.
Numa escala de rendimentos, os homens brancos, em qualquer região
do País, encontram-se no topo, seguidos normalmente das mulheres
não-negras. Mas as mulheres negras encontram-se na situação
menos privilegiada.
A situação dos jovens também é difícil.
Nas seis regiões analisadas pelo Dieese, eles correspondiam
a 27% da população economicamente ativa com mais de
16 anos, mas eram quase a metade (45,2%) dos desempregados. Para
aqueles que conquistam uma posição, esta ocorre com
freqüência em funções mais instáveis,
sem proteção de leis trabalhistas e com rendimento
extremamente baixo. Além disso, têm que acumular as
tarefas profissionais com a educação, retrata
a pesquisa. A educação, para esses jovens, porém,
não representa garantia futura de bons empregos: As
melhores oportunidades ficam reservadas para aqueles que conseguem
freqüentar boas escolas e que constituem uma minoria. Os jovens
de famílias de menor renda tendem a se transformar em adultos
que estarão nos patamares mais baixos da distribuição
de renda.
Crianças
Em 1999, cerca de 9% das crianças com idade entre 5 e 14
anos trabalhavam, 65% delas na área rural e, muitas vezes,
sem remuneração, continua o Dieese, citando dados
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Nos grandes pólos urbanos também há parcelas
variáveis de crianças e adolescentes trabalhando,
em sua maioria assalariados, mas, invariavelmente, em condições
precárias, uma vez que a situação é
sempre irregular, comenta o estudo. Esse trabalho infantil
tem como raiz a pobreza acrescenta o Dieese , pois
os baixíssimos rendimentos das famílias levam mais
crianças a trabalhar, ainda que sua remuneração
seja ínfima. Para as famílias mais pobres e
mais dependentes do trabalho para a sobrevivência, mais trabalho
e não mais salário serve para resolver
seu problema imediato de renda. Como esse trabalho é, muitas
vezes, realizado em detrimento da educação ou prejudicando
o aprendizado, torna-se uma forma de reprodução e
aprofundamento da desigualdade social existente.
Eis a realidade do trabalho no Brasil ao longo da década
de 90 provavelmente pouco alterada nos primeiros anos do século
21. Com esta edição do Jornal da USP especialmente
dedicada ao Dia do Trabalho, a Coordenadoria de Comunicação
Social (CCS) da USP que edita o jornal espera contribuir
decisivamente para, através do debate e da difusão
de idéias, reverter esse quadro e tornar o Brasil mais justo.
Com emprego, salário e dignidade para todos.
|