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No dia 27 de maio, às 20 horas, na PUC, haverá debate sobre o livro O mundo muçulmano, com participação de Peter
Demant e outros especialistas
em história e cultura muçulmana

O mundo muçulmano, de Peter Demant, Editora Contexto,
430 páginas,
R$ 49,90.

A solução do conflito no Iraque e, por extensão, da crise de relações entre o mundo ocidental e o muçulmano, vai depender muito do que o Ocidente fizer, mas também dos debates internos do próprio islã. No momento, os fundamentalistas mais radicais ganham força, mas também existe a consciência de que a vitória dos extremistas seria uma catástrofe, em primeiro lugar para os próprios muçulmanos, na sua maioria moderados. Se as armas são a única resposta ao terror, com os moderados tem que haver diálogo e ao mundo muçulmano empobrecido, em muitos casos estruturalmente desequilibrado, não se pode negar subsídios para um desenvolvimento mais justo. Sem a convergência de valores não haverá resposta coletiva ao terror, nem esperança de que muitos governos ditatoriais dêem lugar a formas mais democráticas de poder. A análise da guerra no Iraque no contexto das relações internacionais é feita pelo historiador Peter Demant, holandês de origem, estudioso do Oriente Médio e suas religiões, outrora engajado no diálogo entre palestinos e israelenses e hoje professor de História da Ásia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, agora dando curso de Relações Internacionais na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Para além do meio acadêmico, Demant ganhou notoriedade no Brasil graças ao lançamento do livro O mundo muçulmano (Editora Contexto), em que explica suas origens, discute os impasses contemporâneos e sugere saídas.

Segundo Demant, entre as causas do conflito no Iraque existe uma mistura de elementos civilizacionais, religiosos, políticos e geopolíticos. De início, é preciso lembrar que o regime de Saddam Hussein não era fundamentalista ou religioso, mas secularista e nacionalista. Só nos anos 90 o ditador começou a manipular símbolos religiosos para manter o apoio da população e ganhar legitimidade no universo muçulmano. E ele precisava disso porque, logo depois de o aiatolá Ruhollah Khomeini estabelecer a República Islâmica do Irã (1979), o mundo árabe passou a temer o expansionismo da revolução islâmica e Saddam Hussein foi o primeiro a reagir violentamente, agredindo o país vizinho, numa guerra cruel, longa e suja (1980-1988). Países ocidentais, especialmente Estados Unidos, França e Rússia, temendo igualmente a expansão religiosa comandada por Khomeini, apoiaram o Iraque e lhe forneceram armas. Após a guerra contra o Irã, porém, Saddam tentou, em seu conflito contra o Kuweit, a Arábia Saudita e os Estados Unidos, recuperar certo prestígio religioso.

Na análise das causas da invasão do Iraque pelas forças norte-americanas, no ano passado, o professor Demant leva a sério três razões: a suspeita de existência naquele país de armas de destruição em massa; o desejo de ocidentais “neo-conservadores” de estabelecer a democracia num país de regime ditatorial, o que – esperava-se – poderia representar um ponto de partida para uma reação em cadeia, um possível efeito dominó liberalizador em todo o Oriente Médio; e cálculos geopolíticos dos EUA de aproveitar a situação para fortalecer a sua presença numa das regiões mais críticas e problemáticas do mundo e, ao mesmo tempo, alertar alguns países europeus e outras potências de que não convém desafiar a hegemonia norte-americana. Demant não considera importantes outras razões possíveis e muito lembradas pela imprensa para justificar a invasão do Iraque: a tentativa dos Estados Unidos de garantir a posse do petróleo iraquiano, e o interesse pessoal e familiar do presidente George W. Bush.

Em relação às armas que não foram encontradas, Demant diz que a preocupação maior era que caíssem nas mãos de terroristas, pois constituiriam enorme risco para a coexistência pacífica internacional. Pessoalmente, o professor acreditou na época que as armas existissem. O problema, segundo ele, é que, fazendo a guerra por esse motivo e não encontrando as armas, os aliados correram o risco de ficar desmoralizados internacionalmente. E o lado trágico da guerra, segundo o historiador, é que ela foi travada sem legitimidade internacional, por falta de apoio da ONU. As armas também poderiam ter sido transportadas para outros países da região e, nesse caso, a situação poderia se agravar – por um lado, a proliferação multiplica os riscos de elas serem usadas, por outro, a suspeita cria a “tentação” de fazer outras intervenções armadas em países vizinhos. Por exemplo, no Irã e na Síria. “Agora vai ser mais difícil construir uma vontade de cooperação internacional”, diz Demant. Antes havia um consenso de que essas armas existiam, e o debate era somente sobre até que ponto eram desenvolvidas e perigosas.

Já em dezembro de 2002 o Conselho de Segurança da ONU havia divulgado uma resolução unânime, advertindo o Iraque de que era preciso tomar alguma providência. Em 1991, Saddam Hussein estava próximo de possuir arma nuclear, mas as instalações onde estavam sendo preparadas foram destruídas com supervisão da ONU. Contudo, os controles internacionais impostos ao Iraque estavam longe de ser herméticos. Sobre a vontade do ditador de desenvolver armas de destruição em massa existia pouca dúvida; informações equivocadas de serviços de inteligência, com o pânico pós-11 de Setembro sobre sua eventual entrega a grupos terroristas, fizeram o resto para lançar os Estados Unidos rumo à invasão.

Colonialismo

Para entender a guerra do Iraque e, em escala maior, o atual choque de civilizações, é necessário lembrar que, desde alguns séculos, houve como pano de fundo uma política expansionista do Ocidente. Atualmente disso são acusados os EUA, mas antes estavam envolvidos países europeus, em particular a França e a Inglaterra, que se impuseram ao Terceiro Mundo, inclusive o muçulmano, por sua superioridade militar, econômica e política. Quando, aos poucos, o mundo muçulmano reconquistou a independência, o resultado – pelo menos no Oriente Médio – foi o estabelecimento de ditaduras, que não refletiam mais os interesses da sua população. Na época da Guerra Fria, esses regimes autocráticos se dividiram entre o mundo ocidental e o pró-comunista. As promessas de desenvolvimento, porém, não se realizaram em nenhum deles. Até que, terminada essa fase da história, o fundamentalismo muçulmano passou a representar o risco maior, colocando-se como resposta contra o Ocidente e contra a modernidade que prometia. Não se trata apenas de reação ao controle político e econômico do Ocidente, mas também de reação à sua influência cultural, que inclui noções como autodeterminação, individualismo, soberania popular, direitos civis, em síntese, a democracia.

Esses valores ocidentais são percebidos como contrários à doutrina do islã, pelo menos do ponto de vista do islã tradicional e conservador. Reação parecida já havia se manifestado do lado do cristianismo, até que as igrejas, embora parcial e gradualmente, fizessem as pazes com a modernidade. Para o mundo muçulmano essa acomodação é imprescindível mas muito mais difícil, porque o islã não dissocia facilmente a religião da esfera política e social. Portanto, a relação com um Estado laico é de tensão. A idéia de que haveria uma esfera para Deus e outra para o homem, independente Dele, é para o muçulmano religioso uma quase blasfêmia. A princípio, a palavra de Deus, transmitida a Maomé e escrita no Alcorão, disciplina não apenas as formas rituais, as rezas que o homem deve fazer, mas indica também o modo como ele deve se relacionar com a família, como o homem deve se relacionar com a mulher, com a economia, com o comércio, como aplicar as punições contra quem transgride a lei, e como devem ser o governo e as relações internacionais.

Essa forma de religião unida ao Estado funcionou relativamente bem no início, entre os séculos 7 e 10, quando o islã inspirou uma expansão fulgurante e uma das civilizações mais avançadas do mundo. Aparentemente, realizava-se então a promessa de Deus a seus fiéis (aliás, o compromisso de converter para o seu Deus o mundo inteiro é comum ao islã e ao cristianismo e diferente do judaísmo, pois este não recebeu a missão expansionista). Com o tempo, porém, particularmente nos últimos três séculos, os muçulmanos perderam terreno – geográfico, político e cultural – e caíram em grave crise.

Viram-se diante de uma impossibilidade teológica, indagando a si próprios: como pode acontecer a derrota se Deus prometeu a seu povo que, se fosse fiel, seria o mais forte do mundo? Diante da dúvida e da crise, pensadores muçulmanos buscaram saídas, e três caminhos possíveis foram apontados: recusar qualquer “contaminação” ocidental e voltar ao tradicionalismo rígido das origens; harmonizar o islã com a vida moderna: racionalismo, ciência, liberalismo; ou suplantar a identificação religiosa por um nacionalismo secular, à maneira ocidental, que inclui a separação entre Igreja e Estado. No mundo árabe (ao contrário de certos outros países muçulmanos, como a Turquia, por exemplo), os três modelos fracassaram e a crise se tornou mais aguda nas últimas décadas.

Surgem então os fundamentalistas muçulmanos, ou seja, os islamistas, para quem a fraqueza e a miséria ocorrem, não porque o povo muçulmano seja religioso demais, mas porque não o é na medida suficiente. “Se houver um retorno a Deus, ele certamente tornaria a abençoar a sua gente.” Mas à diferença, crítica, dos tradicionalistas, os fundamentalistas procuram realizar sua utopia anti-moderna usando meios tecnológicos modernos. Aqui está, segundo Demant, a base do desafio dos fundamentalistas contra o Ocidente – e contra os direitos das próprias populações muçulmanas, pois só uma minoria entre elas aprova o projeto totalitário que os fundamentalistas querem impor a todos.



Democracia

Diante da atração do mundo muçulmano pela receita fundamentalista – e os muçulmanos somam cerca de 1,3 bilhão de pessoas no mundo todo – o professor Demant se pergunta se é possível estimular no Iraque, e em outros países islâmicos, uma democracia. Lembra, de início, que os fundamentalistas são uma minoria no mundo muçulmano e entre eles a maior parte não é violenta, embora a maioria dos terroristas atuais seja certamente fundamentalista.

O professor recorre ao desenho de um círculo concêntrico de quatro linhas para tentar explicar a variedade de tendências no mundo muçulmano. Na linha do círculo maior, coloca as centenas de milhões de pessoas que têm queixas contra o Ocidente, e que se justificam, pelo menos parcialmente. Há um desequilíbrio de recursos e de poder nos dois mundos, sendo que depois da descolonização a situação dos países muçulmanos se agravou e eles enfrentam gravíssima crise estrutural. Sofrem também de falta de liberdade, vivendo em sociedades autoritárias, enquanto o Ocidente endurece o jogo.

Dentro desse círculo externo se enquadra um segundo círculo, os fundamentalistas, que apontam para um projeto de Estado onde devam vigorar as leis do islã, valendo para toda a população e transformando os países em teocracias, à maneira do modelo das primeiras comunidades muçulmanas. Entre esses fundamentalistas só uma minoria pegaria em armas, enquanto muitos recomendam atuação política e trabalho social. Um exemplo dessa tendência está no Egito, onde a Irmandade Muçulmana, tentando introduzir na legislação a xaria (leis canônicas islâmicas), com separação entre homens e mulheres, educação religiosa e sermões obrigatórios, combate às influências ocidentais, mas sempre de modo legal, atuando como partido político e sem violência. No interior do segundo círculo está um terceiro, ainda menor, de fundamentalistas que perderam a esperança de uma transformação pacífica em países onde não há democracia e oposição legal. Entre os islamistas violentos, a maior parte agride o próprio país e buscaria transformar toda a população em muçulmanos fundamentalistas. São exemplos disso os talibãs do Afeganistão, os fundamentalistas que assassinaram o presidente Sadat no Egito e os que fizeram a revolução religiosa no Irã em 1978/79. Só a minoria mais extremista dessa minoria, simbolizada pelo círculo mais interno, ataca diretamente o Ocidente como origem do mal. O ponto central do círculo é um bom lugar para Bin Laden.

O professor Demant lembra que terrorismo não é só aquele que vitima reféns ocidentais e se noticia no dia-a-dia dos jornais do Ocidente; mais freqüente e terrível é aquele que se manifesta nos atos de jogar ácido no rosto das mulheres que deixam parte dele descoberta, ou na violência que caracterizou a guerra civil na Argélia (1992-2000), que matou mais de cem mil pessoas. Os círculos internos tentam provocar reações repressivas da parte dos regimes locais ou do Ocidente, o que por sua vez radicalizaria os dos círculos mais periféricos: assim, minorias extremistas seqüestram politicamente a maioria mais moderada.

Diante desse quadro, Demant pergunta: é possível levar a democracia a esses países? Na força? Se for viável, é também legítimo? “Em termos de legitimidade, sou em princípio a favor de se tentar, mas de maneira política, pacífica, preferivelmente não militar”, diz, lembrando que em vários países muçulmanos, como no Oriente Médio, há um cenário em que, sem intervenção, a situação certamente irá piorar muito. Em Estados ditatoriais, geralmente com interesses vinculados ao Ocidente, grupos islamistas podem tomar o poder, o que seria negativo para o mundo todo. Daí que o professor não descarta, sob certas condições, a necessidade de intervir, acreditando que no Iraque, por exemplo, a maior parte da população, embora abominando a presença dos ocidentais, considera que a invasão e a destituição de Saddam Hussein valeram a pena.

Segundo Demant, fora do Iraque, especialmente no Oriente Médio, centro do mundo muçulmano, há sociedades complicadíssimas, com elevado desemprego, frustrações e desespero, onde a democracia não se implantou. Para essas populações, “a promessa de globalização se tornou um pesadelo”, diz, o que as leva a culpar o Ocidente e suas promessas de modernidade. É certo que existem várias formas de democracia e as que poderiam ser desenvolvidas nos países muçulmanos não necessariamente se ajustarão ao modelo do Parlamento inglês, ou outros modelos ocidentais. A maior parte da população muçulmana deseja que a vida pública leve em conta um certo papel inspirador do islã, e isso não se opõe à democracia. O que conta é autodeterminação, direitos civis, controle pela maioria, mas respeito às minorias. No próprio Ocidente democrático não existem partidos que estimulam, por exemplo, a aceitação de valores religiosos? Na Turquia, na Bósnia, na Indonésia, todos muçulmanos, e na Índia, com sua numerosa maioria muçulmana, há governos democráticos. É a forma de governo que vai conquistando a maior parte do mundo. Do dilema modelo fundamentalista ou modelo democrático, o Iraque não escapa. Na opinião de Demant, trata-se de uma corrida contra o relógio e cabe à comunidade internacional ajudar os iraquianos a fazer a escolha certa.




Um livro da hora

Poucas vezes um livro vem a público em momento tão apropriado como O mundo muçulmano, do professor Peter Demant. Chega às livrarias exatamente quando se agrava a tensão no Iraque ocupado por tropas norte-americanas e de seus aliados e se multiplicam as ações terroristas atribuídas a fundamentalistas islâmicos. É a “guerra entre civilizações” em andamento, opondo forças e interesses do Ocidente e do Oriente; de um lado, a suposta modernidade que valoriza o desenvolvimento econômico e as liberdades individuais e, de outro, a tradição muçulmana que unifica conceitos civis e religiosos. Além de informativa, a obra do professor Demant tem o mérito da extrema clareza, didática como um manual de classe, mas também ricamente documentada e ilustrada. É ainda um livro sem rancores, escrito por um especialista em questões do Oriente Médio, que se doutorou na Universidade de Amsterdã (Holanda) com trabalho sobre a colonização israelense de territórios palestinos; foi pesquisador, em Jerusalém, de um instituto (Harry S. Truman) voltado para a busca da paz e se envolveu no diálogo acadêmico entre judeus e palestinos. Casado com uma brasileira, Demant veio ao Brasil em 1999 e, dois anos depois, foi convidado pelo Departamento de História da USP para dar aulas de História da Ásia e Relações Internacionais, curso interdisciplinar agora em desenvolvimento na FEA. Sua proposta mais recente na USP é a abertura de curso de pós-graduação destinado a comparar as reações ao fundamentalismo muçulmano nos Estados Unidos, Israel e Índia.


Dividido em três partes — Ontem, Hoje e Amanhã —, O mundo muçulmano responde a perguntas comuns no Ocidente, como estas: o islã é uma religião de violência? Constitui ameaça ao Ocidente? Por que o islamismo ganha cada vez mais adeptos entre os ocidentais? Como se explica que uma tradição de cultura tão rica conviva com atentados em série? Especificamente em relação ao Brasil, informa sobre a origem dos relativamente poucos muçulmanos aqui estabelecidos e a importância que teve a escravidão para a vinda de muçulmanos africanos. Embora guerras e conflitos tenham marcado sobremaneira os 14 séculos de convivência das civilizações judaico-cristã e muçulmana, a obra do professor Demant conclui que a paz é possível e até sugere os melhores caminhos para se chegar lá.


 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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