Lideranças
negras e pesquisadores da questão racial acreditam que o
sistema de cotas vai mudar completamente a cara da universidade
brasileira. Ela nunca mais será a mesma, vai se democratizar
e muita gente tem medo disso,
afirma a professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente, da Faculdade
de Direito da USP e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares
do Negro Brasileiro, também da USP. Com Eunice, que no início
da carreira docente teria enfrentado certa resistência de
alunos em razão de sua cor, concorda Emanuelle Oliveira,
uma loura formada em jornalismo e história
na PUC do Rio de Janeiro, professora de Língua e Literatura
Brasileira na Vanderbilt University, no Tennessee (Estados Unidos)
e pesquisadora do movimento negro no Brasil. Para ela, a universidade
de cara nova promoverá cada vez mais
debates sobre racismo e exclusão e inclusão social,
diminuindo ao mesmo tempo a desigualdade de chances no mercado de
trabalho, graças ao acesso dos agora discriminados ao conhecimento
superior. Muda no sentido ideológico e muda no
sentido prático, resume a carioca.
A mesma esperança de universidades renovadas, depois de implantadas
as cotas, anima o professor Edson Cardoso, da Universidade de Brasília
e assessor para assuntos sociais do Senado, que, embora aparentando
ser branco, declara ter um pingo de sangue negro nas veias, suficiente
para se incluir entre os afro-descendentes. Os três professores,
e vários outros, participaram do Seminário Internacional
Mídia e Etnia, promovido pela Escola de Comunicações
e Artes da USP, nos dias 25 e 26 de maio, no Sesc Paulista.
Se todos os participantes defenderam o sistema de cotas, ficou também
evidente que não há entre eles consenso em relação
a vários pontos importantes na implantação
das
políticas de inclusão social dos negros.
Uma polêmica animada seguiuse à intervenção
de um convidado norte-americano, Ira Moseley, do
You Entertainment Group, de Nova York. O empresário disse
que a sua organização tem muitos planos para
o Nordeste, em especial para a Bahia, em setores como lazer, turismo,
comunicação, cinema, audiovisual, comércio,
e está interessada em estabelecer parcerias com empresas
brasileiras.
No turismo, por exemplo, a proposta é incentivar as viagens
de negros brasileiros para os Estados Unidos, e vice-versa, e para
facilitar as coisas seria interessante criar um roteiro aéreo
entre Salvador e Nova York sem escalas, evitando-
se a incômoda descida no Rio de Janeiro, o que só alonga,
atrasa e encarece as viagens.
Lógica do capital
Outro projeto dos empresários negros norte-americanos
diz respeito à criação de cursos e treinamento
de pessoal na indústria da mídia. Queremos transferir
nossa tecnologia para vocês; queremos sair do macro para o
micro, disse Moseley.
Ele só não esperava a reação de um dos
componentes
da mesa (no segundo dia do seminário), o jornalista e professor
da Universidade Federal da Bahia, Fernando Conceição,
que investiu contra as atividades e os planos do
norte-americano para a Bahia, que considerou interesseiros, fiéis
à lógica do capital, uma aliança com empresas
capitalistas; puro money, money. O que sobra para
os negros baianos?, perguntou. Antes da resposta do expositor,
intervieram a coordenadora do debate que era sobre políticas
compensatórias e legitimidade , Rosângela Malachias
(Ryoichi Sasakawa Fellow/Programa Raça Desenvolvimento e
Desigualdade Social Brasil-Estados Unidos), que considerou legítima
a discussão sobre idéias como mercado e poder;
e o professor Edson Cardoso, que disse nada ter contra o capital,
desde que não haja exclusão dos negros.
Moseley rebateu as críticas de Conceição, dizendo
que não era capitalista nem socialista, mas preocupado com
o futuro de seu povo. A questão não é
de polêmica, mas de sobrevivência e eu quero aprender
a me relacionar. Disse que o governo
dos Estados Unidos está preocupado com a concorrência
do Brasil, que cresce em setores importantes como fabricante de
aviões (Embraer), grande produtor de soja e criador de gado.
No entanto, o empresário acha que o Brasil precisa ser mais
atuante na área de marketing e criar seu próprio programa
de ação e seu modelo de exportação.
Nunca vi um comercial de TV nos Estados Unidos dizendo venham
conhecer o Brasil. Se a Alca funcionar, o País tem que diversificar
seus produtos e
fazer com que os outros países os comprem. Se sensibilizar
os afro-americanos a vir ao Brasil se tornará mais forte.
Eu quero comprar coisas feitas pelo meu povo.
Além de polêmicas internas, o movimento pela igualdade
racial queixa- se também de resistências ou má
vontade externas. O processo de inclusão das minorias na
universidade pública anda devagar, na opinião da professora
Dilma de Melo Silva, da
ECA, que coordenou a segunda mesa do primeiro dia dos debates. Seria
um eterno recomeçar, pois seminários
como esse foram feitos anos antes e com as mesmas recomendações
finais à direção das universidades e aos professores.
Pouco adianta; o tempo passa e medidas práticas não
aparecem. Outras vezes, o meio acadêmico recorre a ironias,
como a de apelidar de navio negreiro os professores
doutores que aceitam orientar pós-graduandos negros.
De ironia também se valeu uma pessoa da platéia quando,
no debate que se seguiu a uma das sessões, mandou para os
expositores uma pergunta, ou um comentário, dizendo
que as relações entre brancos e negros no Brasil são
realmente amistosas e a prova é que a coordenação
do seminário sobre inclusão de afro-brasileiros coube
a uma loura. Às vezes nem os norte-americanos se entendem.
Foi quando veio à baila a atuação de Condolezza
Rice,
assessora do presidente George W. Bush. Judith Williams, da Vanderbild
University, disse que conhece Rice pessoalmente, mas não
a aprecia: só pensa nela, apresenta-se como negra
apenas quando lhe convém, faz o papel de um soldado fiel
ao seu chefe de exército. Se dependesse de mim, eu
a botaria para fora da nossa raça, disse Judith. Mas
Rhonda Collier, da Limscomb University, defendeu a assessora de
Bush, afirmando que é o exemplo de uma pessoa negra que alcançou
um dos postos mais altos dos Estados Unidos e merece respeito.
Problemas há igualmente em outros setores, alguns analisados
no seminário: os negros na mídia (Ricardo Alexino
Ferreira, da
Unesp), o negro nas novelas (Denis de Oliveira, da ECA) e o negro
e o Estatuto da Igualdade Social (Edson Cardoso, da UnB). Constitucional
Eunice Aparecida defende as cotas para negros porque, segundo
ela, o Brasil vive sob a égide de uma Constituição
(de 1988) voltada para as questões sociais. Por ser a primeira
Carta presidida pela atuação da sociedade civil,
possui espírito de integração nacional.
A professora de Direito entende que é perfeitamente cabível
e constitucional a interpretação de que os desiguais
devem ser tratados diferentemente, na proporção das
suas desigualdades. O fato é que já existe na legislação
uma prática de ações afirmativas para as mulheres,
com grande sucesso nos municípios, e se isso ainda não
ocorre em nível estadual
e federal é, segundo Eunice Aparecida, pela má política
dos partidos, ainda muito discriminatórios e machistas. Quanto
aos afro-descendentes, ela e a carioca Emanuelle Oliveira concordam
no seguinte: não se trata de alguns negros discriminados
por algum tempo, mas de todos os negros discriminados por todo o
tempo histórico. Daí a legitimidade
de ações diferenciadas. Pesquisas da ONU da década
de 80 indicam que se a inclusão da mulher continuar no ritmo
atual serão necessários 400 anos para se alcançar
a igualdade total
entre homens e mulheres, com as mesmas condições de
presença nos parlamentos e nas empresas. Com maior razão
é preciso acelerar a integração de grupos minoritários
como
os afro-descendentes, com políticas afirmativas, inclusive
nas universidades.
Estou aguardando a USP tomar posição,
diz Eunice Aparecida, que não vê bom futuro para as
pessoas que entram na justiça contra as cotas, alegando inconstitucionalidade.
A professora da Faculdade de Direito está convencida de
que todos os recursos, mesmo que aceitos nas primeiras instâncias,
serão derrubados no Supremo Tribunal Federal, uma vez que
o próprio Supremo, em edital de chamada de candidatos jornalistas
para o seu serviço, estabeleceu que
20% dos cargos seriam reservados a afro-descendentes. É
o Supremo Tribunal Federal que vai dizer da constitucionalidade
das leis e dos atos normativos no Brasil e ele já se posicionou
pelas cotas, pela própria atuação nos concursos
públicos, assegura Eunice Aparecida. Embora insista
na necessidade
de cotas, ela reconhece valor à decisão da USP que,
junto
com o governo do Estado, assumirá cursinhos preparatórios
gratuitos para 5 mil alunos da zona leste de São Paulo.
Outra alegação de opositores da política de
concessão de bolsas no ensino superior, a de que o ingresso
facilitado de afro-descendentes ou de outras minorias sociais concorrerá
para rebaixar o nível do ensino universitário, é
rebatida pela professora Emanuelle Oliveira. Segundo ela, as primeiras
universidades brasileiras a implantar o sistema e cotas foram as
estaduais da Bahia e do Rio de Janeiro.
Na instituição baiana já existem avaliações
confirmando que os alunos que ingressaram mediante cotas são
os melhores dos cursos. As minorias tradicionalmente saem-se muito
bem porque, pressionadas, costumam se dedicar mais aos estudos.
Em caso, por exemplo, de descendentes de japoneses e coreanos, diz
a professora que o fator cultural é importante:
A cultura os empurra para uma ascendência cultural.
No
caso dos negros, o impacto da escravidão e do branqueamento
após a escravidão foi muito efetivo e o
negro tem que conviver com uma espécie de inferiorização,
e superá-la.
Emanuelle exibiu no seminário um vídeo que intrigou
a platéia. Um jovem marginal, branco, mascarado, revólver
em punho, usando de linguagem superintelectualizada, justificava
a opção pelo crime, citando filósofos, sociólogos
e escritores de vários países e línguas. O
suspense acabou quando as luzes se acenderam e a professora explicou
que a entrevista era
uma ficção, realizada por alunos da Faculdade de Comunicação
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o propósito
de mostrar o poder paralelo do tráfico, a inversão
social e a questão racial. Hoje sabemos que a imagem
predominante dos traficantes na mídia é de negros
e mulatos
e que há uma relação paternalista das esquerdas
com as classes populares, disse Emanuelle. E não é
raro encontrar
entre os marginais tipos próximos do jovem branco do vídeo,
conforme atesta Caco Barcelos, jornalista estudioso do crime no
Brasil.
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