O primeiro
dos surpreendentes Capítulos da história da medicina
no Brasil, do elegante memorialista mineiro Pedro Nava, é
todo dedicado às relações da arte de curar
com as outras artes. Nas primeiras linhas lê-se: Segundo
a maneira que for realizado, o estudo da história da medicina
pode ser uma atividade útil, viva e cheia de ensinamentos
ou um trabalho mais ou menos inútil, bizantino e apenas pitoresco.
Tomemos emprestado esse ensinamento para auscultar o que dizem alguns
livros lançados recentemente sobre o tema. Voltaremos, mais
tarde, a Pedro Nava.
Das tripas coração uma breve história
da medicina, de Roy Porter, um importante pesquisador do tema e
professor em duas universidades de Londres, já falecido,
consegue, em 240 páginas, repassar os grandes avanços
da medicina, mostrando como uma ciência nascida com a intenção
clara de cuidar da saúde do corpo e livrar o homem dos males
das doenças tornou-se, ao longo do tempo, um excelente negócio,
muito mais preocupado com o retorno financeiro que com premissas
humanistas.
Desde
logo, Roy Porter anuncia que a história da medicina está
longe de ser uma narrativa simples de um progresso triunfante.
No primeiro capítulo, Doença, por exemplo,
o autor mostra como, desde a infância da humanidade, a agressividade
do homem contra a natureza tem resultado em uma guerra microbiológica.
À medida que os seres humanos colonizaram o globo,
eles mesmos foram colonizados por agentes patogênicos.
Porter aborda como a interação entre o homem e os
seres microscópicos fortaleceu o primeiro que foi
adquirindo imunidade contra várias doenças ao longo
dos tempos. E ainda como, ao compreender o poder letal dos microorganismos,
o homem passou a usar esse conhecimento para subjugar seus semelhantes
vide, particularmente, a guerra bacteriológica travada
entre espanhóis, portugueses e britânicos contra os
habitantes originais das Américas.
É
interessante acompanhar as observações de Porter no
que concerne à mudança de atitude do médico
com relação ao paciente. Até o começo
do século 20, por entender o corpo como um bem divino, a
medicina não se atrevia a invadi-lo. As doenças continuavam
a grassar e o médico tinha, como opção, dois
caminhos: o hipocrático (esperar e observar) ou o galênico
(administrar purgantes ou sangrias). Até essa época,
a medicina era capaz de compreender as doenças de que
as pessoas morriam, mas não conseguia impedi-las de morrer.
Muitos médicos, então, para fazer algo, recorriam
aos sedativos, analgésicos e narcóticos descobertos
ao longo do século 19 e começo do século 20:
morfina, heroína, hidrato de cloral, barbital, fenobarbital...
Se os estudos mecanicistas e experimentais de Vesálio e Harvey
mostraram claramente as ligações entre as doenças
nas pessoas vivas e os sinais patológicos nos cadáveres,
foi Magnani, ainda no século 18, que deslocou a ênfase
dos sintomas para o foco da doença ele incentivou
a passagem de uma teoria fisiológica (a doença é
um estado anormal do organismo inteiro) para uma teoria ontológica
da doença (a doença é uma entidade que reside
localizadamente numa parte). O passo seguinte seria dado por
Bichat, que lançou as bases da medicina clínica do
século 19. Aprofundando o conceito de Magnani, Bichat afirmou
que a doença não deveria ser vista como lesões
de um órgão, mas sim como lesões de tecidos
específicos.
A medicina tradicional, em que a relação médico-paciente
era pessoal, começa efetivamente a mudar, ganhando importância
a medicina hospitalar. Pierre Louis ensinava que os sintomas (o
que o paciente dizia sentir) tinham um valor clínico secundário;
o que importava eram os sinais (o que o exame clínico constatava).
Com isso, os laboratórios passam a ter evidência e,
uma a uma, as doenças vão sendo mapeadas e reconhecidas
enfatiza-se a teoria microbiana de Pasteur e Koch. Chega-
se ao impasse: conhecem-se as doenças, mas não os
remédios! O diagnóstico havia evoluído muito
mais rapidamente que a terapêutica, situação
que vai ser compensada apenas no século 20, com o casamento
de interesses entre a pesquisa e a fabricação em larga
escala dos medicamentos.
Porter ainda discute brilhantemente o papel da cirurgia dentro da
medicina de patinho feio nascido diretamente dos confrontos
bélicos ao cisne frondoso das chamadas cirurgias estéticas
; o desenvolvimento do conceito de hospital de simples
depósito de doentes a local quase miraculoso e os
rumos da medicina no futuro. Evidentemente, sem esgotar o assunto,
o autor nos introduz de uma maneira amigável e crítica
ao fantástico universo das doenças e de sua cura.
Outro é o objetivo de Richard Gordon, em sua A assustadora
história da medicina. Aqui o autor, menos que discutir ou
analisar o desenvolvimento da medicina no tempo, pretende informar
divertindo. Também conhecido roteirista de filmes e seriados
de televisão na Inglaterra, Gordon nos conduz para os escaninhos
da arte de curar, que sem dúvida contém um emaranhado
de avanços, mas sempre resultante de sucessivos fracassos.
E são esses fracassos que provocam o humor perseguido pelo
autor. Esse é o lado pitoresco da história
da medicina, seguindo a definição de Pedro Nava.
Jeanette Farrell persegue modelo distinto, o da vulgarização
das informações disponíveis. A assustadora
história das pestes e epidemias difere do livro anterior
já no apelo do título original. Só por pertencerem
mesma coleção, A assustadora história, têm
o título, em português, semelhante. Contudo, o de Gordon,
A assustadora história da medicina, uma tradução
literal do título em inglês o que demonstra
seu caráter comercial. O de Jeanette, não. Seu título
poderia ser traduzido como Inimigos invisíveis: histórias
das doenças infecciosas nada de assustador
ou alarmante, portanto.
A autora escolheu sete grandes doenças epidemiológicas
e se concentrou nelas para estudá-las mais profundamente.
Jeanette expõe a origem, propagação e tentativa
de combate da varíola única cujo agente etiológico
foi totalmente extirpado , tuberculose, lepra, peste, malária,
cólera aids. Mostra o trabalho muitas vezes heróico
de médicos, enfermeiros pesquisadores para evitar a propagação
das doenças; os horrores provocados intencionalmente em vários
momentos da história da humanidade através da voluntária
disseminação de epidemias; e a persistência
dos males no caso do Brasil, por exemplo, que convive, de
maneira sofrível, com cinco das sete epidemias principais
listadas por Jeanette. Isso sim é assustador e alarmante!
A
medicina no Brasil
Voltemos, pois, a Pedro Nava e seu fabuloso Capítulos da
história da medicina no Brasil, a edição em
livro de uma separata da revista Brasil Médico Cirúrgico,
publicada em seis números, entre 1948 e 1949. Nesse volume,
possível antever o estilista que na década de 70 iria
legar à literatura brasileira uma obra memorialística
das mais importantes escritas em língua portuguesa. Dono
de uma invejável clareza, mesmo quando tratando de assuntos
áridos, Nava nos conduz pelos meandros da medicina brasileira,
em oito capítulos e um anexo, que não se constituem
em uma história linear o autor, naquela época,
afirmava, tão contemporâneo: As grandes idéias
médicas não pertencem este ou àquele século,
não são sucessivas e sim coexistentes.
Nava já demonstra aqui o destemor que caracterizaria suas
memórias, explicitando opiniões que, embora polêmicas,
são baseadas em observações e largo estudo.
Por exemplo, sua suspeita de que a medicina popular brasileira deve
muito mais obra dos jesuítas que vestiram-na com cientificidade
que aos índios; ou ainda sua clara ojeriza à
obra pia dos religiosos, em se tratando de medicina, que teria muito
mais atrapalhado que ajudado o desenvolvimento da arte. Os capítulos
5, 7 e 8 claro que não em detrimento dos outros são
exemplares de uma metodologia que une erudição, curiosidade
científica e um texto magnífico: tratam, respectivamente,
das doenças epidêmicas, do exercício da profissão
no Brasil colonial e da história da medicina popular.
Finalmente, vale a pena conhecer ainda outro pequeno opúsculo
de Nava, o delicioso A medicina em Os Lusíadas, um trabalho
sério e profundo, em que o escritor mineiro analisa e exalta
os conhecimentos da medicina quinhentista de seu colega poeta português
Luís de Camões. Esse livro contém dois outros
textos, Medicina e humanismo Aloysio de Castro,
o gentil-homem da medicina brasileira.
Luiz
Ruffato é escritor, autor de Eles eram muitos cavalos
Das tripas coração uma breve história
da medicina, de Roy Porter (Record), A assustadora história
da medicina, de Richard Gordon (Ediouro), A assustadora história
das pestes e epidemias, de Jeanette Farrell (Ediouro), Capítulos
da história da medicina no Brasil, de Pedro Nava (Ateliê/
Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/Eduel) e A medicina em Os
Lusíadas, de Pedro Nava (Ateliê/Oficina do Livro Rubens
Borba de Moraes).
|