Coleta da água abrange diversos pontos de Bauru em método
de controle inédito na região: qualidade de vida
Crianças de 11 meses a sete anos de idade com
manchas, linhas esbranquiçadas, colorações
acastanhadas e até cavidades e alterações do
formato dos dentes. Assim caracterizada, a fluorose - alteração
causada por excesso de flúor no organismo - atinge,
segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde),
em menor ou maior grau, quase 10% da população infantil
do mundo. Para intervir na realidade onde está inserida,
FOB (Faculdade de Odontologia de Bauru) da USP resolveu sair a campo
para cumprir seu compromisso de extensão junto à sociedade.
Dessa
forma, um trabalho inédito de avaliação da
concentração de flúor na água, em Bauru,
acaba de atingir três meses de sua implantação
com coletas de amostras de água que já estão
em poder dos pesquisadores da Universidade. Em julho, os primeiros
resultados vão indicar a quantas andam os níveis de
concentração da substância nos pontos de captação
e abastecimento. O projeto, nos moldes atuais, é inédito
em toda a região e um dos poucos do tipo em execução
no Brasil.
É
a primeira vez que fazemos o chamado heterocontrole do flúor
em Bauru, conta a orientadora da pesquisa, professora Marília
Afonso Rabelo Buzalaf, do Departamento de Ciências Biológicas
e Laboratório de Bioquímica da FOB/USP. Mas, afinal,
o que é heterocontrole? Trata-se de uma avaliação
permanente dos níveis de flúor, detalha. Um
controle paralelo realizado por um grupo que não tem vínculo
com o órgão responsável pela fluoretação
local e que, assim,auxilia na manutenção da fluoretação
dentro dos padrões adequados e aponta possíveis oscilações.
Para a implantação do heterocontrole, foi avaliada
a concentração de flúor na água antes
e depois da fluoretação, com coleta das amostras de
água em três dias por semana, nas quatro estações
do ano, detalha mestranda em Saúde Coletiva da FOB/USP,
Irene Ramires. Em fevereiro, Irene conclui seu projeto de mestrado
Avaliação da Concentração de Flúor
na Água de Abastecimento Público Antes e Depois da
Fluoretação - pesquisa que deu origem ao projeto
do heterocontrole - e que conta com apoio da direção
da FOB/ USP, responsável por viabilizar as coletas mensais
de água.
A preocupação
com o assunto tem um motivo concreto do que mera suspeita: avaliações
in loco revelaram indícios de desníveis de flúor
em Bauru, para mais e para menos - entre 0 e 9 miligramas da substância
por litro de água, quando o aceitável é entre
0,6 e 0,8 miligramas - preferencialmente 0,7. De fato, os
resultados parciais indicam a necessidade de alguns ajustes na fluoretação
para que a concentração de flúor permaneça
estável e dentro dos limites máximo e mínimo
aceitáveis para a cidade, prossegue Marília
Buzalaf. Como, ao contrário do cloro, o flúor não
tem cheiro nem cor (e não pode ser barrado, se
houver excesso, por filtros de água domésticos), só
mesmo o heterocontrole para comprovar por A mais B se há
novos complicadores no processo de fluoretação. No
ano passado, ficou clara a dificuldade do município para
sustentar um teor adequado de flúor. Amostras avaliadas na
ocasião pela pró-pria Irene Ramires na água
do setor abastecido pela ETA (Estação de Tratamento
de Água), que corresponde
ao abastecimento de 44% da população, constatou a
oscilação no teor de flúor da água.
Esta variação não é desejável,
uma vez que se esperava uma maior estabilidade no processo de fluoretação
realizado na ETA, conta Irene. Por isso, agora, a coleta
de amostras será mensal e em caráter permanente para
indicar exatamente em quais pontos a fluoretação é
instável.
Para
assegurar precisão na análise das amostras - colhidas
nos 27 poços e na própria ETA -, a pesquisa tem co-orientação
do professor de metodologia e estatística José Roberto
Lauris, do Departamento de Odontopediatria, Ortodontia e Saúde
Coletiva da FOB/USP. Devemos recolher 720 amostras por ano,
cerca de 60 por mês, que recebem tratamento estatístico
com detalhamento de desvio padrão, médias e porcentuais,
conta. Tanto mestranda quanto orientadores da pesquisa de mestrado,
inicialmente realizada entre 2003 e 2004, ressaltam a colaboração
recebida do DAE (Departamento de Água e Esgoto) de Bauru,
responsável direto pela fluoretação da água
da cidade. Por meio de sua assessoria, o DAE informa que em nenhum
momento encarou a iniciativa como uma forma de controle externo
de seu trabalho e destaca que a saúde da população
é o objetivo comum de Universidade e autarquia. Esse
apoio é uma realidade e se tornou fundamental para o desenvolvimento
da pesquisa, uma vez que o departamento colocou à nossa disposição
dois funcionários, três dias (segunda, quarta e sexta)
nas semanas de coleta para que as amostras de água fossem
coletadas diretamente dos poços, antes e depois da fluoretação,
durante a realização da nossa dissertação
de mestrado, acrescenta Irene Ramires.
Vale a pena
Tanta preocupação com os níveis de flúor
faz sentido. Nos níveis adequados, o poder preventivo da
água fluoretada em relação à cárie
é de 40% a 70%. Tem, ainda, potencial para reduzir a perda
de dentes em adultos entre 40% a 60%. Considerando os fatores
que envolvem o processo de fluoretação da água
de abastecimento público, tão importante quanto manter
ou adicionar flúor às águas é controlar
todo esse processo com um órgão independente, no caso,
a FOB/USP em relação ao DAE, diz Irene Ramires.
Em Bauru, onde a fluoretação já ocorre desde
1975, a média é quase um dente e meio cariado, perdido
ou obturado em crianças de 12 anos (idade/referência
para avaliações desse tipo).Essa proporção
não é negativa, uma vez que se aproxima da média
de apenas um dente cariado, perdido ou obturado nessa faixa etária,
conforme recomendação da OMS.
Em 1990, também em Bauru, eram 3,97 dentes cariados, perdidos
ou obturados em cada criança. Entre 1976 (quando a média
chegou a 9) e hoje, houve uma redução na prevalência
de cárie dentária de cerca de 85% no município.
O heterocontrole da fluoretação da água é
mais um instrumento para assegurar essa conquista à população.
Último
levantamento oficial indica que, em 2003, o município contava
com uma população de 326.391 habitantes, sendo que
99,77% recebiam água clorada e fluoretada. Para o controle
de qualidade da água são efetuadas mensalmente, pelo
próprio Laboratório de Análises de Água
na ETA, 360 análises físico-químicas e bacteriológicas
em atendimento à Portaria 1469/ 2000 do Ministério
da Saúde. A pesquisa da mestranda da FOB/USP é uma
espécie de contraprova desse processo. Ganham
todos.
Em detalhes
O excesso de ingestão de flúor durante o períodode
formação do esmalte (11 meses a sete anos para a dentição
permanente) pode ocasionar a fluorose dentária - defeito
de desenvolvimento do esmalte do dente que pode, em casos mais raros
e extremos, levar à formação de um dente tão
fraco que sofre fraturas após a erupção e adquire
os corantes dos alimentos, ganhando um aspecto amarronzado. Importante:
a ingestão de cremesdentais e produtos diversos que contêm
flúor (inclusive complexos vitamínicos) deve ser monitorada
por pais para evitar que a fluorose se manifeste em decorrência
de um consumo indiscriminado.
Os
primeiros registros de adição de flúor na água
de abastecimento público são de 1945, em Colorado
Springs (EUA). Naquela época, estabeleceu- se a hipótese
de que algum elemento químico da água seria o responsável
pelas manchas brancas identificadas em dentes de crianças.
Passou-se, então, a avaliar concentrações de
flúor nas águas para medir o teor de flúor
capaz de produzir o máximo benefício de prevenção
de cárie e o mínimo tolerável de fluorose dentária
nas populações consumidoras.
O primeiro
município brasileiro a adicionar flúor nas águas
de abastecimento público foi Baixo Guandu, no Espírito
Santo, em 31 de outubro de 1953. A partir de 1974, a fluoretação
das águas de abastecimento público passou a ser obrigatória
no País. Hoje, 39 países adotam a fluoretação
como medida preventiva contra as cáries, beneficiando 200
milhões de pessoas em todo o mundo
- 60 milhões só no Brasil.
|