Na terça-feira, 17 de abril de 1984, os principais
jornais brasileiros publicavam o balanço do comício
realizado no dia anterior em São Paulo em favor das eleições
diretas: mais de um milhão de pessoas lotou o Vale do Anhangabaú.
O histórico evento já tinha alguns antecedentes. Mais
de um milhão havia comparecido em 10 de abril na Candelária,
Rio de Janeiro, por exemplo, para reivindicar o direito ao voto,
à cidadania e à democracia. Naquele ano, por ocasião
do aniversário dos 430 anos de São Paulo, palavras
de ordem na Praça da Sé pediam: Um, dois, três,
quatro, cinco, mil, queremos eleger o presidente do Brasil.
As manifestações pró-diretas pipocavam aqui
e ali. E naquele dia histórico, no Vale do Anhangabaú,
um momento de silêncio.
Multidão de mãos entrelaça-das, voltadas para
cima. Uma chuva de papel picado amarelo - a cor das Diretas - ao
som do Hino Nacional regido pelo maestro Benito Juarez fez muita
gente chorar. Até PT PMDB, rivais históricos, deram
as mãos naqueles dias.
Mas
ao final do comício, às 20h30, o então presidente
João Batista Figueiredo surgia em rede nacional de TV anunciando
proposta do governo: diretas mais tarde, em 1988. Dez dias após
aquele 16 de abril, a Câmara dos Deputados rejeitava a emenda
Dante de Oliveira, que previa as sonhadas eleições
diretas já para presidente da República. Por ironia
da história, quis o destino que o próprio autor do
projeto de lei estivesse presente na sessão solene da Câmara
que homenageou, no último 26 de abril, os 20 anos do Movimento
Diretas-Já. Homologada ainda naquele ano a candidatura de
Tancredo Neves à Presidência, o anúncio da vitória
do primeiro presidente civil e de oposição em 20 anos
seria dado pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985.
O candidato do PMDB vencera por 480 votos o opositor do PDS, Paulo
Maluf. Mas o início da Nova República - slogan criado
por Tancredo - seria dramático. Internado em 14 de abril
no Hospital de Base de Brasília para se submeter a uma cirurgia
abdominal, Tancredo morre após 38 dias e enluta a nação.
O então
vice-presidente José Sarney, hoje presidente do Senado, assume
no dia seguinte à internação de Tancredo e
cumpre todo o mandato. Sob sua batuta, o Congresso aprova o Emendão,
emenda constitucional que estende o voto aos analfabetos, legaliza
os partidos comunistas e promove eleições diretas
para prefeitos das capitais e para presidente da República.
A democracia estava caminhando. O País vê surgir o
Plano Cruzado, a Assembléia Constituinte aprova mandato de
cinco anos para Sarney; a Constituição brasileira
é promulgada a 5 de outubro de 1988. Finalmente, em 15 de
novembro de 1989, os cidadãos vão às urnas
para eleger seu presidente, após 29 anos sem eleições
diretas para o cargo. O segundo turno seria disputado por Fernando
Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva. Na Nova República,
coube à geração cara pintada lutar
pelo impeachment de Collor em 1992. A sociedade civil finalmente
despertou para suas liberdades e garantias depois de um longo ostracismo
e sua participação no comando do País foi o
coroamento do processo democrático iniciado.
Por
trás de tantos fatos marcantes, como que um timoneiro a conduzir
o barco, um nome se destaca na impressão da história
recente da democracia brasileira: Ulysses Guimarães. Durante
aqueles episódios inesquecíveis para tantos brasileiros,
a quase insuperável experiência conquistada nos corredores
do poder e nas ruas e o currículo ilibado e respeitado até
por seus adversários partidários, passariam a ser
reconhecidos pelo grande público. Mas tudo isso não
foi exatamente uma novidade para o Senhor Diretas, codinome dado
ao então presidente da Câmara Federal em razão
da mobilização que angariou em torno do Movimento
Diretas- Já. Para Ulysses, a luta por eleições
livres era questão bem mais antiga. O brilhantismo do grande
estadista começou a despontar na juventude, quando liderou
a Ala Moça do PSD (Partido Social Democrático), nos
anos 50, após o suicídio de Getúlio Vargas.
Em 1974, quando compunha o Grupo Autêntico do MDB em oposição
aos moderados de Tancredo, enfrentou o regime lançando-se
como anticanditato à Presidência para manifestar a
necessidade de um escrutínio direto. Em campanha, pregou
as idéias oposicionistas em todo o País e chegou a
ser perseguido por cachorros da polícia baiana do governador
Roberto Santos.
A repercussão
de seu ato chegou ao exterior e irritou os militares.Todas essas
passagens e a trajetória do político que por 20 anos
conduziu a presidência do PMDB, entre outros episódios
decisivos da sua vida pessoal que em muitos momentos chega a se
confundir com a própria história política brasileira,
estão no livro Dr. Ulysses - O homem que pensou o Brasil,
recém-lançado pela editora Artemeios. Através
dos depoimentos de 39 personalidades ligadas a ele, seja por laços
familiares, de amizade, de militância ou profissionais, as
jornalistas Celia Soibelmann Melhem e Sonia Morgenstern Russo (ver
box) recompõem a odisséia de Ulysses.
Segundo as jornalistas, as entrevistas foram realizadas em 1993,
logo após o trágico acidente de helicóptero
que matou também a esposa Mora Guimarães e o casal
de amigos, senador Severo Gomes e a mulher Ana Maria Henriqueta
Marsiaj Gomes. Desta forma, as declarações estão
carregadas de toda a emoção e todo o vigor das
lembranças mais candentes que poderiam acorrer aos entrevistados
sobre esse grande vulto histórico, segundo as autoras.
"O poder não corrompe o homem; é
o homem que corrompe o poder. O homem é o grande poluidor,
da natureza, do próprio homem, do poder", dizia Ulysses
Sonho de um estadista
Os conturbados bastidores políticos que subtraíram
do Senhor Diretas o grande sonho de governar o País e outros
imbróglios do jogo diplomático são retratados
no livro sob os diferentes enfoques possíveis dados por cada
entrevistado. O expresidente Fernando Henrique Cardoso, que se aproximou
do MDB por obra de Ulysses, descreve como foi a reação
do deputado quando soube de sua boca que ele não seria o
candidato à Presidência da República pelo PMDB
em 1985. Eu era presidente do PMDB paulista (...) conversamos
em pé mesmo, na sala da secretária (...) Olha,
Dr. Ulysses, eu queria lhe dizer que, por tudo que ouvi e soube,
a candidatura presidencial do Tancredo vai ser apoiada por São
Paulo também, porque ele tem mais chances de ganhar no Colégio
Eleitoral. (...) Olhou-me com aquele jeito dele, com o olhar
meio distante, e perguntou: Você tem certeza? Quero
ouvir deles, do Montoro e do Gusmão. Respondi: Tenho
certeza (...) Depois tivemos um encontro no Palácio
dos Bandeirantes, o Montoro, o Ulysses, o Gusmão e eu. E
nesse encontro, de fato, ele perguntou cara a cara, e os demais
confirmaram (...) Dois dias depois, o Ulysses foi a Minas e assumiu
o comando da campanha do Tancredo.
Sobre
o episódio em que o PMDB decidiu apoiar a candidatura de
Tancredo Neves, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declara
na obra que chegou a alertar o deputado: Olha, Dr. Ulysses,
eu sei que passaram a perna no senhor, embora o senhor não
queira reconhecer publicamente. Acho que o pessoal do Tancredo Neves,
e o próprio Tancredo, sabia que se a gente conquistasse as
Diretas o senhor seria o candidato natural à Presidência.
E o Tancredo Neves sabia que a única possibilidade que ele
tinha de ser o presidente da República era pela via indireta,
pelo Colégio Eleitoral. Então eles passaram passaram
a perna no senhor; o senhor foi deitar presidente da República
e acordou cabo eleitoral do Tancredo Neves. Essa é a verdade.
O ex-governador André Franco Montoro e a esposa Luci Montoro,
além de Mário Covas, companheiros de militância
que engrossaram a fileira do Grupo Autêntico
do MDB ao lado de Ulysses, também dão sua versão
dos fatos. Renato Archer, amigo de longa data que manteve cumplicidade
política com Ulysses desde a década de 50, e a esposa
Maria da Glória Archer contam com riquezas de detalhes os
cenários histórico- políticos de vários
períodos e as atitudes, preferências e postura do deputado.
Ele era visto [pelos militares] como o líder político
de fato do partido que combatia o governo das Forças Armadas
ou a intromissão destas na vida pública. Entretanto,
era honesto, uma pessoa que não tinha envolvimento em nenhum
tipo de atividade empresarial em negócios, sem interesse
material, o Ulysses gozava de total credibilidade junto a todos.
Nunca se conseguiu levantar nada contra ele, fazer uma alegação
qualquer de improbidade, porque seria completamente inverossímil,
disse Archer. As entrevistadoras, que acumulam longa experiência
em assessoria política e na área acadêmica,
alertam que alguns depoimentos saíram prejudicados por questões
circunstanciais, como o de um dos melhores amigos pessoais de Ulysses,
o deputado João Pacheco Chaves.
Suas
respostas mais longas chegam a três linhas. A explicação,
dada por Célia no prefácio, é que na época
da entrevista o parlamentar encontrava-se enfermo. Além dos
citados, o livro reproduz relatos de nomes como o falecido jornalista
Barbosa Lima Sobrinho, do professor e ex-ministro das Relações
Exteriores Celso Lafer, do ex-governador Mário Covas, do
economista Luis Carlos Bresser Pereira, do ex-presidente do Senado
Nelson Carneiro, do deputado Ibsen Pinheiro - que substituiu Ulysses
na presidência da Câmara -, entre outros. Antes de ser
uma homenagem a um homem que ajudou a construir uma nova face para
o País, o livro das duas jornalistas é, na verdade,
um retrato bem-acabado do fazer política no Brasil nas últimas
décadas.
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Dr.
Ulysses - O homem que pensou o Brasil. 39 depoimentos sobre
a trajetória do Sr. Diretas, organizado por Celia Soibelmann
Melhem e Sonia Morgenstern Russo, Editora Artemeios, 443 páginas. |
Frases
do estadista
É o voto, somente ele, que faz a acoplagem dos cidadãos
com os homens públicos e o Estado. Desenvolvimento
sem liberdade e justiça social não tem esse
nome. É crescimento ou inchação, é
empilhamento de coisas e valores, é estocagem de serviços,
utilidades e dívidas, estranha ao homem e seus problemas,
é inacessível tesouro no fundo do mar, inatingível
pelas reivindicações populares.
Em política, estar com a rua não é o
mesmo que estar na rua.
O poder não corrompe o homem; é o homem que
corrompe o poder.
O homem é o grande poluidor, da natureza, do próprio
homem, do poder.
Se o poder fosse corruptor, seria maldito e proscrito, o que
acarretaria a anarquia.
Foi o homem quem derrotou Hitler. Derrotaram-no as nações
baseadas na liberdade e nos direitos humanos, em que o homem
é fim e não meio.
Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição,
trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar
patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.
(...) O Estado autoritário prendeu e exilou; a sociedade,
com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras
que o mataram (trecho do discurso na promulgação
da nova Carta, em 1988, sobre os anos de chumbo).
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Uma
vida dedicada à política e ao Brasil
Nascido em Rio Claro, interior de São Paulo, a 6 outubro
de 1916, Ulysses Silveira Guimarães era filho do coletor
federal Ataliba Silveira Guimarães e da professora
primária Amélia Correa Fontes. Formou-se Ciências
Jurídicas Sociais pela Faculdade de Direito Universidade
de São Paulo em 1940, especializando em Direito Tributário.
Antes de entrar para a política, em 1945, foi presidente
da Federação Paulista de Futebol e exerceu atividades
de professor, advogado, professor e escritor.
Num
concurso literário promovido em 1939 pela Academia
Paulista de Letras, recebeu o título de maior
prosador das Arcadas. Em junho de 1940 elegeu-se primeiro
vice-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes)
e foi orador de sua turma.
Em 1945, durante o processo de redemocratização
do País, filiou-se ao Partido Social Democrático
(PSD), onde permaneceria até a extinção
da legenda, em 1965. Em 1947 elegeu-se deputado Constituinte
em São Paulo. Em 1949 tornou-se líder da bancada
pessedista na Assembléia Legislativa. Aos 34 anos,
em outubro de 1950, tornou-se deputado federal, permanecendo
no cargo até os 76 anos, quando ocorreu o acidente
de helicóptero em 1992, litoral do Rio de Janeiro,
qual morreram dona Mora ou Ida Guimarães,
sua esposa -, o senador Severo Gomes e a esposa Ana Maria
Henriqueta Marsiaj Gomes. Em 1965, foi um dos
fundadores do então MDB, depois transformado em PMDB,
partido que presidiu por 20 anos e do qual também foi
presidente de honra. Candidato à Presidência
da República 1989, não obteve sucesso. Mas sua
atuação política marcou a história
do País, especialmente nos anos de redemocratização,
quando, como presidente da Câmara Federal e, por conseguinte,
da Assembléia Nacional Constituinte, promulgou a nova
Carta a 5 de outubro de 1985.
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