Tudo o que quero é ser feliz, mas ao mesmo tempo
vem a realidade e me mostra o que tenho. Você sabe o que tenho?
Nada, nem amor nem saudade. Só tenho o meu egoísmo.
Esses versos preenchem as páginas brancas do diário
de D. E. S., um rapaz de 17 anos, interno da Unidade de Internação
Provisória (UIP) da Fundação Estadual do Bem-Estar
do Menor (Febem) de Bauru (SP), e expressam uma face menos endurecida
e brutalizada da que pensamos quando nos referimos aos jovens infratores.
Eles revelam tão-somente um desejo incondicional de atingir
uma tal felicidade idealizada e o reconhecimento do egoísmo
que destrói qualquer perspectiva de crescimento. Em outras
páginas, o adolescente expõe: Toda semente de
amor garante frutos de paz.
A poesia é um dos instrumentos utilizados pela equipe técnica
da Febem para gerar transformações no perfil de jovens
de 12 a 18 anos que cumprem medidas socioeducativas estabelecidas
pela Vara da Infância e Juventude. A atividade integra as
ações do Programa Educação e Cidadania
(PEC), desenvolvido com adolescentes que aguardam a sentença
judicial na Unidade de Internação Provisória.
Cinco grandes temas são abordados em sala de aula na
parte da manhã e, à tarde, eles participam de oficinas,
conta a pedagoga Valéria Val. Educação, família
e relações sociais, justiça, cidadania e trabalho
são os temas centrais que conduzem discussões e atividades
educacionais e artísticas.
O D., por exemplo, se destacou nas oficinas de poesia, correspondência
e jornal. Ele demonstrou talento para escrever, conta. D.
está na Febem desde os 15 anos. Foi desinternado aos 17,
mas retornou à instituição há pouco
mais de quatro meses, engrossando os índices de infratores
reincidentes. reincidentes. De acordo com a Assessoria de Imprensa
da Febem-SP, o porcentual de reincidência nas unidades é
de 19%. Em Bauru é de 16%, índice decrescente
nos dois últimos anos devido ao investimento em cursos e
oficinas profissionalizantes e em parcerias que ajudam a dar melhor
condição de vida aos jovens em conflito com a lei
que se encontram internados na cidade.
Com histórico de rejeição e desatenção
familiar depois que perdeu a mãe, aos 10 anos, e fruto do
relacionamento de sua mãe (loira) com um homem negro, D.
cresceu convivendo com os mais cruéis comportamentos humanos:
preconceito racial por parte da própria família (todos
seus irmãos são loiros), intolerância, egoísmo
e abandono. Aprendeu a se virar sozinho e a se valer da violência
para se defender. Dos 10 aos 15 anos, viveu todo tipo de drama social,
até ir parar na Febem. Foi na unidade de Bauru, em meio a
crises, que D. foi adotado por Julieta Maria de Oliveira Fernandes,
uma velha conhecida da família de sua mãe biológica.
Eu até descolori o meu cabelo para ficar parecida com
a mãe dele, por quem ele era apaixonado, conta Julieta,
demonstrando um amor incondicional ao filho. Antes, ele era
uma ostra. Não conversava nem exprimia seus sentimentos.
Mas eu sempre soube o quanto ele se sentia rejeitado, diz.
E completa: escrevendo e estudando, ele é outra pessoa.
A leitura e a escrita influenciaram tanto a vida de D. que seu desejo,
hoje, é tornarse jornalista. Um sonho não tão
distante, já que no ano passado dois garotos internos prestaram
vestibular e ingressaram na faculdade. Atualmente, já em
liberdade, ambos cursam Direito, com bolsa integral.
Parceria inédita
Além das atividades educacionais rotineiras, previstas no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a mais nova alternativa
profissional dos adolescentes da Febem de Bauru é resultado
de uma parceria inédita estabelecida entre a Secretaria Estadual
do Bem-Estar Social, a Febem, o Conselho Municipal dos Direitos
da Criança e do Adolescente, o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai) e o Centro das Indústrias
do Estado de São Paulo (Ciesp). A USP também colabora
com os jovens em recuperação através de um
programa de assistência odontológica.
Graças à parceria entre Febem, Senai e Ciesp, desde
janeiro deste ano são oferecidos cursos na área de
construção civil com cinco cursos: pedreiro, encanador,
eletricista, pintor e carpinteiro telhadista) e, até agosto,
a pedido dos próprios internos, será implantado o
Curso de Mecânica de Autos. Desde 2002, estudamos a
viabilidade de implementar cursos profissionalizantes para os garotos
da Febem, como forma de ampliar os horizontes daqueles meninos e
mostrar a eles que a Febem não é apenas um depósito
de gente, como se fala por aí, conta o pedagogo
Ubirajara Amaral Negrão, coordenador do Núcleo de
Projetos Especiais do Senai. No início, porém,
quando estivemos na Febem para conversar com os internos, eles nem
quiseram nos ouvir, relata.
O projeto levou dois anos para ser colocado em prática em
função da especificidade do público em questão.
Começamos a estudar diversos aspectos, porque são
alunos totalmente diferentes, estão internados e não
acostumados a ter suas habilidades estimuladas, conta Negrão,
relatando que desde a carga horária até o perfil dos
docentes foram rigorosamente analisados.
Não basta ser um bom profissional para dar aulas ou atender
esses garotos, que têm histórico de violência
e baixa auto-estima. No caso dos docentes, Negrão explica
que é preciso ter uma didática especial e ter um caráter
também especial para trabalhar com esses meninos. Na parceria,
o Senai entra com todo o apoio pedagógico e capacitação
dos docentes, o Ciesp é responsável pela compra dos
kits específicos dos cursos e a Secretaria do Bem-Estar Social
responsabiliza- se pelo pagamento dos docentes.
A primeira turma se formou em abril, com certificação
do Senai. Desde que iniciamos os cursos, não houve
rebelião na Febem de Bauru. Isso porque eles passaram a se
ocupar mais e a se sentir úteis, comemora Negrão.
Piloto
na unidade da Febem de Bauru, o Projeto Febem, parte do Programa
de Ações Móveis (PAM) do Senai, deve ser implantado
em outras unidades, tamanho o sucesso da iniciativa. Na Febem de
Lins (SP) e na de Iaras (SP) as negociações já
estão adiantadas.
Além de oferecer uma perspectiva profissional aos adolescentes,
esses cursos dão um grande orgulho para os familiares dos
meninos, acrescenta Celi Aparecida Martins Perpetuo, diretora
da unidade de Bauru há apenas quatro meses. Educadora, com
mais de 20 anos de bagagem, Celi está vivendo o desafio de
dirigir um dos serviços mais visados e criticados do governo
do Estado. As pessoas sabem quando ocorrem rebelião
e atos de vandalismo, mas não conhecem o lado da Febem que
funciona, esclarece.
Ponte para a cidadania
Dentro da Febem o estudo é uma ponte para o exercício
pleno da cidadania. Na Unidade de Internação, oferecemos
do ensino básico ao médio e em todas as unidades temos
as oficinas ocupacionais e os cursos profissionalizantes,
informa Celi.
Conhecida popularmente como escola do crime, a Febem
visa a punir e ressocializar o jovem infrator, mas nem
sempre consegue administrar os conflitos e conter a violência
explícita dos jovens que chegam a cada dia mais envolvidos
no mundo criminoso. Eu acredito na educação.
Acredito nas pequenas transformações que podemos causar
em alguns desses jovens a partir de oficinas de leitura e jornal,
de cursos diversos e, especialmente, dos diálogos travados
entre eles e nossos educadores, completa Celi. Afinal,
eles não nasceram marginais, reflete. Um dos objetivos
dessa nova direção é destruir a imagem de escola
do crime e mostrar que a educação pode revolucionar
uma sociedade.
Fundada em 2002, a unidade da Febem de Bauru tem, hoje, 72 internos
do sexo masculino, com idade entre 12 e 21 anos, instalados em três
locais específicos: Unidade de Internação Provisória
(UIP), Unidade de Internação (UI) e Unidade de Acolhimento
e Encaminhamento Inicial (UAEI), esta destinada à recepção
e ao encaminhamento de crianças e adolescentes abandonados,
negligenciados, vítimas de maus tratos, com ameaça
de vida ou em situação de rua.
Apesar de todos os esforços, muitos são os obstáculos
para que a rotina da Febem seja desmitificada. Saber qual é
a atuação oficial é simples, difícil
é ouvir e conhecer as histórias dos internos. Protegidos
e resguardados por força de lei, toda e qualquer aproximação
desses jovens deve ser acompanhada, seguindo rigorosamente todos
os critérios de segurança. Ligada à Secretaria
de Estado da Educação, a Febem tem por objetivo aplicar
as diretrizes e as normas dispostas no Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA). Em todo o Estado de São Paulo, cerca
de 18 mil adolescentes recebem assistência da Febem, inseridos
em programas socioeducativos específicos (privação
de liberdade e liberdade assistida), dependendo do grau infracional
e da idade.
Em Bauru, cerca de 80 profissionais são responsáveis
pelo trabalho socioeducativo de recuperação dos adolescentes
sujeitos à medida de internação. A construção
da unidade local é uma das políticas públicas
preconizadas pela municipalização do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) para tornar eficiente o trabalho de ressocialização
dos adolescentes infratores e, especialmente, para manter o vínculo
entre o adolescente e sua família. A municipalização
do ECA é vista como uma medida prioritária para a
eficiência da reintegração do menor infrator
ao convívio social, afirma a coordenadora pedagógica
Roseli Diccine Mariano, que atua na unidade de Bauru desde sua fundação,
em 2002. Só agora, dois anos depois de uma rotina constante
de investimento na educação, começa a colher
frutos de um trabalho embasado na humanização da estrutura.
Rotina
Antes de receber a sentença, os adolescentes infratores ficam
na Unidade de Internação Provisória, com restrição
de liberdade pelo prazo de 45 dias, até que sua medida socioeducativa
seja definida, em forma de sentença judicial. Mas esse prazo
pode se estender, conforme a disponibilidade de vagas na Unidade
de Internação, para onde o adolescente é, em
geral, transferido. O prazo máximo de permanência na
instituição é de três anos, conforme
o artigo 122 do ECA. O circuito fechado (privação
de liberdade) conta com 77 unidades em todo o Estado, abrigando
6.507 adolescentes um número que se altera dia a dia,
em razão de novas internações e das desinternações
determinadas pela Vara da Infância e da Juventude.
O jovem infrator também pode ficar em semiliberdade, como
forma de transição para o meio aberto. Nesse caso,
o adolescente trabalha ou estuda fora da instituição,
voltando à tarde para dormir em sua unidade de origem, como
determina o artigo 120 do ECA. A outra alternativa é a liberdade
assistida ou o chamado circuito aberto, em que o adolescente
e sua família são acompanhados por assistentes sociais
e psicólogos durante um período determinado, devendo
comparecer à instituição, juntamente com seus
familiares, para uma avaliação periódica, até
que complete o cumprimento das medidas socioeducativas (artigo 118
do ECA).
Mãe e filho
A
Febem mantém ainda o projeto Mães Dentro da Unidade.
O nome já diz tudo. As mães deixam de imaginar, lá
de fora, o que se passa com seu filho dentro da Febem e, na prática,
passam um dia todo se integrando aos grupos de trabalho e vivendo
experiências rotineiras na unidade. Nós nos aproximamos
mais da realidade de nossos filhos, recebemos orientações
sobre temas importantes e ainda realizamos trabalhos artesanais,
conta Rosalina Beatriz de Oliveira, mãe de E. O. F., interno
há quatro meses. E. Ingressou na Febem em companhia de D.,
que era reincidente. A angústia de ter um filho na Febem,
vivida por Rosalina, é dividida com a irmã Julieta
Fernandes, mãe de D. Irmãs, elas unem forças
para esperar a liberdade dos filhos.
O principal objetivo do projeto Mães Dentro da Unidade
é estreitar os laços familiares e fazer com que as
mães se inteirem da rotina vivida pelos garotos, informa
a psicóloga Andrea de Carvalho Carrer. Segundo ela, essa
experiência tem contribuído para a redução
da reincidência de internação, já que
mãe e filho se aproximam e a volta para casa passa a ser
mais saudável. Era comum, com o distanciamento, ocorrerem
discórdias familiares e os adolescentes voltarem a cometer
delitos.
Saúde
bucal, mais uma conquista
Neste mês de junho, os internos da Febem de Bauru obtiveram
mais uma conquista, graças a uma parceria firmada entre
aquela unidade e o Hospital de Reabilitação
de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da USP, o Centrinho de Bauru.
Com 14 anos de estrada, o Programa Extramuros Multiplicando
Sorrisos, de atendimento odontológico curativo e preventivo,
trilha novos desafios a caminho da cidadania. Vai agora atender
os internos da Febem.
A exemplo da equipe do Senai, a coordenadora do Programa Extramuros,
cirurgiã-dentista Renata Pernambuco, do Centrinho,
destaca a necessidade de se ter um perfil adequado para lidar
com os internos e cuidados redobrados com a segurança,
já que são utilizados materiais perfurocortantes.
Eles são um público especial e, como trabalhamos
com a atuação dos alunos de especialização
em saúde coletiva, é fundamental selecionarmos
para este atendimento pessoas que não se envolvam emocionalmente
e que consigam conduzir o tratamento de forma profissional,
conta Renata.
Antes, os adolescentes eram escoltados até serviços
de atendimento odontológico da cidade. Com essa
parceria, tudo ficará mais fácil e ágil,
já que os cirurgiões- dentistas virão
até aqui, comemora a diretora da unidade, Celi
Aparecida Martins Perpetuo.
O programa em saúde bucal que será desenvolvido
na Febem de Bauru terá inicialmente caráter
preventivo- educativo, explica a coordenadora Renata
Pernambuco. Nesta primeira etapa, estão sendo definidas
as necessidades de tratamento e os índices de cárie
dentária dos adolescentes, por meio de um levantamento
epidemiológico baseado em metodologia preconizada pela
Organização Mundial da Saúde (OMS -1997).
A sala do dentista e o equipamento odontológico estão
sofrendo reparos pelos técnicos do Centrinho e, como
ainda existem problemas de recursos materiais (instrumentais
odontológicos, equipamentos e material de consumo),
em princípio o tratamento odontológico será
emergencial. Vamos cuidar das lesões iniciais
utilizando a técnica da restauração atraumática
e, nos casos mais severos, vamos recorrer a extrações,
conta Ismar Eduardo Martins Filho, 23 anos, aluno do Curso
de Especialização em Saúde Coletiva do
Centrinho, por meio do qual é desenvolvido o Programa
Extramuros.
Em uma segunda etapa, os adolescentes participarão
de um processo de motivação à saúde
bucal. O objetivo do método aplicado é motivar
os adolescentes a desenvolverem maior interesse a respeito
do assunto, com base nas principais preferências deles.
Atividades dinâmicas e participativas com o auxílio
de alguns recursos, como jogos, slides, associação
com personalidades, programas de TV mais admirados por eles
e oficinas que envolvem a criatividade, são alguns
dos recursos utilizados pelos especializandos de Saúde
Coletiva. Os assuntos abordados trazem conceitos básicos
a respeito de placa bacteriana, cárie, dieta, higiene
bucal, flúor e doenças gengivais e periodontais.
Desafios
Inúmeras são as dificuldades para acesso a atendimentos
odontológicos de qualidade por parte da maioria da
população brasileira, em função
de seus reduzidos rendimentos e da estrutura altamente liberal
da profissão.
Restrições maiores são encontradas em
grupos marginalizados pela sociedade, indivíduos que
vivem permanentemente ou por longos períodos isolados
do convívio social (asilados, deficientes físicos,
dependentes químicos, indivíduos no cárcere,
pessoas enfermas, com déficit neuropsicomotor, órfãos,
entre outros). Se esses indivíduos não
forem atendidos em seu ambiente de vida, muito provavelmente
terão grandes dificuldades em receber atenção
odontológica pelas unidades de saúde responsáveis,
pondera Renata.
De acordo com o maior levantamento sobre saúde bucal
já feito no País, da Coordenação
Nacional de Saúde Bucal do Ministério da Saúde,
finalizado este ano, 13% dos adolescentes brasileiros nunca
foram ao dentista. Considerada apenas a região Nordeste,
esse índice sobe para 21,76%. E, segundo o Ministério
da Saúde, cerca de 90% dos adolescentes de 15 a 19
anos apresentam pelo menos um dente permanente com experiência
de cárie dentária.
Na Febem de Bauru esses e outros problemas começam
a ser resolvidos. E mais: sentindo-se tratados com dignidade,
os adolescentes internos estão adquirindo confiança
em si próprios e enxergando saídas para uma
vida futura, longe da dureza dos muros e da solidão
das celas.
Extramuros
Elaborado em 1990 por uma equipe da Faculdade de Odontologia
de Bauru (FOB) da USP, desde 1992 o Programa Extramuros conta
com a participação dos alunos do Curso de Especialização
em Odontologia em Saúde Coletiva do Centrinho. Os alunos,
por sua vez, ganham a oportunidade de desenvolver ações
práticas no trabalho em campo. Para monitorar as atividades,
uma cirurgiã- dentista coordena o atendimento odontológico
protético, curativo e educativo levado até as
entidades assistenciais.
Em 2003, mais de 9 mil pessoas foram atendidas pelo Extramuros
como os idosos da Vila Vicentina, os internos da Sociedade
Beneficente Cristã (Paiva), crianças de creches
públicas e os alunos da Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).
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