O
engenheiro Leonel de Moura Brizola era um brasileiro apaixonado.
Apaixonado pela política, pelo trabalhismo, pelo Brasil e,
acima de tudo, um apaixonado por suas convicções.
Em quase seis décadas de vida pública, pouco ou nunca
se viu Brizola morto por um infarto agudo segunda- feira,
dia 21, aos 82 anos transigir de suas idéias, suas
posições ideológicas, por mais que parecessem
absurdas ou até mesmo profunda heresia a seus olhos
antipatrióticas em um primeiro momento. Um exemplo?
Quando o País, entre perplexo e esperançoso, viu o
então presidente José Sarney apresentar o Plano Cruzado,
em 1986, Brizola foi uma das poucas vozes discordantes em meio a
multidões de fiscais do Sarney. Ele foi à
TV o homem sabia como poucos usar a mídia e,
de forma didática, explicou ponto por ponto por que o plano
faria água. Essa moçada continua querendo curar
câncer com injeção de Cibalena, disse
à época. Ninguém deu bola, vendo naquilo mais
um ataque de ciúmes do então governador do Rio de
Janeiro. Meses depois, quando o Plano Cruzado de sonho havia virado
pesadelo, vazando inflação por todos os lados, brasileiros
e brasileiras foram obrigados a reconhecer que o que Brizola havia
dito fazia sentido. Nem sempre foi assim, é verdade, mas
antes de se preocupar com a coerência que inspirava nos outros,
Brizola se interessava mais em ser coerente consigo próprio.
Foi assim desde 1945, quando, impressionado com o trabalhismo, getulista,
se integrou às hostes de Vargas e do PTB e, a partir de então,
disputou com seu cunhado João Goulart e mais tarde
com Ivete Vargas o lugar de legítimo sucessor do Pai
dos Pobres, principalmente depois que Vargas resolveu sair
da vida para entrar na história. O tom histriônico,
por vezes caricato, mas sempre incendiário de Brizola talvez
só encontrasse paralelo em outro político seu contemporâneo,
Carlos Lacerda, apesar de todas as distenções ideológicas
que os separavam. Só que, enquanto Lacerda se dedicou por
décadas ao seu esporte favorito de tentar derrubar presidentes
só foi conseguir com Jango, depois de tentativas fracassadas
com Vargas e JK e foi soldado de primeira hora da ditadura
militar que se alocou no poder em 1964, Brizola estava exatamente
na trincheira oposta. Enquanto Lacerda trabalhava para impedir Jango
de assumir a Presidência após a renúncia de
Jânio Quadros, Brizola soltou a voz na direção
contrária literalmente.
Foi para defender a posse de Jango que o então governador
gaúcho, desde o Palácio Piratini, comandou a Cadeia
da Legalidade, uma rede de 104 rádios de todos os Estados
do Sul do País para defender a posse do então vice-presidente.
É capaz que Brizola tenha conseguido uma vitória de
Pirro afinal, Jango foi empossado, sim, mas com poderes restringidos
pelo parlamentarismo que teve de engolir em seco, e o gesto de tomar
microfones para conclamar a legalidade da posse acabou por fazer
dele o inimigo número 1 dos militares, que assim que puderam
cassaram seus direitos políticos , mas o jovem governador
gaúcho, que nem havia chegado ainda à casa dos 40
anos de idade, se tornou conhecido Brasil afora, e essa fama só
fez aumentar quando ele tentou, sem sucesso, convencer Jango a resistir
ao golpe. Para o bem e para o mal, essa notoriedade de Brizola o
acompanhou por todas as décadas que se seguiram, e só
fez aumentar a partir de 1979, quando, finalmente anistiado, ele
pôde voltar ao Brasil e continuar preparando suas surpresas
políticas.
Talvez a maior delas tenha sido ganhar a eleição de
1982 para o governo do Rio de Janeiro a primeira direta em
décadas , derrotando o chaguismo (do ex-governador
Chagas Freitas) representado por Miro Teixeira, o lacerdismo de
Sandra Cavalcanti e o ainda poderoso e governista PDS, com seu candidato
Moreira Franco, a quem Brizola, em um de seus inúmeros momentos
de ironia, chamava de gato angorá. O epíteto
era uma nada lisongeira homenagem às madeixas grisalhas do
candidato do governo. Dom Leonel como era conhecido
em seu exílio no Uruguai ganhou a eleição
fluminense com mais de 3 milhões de votos, mas quase viu
a vitória escorrer pelo ralo do malfadado e até hoje
mal explicado caso da Proconsult, a empresa contratada para apurar
os votos do Estado do Rio e que, curiosamente, não computava
cédulas que trouxessem o nome cravado de Leonel Brizola.
O candidato foi, mais uma vez, para a TV e as rádios, botou
a boca no trombone, atacou Roberto Marinho e a TV Globo duas
de suas maiores obsessões e recebeu a chave do Palácio
Laranjeiras. Seu governo, para muitos de seus críticos, tem
dois marcos: os Cieps os Centros Integrados de Educação
Popular, idealizados pelo então vice-governador Darcy Ribeiro,
que mais tarde, no segundo governo de Brizola no Rio, nos anos 90,
criaria também o Sambódromo e o momento em
que o Rio começou a virar terra de ninguém, com os
traficantes começando a deitar seus longos tentáculos
sobre uma cidade cuja polícia, segundo dizem seguindo ordens
superiores, não podia subir os morros para prender
bandidos. Deu no que deu.
Ter governado o Estado do Rio talvez tenha sido o último
grande momento da carreira política de Leonel Brizola. Depois
disso, ele só conheceu fracassos e não viu seu grande
sonho, a Presidência da República, ultrapassar os umbrais
do universo onírico. Se candidatou por duas vezes, em 1989
e 1994, e em ambas teve que aceitar que Lula o sapo
barbudo, como ele o chamou quando da disputa com Collor
tinha mais apelo. Em 1998 achou que havia encontrado a fórmula
de chegar lá: seria vice de Lula contra a reeleição
de Fernando Henrique. Não deu nem para saída. FHC
ganhou no primeiro turno e desde então a chama brizolista
foi minguando, minguando, a ponto de ele acabar em um modestíssimo
quarto lugar na última eleição para a prefeitura
do Rio.
Mas nem por causa disso esse gaúcho de Cruzinha, um vilarejo
encravado no interior do Rio Grande, que gostava de aparecer pilchado
e que fazia de seu sotaque característico uma das marcas
de sua personalidade, se calou. Foi oposição a Collor,
a FHC e a Lula, de quem recusou um convite para ser ministro, e
continuou do outro lado do balcão, mesmo tendo como único
cargo político a presidência do PDT, o partido que
fundou assim que voltou do exílio. Uma questão de
coerência brizolista. Não queria saber de aposentadoria.
Serei como um cavalo inglês: só vou morrer na
cancha, disse ele alguns anos atrás. A cancha, é
verdade, foi ficando cada vez mais estreita, mas nem por causa disso
ele tencionava desistir de qualquer disputa. Há algumas semanas
já cogitava se candidatar de novo à prefeitura do
Rio. Passional, nacionalista ao extremo, carbonário para
uns, demagogo para outros, com Leonel Brizola morre um pedaço
considerável da história recente do Brasil e uma forma
de fazer e de personificar a política que talvez não
exista mais. Ele vai fazer falta? É bem capaz. É sempre
saudável para a política de qualquer país um
opositor com brios. Mesmo que, para muitos, tenha por vezes um leve
tom de caricatura.
Um
leão dos pampas
Governador? perguntou o repórter do Jornal
do Brasil, que tinha como missão cobrir o último
dia de governo carioca de Leonel Brizola no começo
de 1987. Diga, jornalista respondeu aquele homem
de cerca de 1,70 m, sotaque carregado, dedo em riste e olhar
penetrante.
Leonel Brizola era um personagem de si mesmo, e essa rápida
abordagem com o intuito de iniciar uma entrevista foi emblemática
nesse sentido. Ao virar-se para falar comigo, o então
governador que vivia suas últimas horas no poder mostrou
a razão de ter passado de azarão nas eleições
de 1982 para o grande vencedor à corrida ao Palácio
Laranjeiras. Os olhos cravados nos meus, a personalidade muito
maior do que sua estatura física davam razão
àquela verdadeira multidão reunida em um Ciep
na zona norte carioca. Antes de ser um político contestado
e contestatório, antes de ser um legítimo representante
da velha-guarda do trabalhismo, Brizola era carismático.
Muito. E messiânico, completariam alguns, referendados
pelas manifestações quase de transe que ele
provocava em seus eleitores. Naquele mesmo Ciep, pouco antes
de minha abordagem, ele havia visto um homem de seus quarenta
e poucos anos se jogar a seus pés e, chorando, pedir-lhe
que não deixasse o governo.
O que é isso, o que é isso? Levanta-te!
Tu és homem ou não? Levanta-te, que homem não
chora! foi a resposta de Brizola a seu eleitor desarvorado,
ao mesmo tempo que o segurava pelos braços e o obrigava
a ficar de pé. E levando um beijo no rosto logo em
seguida.
É verdade que, com o passar dos anos, seu discurso
ganhou um tom anacrônico que só fez se acentuar
cada vez mais até o seu crepúsculo político,
mas naquela época Brizola era, por assim dizer, cult.
E estava afiadíssimo. Tanto que, no final daquele dia,
ele foi dar uma entrevista na Rádio JB a Villas- Boas
Correa, um dos melhores repórteres políticos
de qualquer geração do jornalismo brasileiro.
Exercitando todas as elipses a que tinha direito, Brizola
respondeu o que quis, dizendo o que lhe interessava e não
o que lhe era perguntado, deixando o bom Villas um tanto atordoado.
Ele voltou ao governo anos mais tarde, nos encontramos profissionalmente
outras vezes, mas aquele dia foi marcante. O homem era uma
fera. E um bom leão, mesmo velho, nunca perde os dentes.
(M. R.)
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