Tudo O paulistano sentiria saudades daquele friozinho
vespertino da terra da garoa, das pizzas crocantes do bairro do
Bixiga ou da calmaria dominical da avenida Paulista, ao passar muitos
dias fora da capital. O carioca se ressentiria de perder as tradicionais
feijoadas de sábado, animadas com rodas de samba, o charme
sedutor de Copacabana, os botequins com requintados pratos típicos.
O gaúcho, para onde vai, costuma levar pelo menos seu chimarrão
(mate amargo, servido quente e sorvido por uma bomba, contido numa
cuia ou porongo) para se sentir mais em casa. Hábitos bem
sulistas, que trocam de endereço mas se repetem em muitas
outras cidades do Sudeste e do Sul do País. As contradições
e diferenças culturais se acentuam, mesmo, quando contrastamos
os hábitos e costumes de sulistas com os de nordestinos e
nortistas, população com maior influência das
culturas indígena e africana.
É verdade que o Brasil inteiro é marcado pela miscigenação
de raças e costumes, sensivelmente observada na cultura popular.
De Norte a Sul é possível conhecer um país
diferente, com comidas e bebidas típicas, danças e
festas tradicionais, expressões e sotaques próprios,
histórias e ritmos cheios de imaginação e mistério.
Mas, se por um lado a diversidade cultural pode causar encantamento
e deslumbre diante do novo, por outro, quando as condições,
materiais e psicológicas, que nos tiram da cidade natal e
nos levam a realidades adversas a nossa estão ligadas a problemas
de saúde, as reações mais comuns são
choque, estranhamento, aperto no peito e uma vontade enorme de encontrar
iguais.
Esses são os sentimentos que costumam invadir a alma cabocla
de muitas pessoas que deixam o Estado do Amazonas e outros Estados
da chamada Amazônia Legal como Pará, Acre, Rondônia,
Roraima e Amapá em busca de tratamento reabilitador
na área de fissuras labiopalatais (fenda no lábio
e no palato, popularmente chamado céu da boca) e outras anomalias
faciais congênitas (deformidades devidas ao não fechamento
de estruturas faciais durante a gestação), oferecido
pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais,
o Centrinho da USP, instalado na cidade de Bauru, que acaba de completar
37 anos de atuação.
No Centro de Tradições Amazônicas,
uma imensa riqueza cultural é preservada, com ajuda do Centrinho
Tacacá e dindim
Eu tô há uns dias aqui e não encontrei
goma em lugar nenhum para fazer o tacacá. Daí, fui
comprar um dindim, mas a moça não me entendeu, não.
Disse que até ela queria dindim, mas tava difícil
de conseguir! Eu é que não entendi nada, afinal só
queria me refrescar.
O relato acima foi feito, ao acaso, à amazonense Sandra Macedo
Pereira, assistente social especialista em Ciências Sociais,
residente em Bauru desde 1990, quando ela e seu marido, o estudioso
em folclore Tito Pereira, caminhavam nas ruas de Bauru e foram abordados,
inicialmente, com um pedido de informação feito por
um homem que, depois de se identificar como pai de paciente do Centrinho
e amazonense, foi acolhido como uma criança perdida.
Sempre fomos muito interessados em cultura popular e, desde
que nos conhecemos, temos projetos de estudar mais a cultura amazonense,
relata Tito Pereira. Nascido em Guaimbê (SP), formado na área
de Odontologia pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado
em Saúde Pública pelo Centro de Ensino Unificado de
Brasília (CEUB) e em Didática pela Universidade do
Distrito Federal (UDF), Tito Pereira chegou a participar do primeiro
projeto Rondon, em 1971, época em que morou na Amazônia,
com uma tribo indígena, e aprendeu a cultivar a cultura amazônica.
Mas a motivação definitiva para criarmos um
centro de tradições amazônicas surgiu mesmo
quando fomos abordados na rua por um amazonense que solicitava informação
sobre pontos de Bauru, conta Pereira. Quando ele se
identificou como amazonense, a Sandra deu um pulo e logo o convidou
para ir à nossa casa, recorda-se. O homem, pai
de paciente do Centrinho, nos relatou suas dificuldades e choques
culturais vividos em Bauru, detalha Sandra. A partir
daí, começamos a pensar numa solução;
nossos compatrícios não podiam ficar na cidade sem
a acolhida que podíamos dar. Ao mesmo tempo, o casal
sabia que a acolhida deveria ser para todos. O Centrinho mantém
em seus registros de matrícula quase 500 pacientes do Estado
do Amazonas, dos quais mais de 200 vêm de Manaus, capital
com pouco mais de 1 milhão de habitantes. Quem vem de Manaus,
percorre cerca de 3.765 quilômetros para chegar em Bauru.
A viagem ocorre regularmente, para que o tratamento reabilitador
seja efetivo.
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Os
pacientes do Centrinho são a matéria-prima do
projeto |
Casa do amazonense
Com tantos conterrâneos vindo para a terra do sanduíche,
Tito e Sandra resolveram criar, em 1998, o Centro de Tradições
Amazônicas Thiago de Mello homenagem ao poeta e escritor
amazonense nascido em Barreirinha (AM). O Thiago autorizou
a utilização de seu nome e nos declarou seu apoio
ao projeto, conta Sandra.
O casal Sandra e Tito Pereira, pais de três lindas amazonenses
Thayane, 14, Ana Paula, 16, e Aline, 23 começava,
então, um trabalho de pesquisa, apresentação
de danças folclóricas (Ciranda e Boi-bumbá
de Parintins cidade onde acontece, em junho, o famoso festival
folclórico mais conhecido como a festa do boi.
A cidade se divide na torcida pelos bois: Caprichoso e Garantido),
exposições de objetos e adereços de tribos
indígenas do Amazonas e palestras sobre folclore amazonense
em escolas do ensino fundamental e médio e em faculdades
na cidade de Bauru. O casal tornou-se referência na cidade
em consultoria de folclore.
Eles também são lembrados sempre que encontramos
um conterrâneo tristonho, deslocado e cheio de saudades do
Amazonas. Nessa hora, eu passo logo o endereço da Sandra,
conta Wanda Suano da Silva, proprietária de uma pensão
que leva seu nome. Nascida em Manaus (AM), onde viveu até
os 30 anos, Wanda tem o maior prazer de receber seus compatrícios
em sua pousada, localizada nos arredores do Centrinho, e de dar
a eles a acolhida própria do povo de sua terra.
O encontro de Wanda e Sandra aconteceu no final da década
de 90, também por acaso. Puxamos conversa em um supermercado
e tivemos uma alegria enorme ao saber que éramos da mesma
cidade, recorda-se Wanda. Nascia uma amizade que, com o passar
do tempo, ampliou o intercâmbio informal entre pacientes amazonenses
e o casal do CTA.
O amazonense consegue viver harmoniosamente com a modernidade,
trazida pela própria Zona Franca de Manaus, e com a tradição.
É um povo que sabe aproveitar o desenvolvimento a seu favor
e se agarra à tradição quando percebe que pode
perdê-la, explica Sandra, que publicou a pesquisa A
cultura do igual e o espelho do diferente pela Unesp, em Marília.
É por isso que, onde quer que estejamos, procuramos
sempre transportar de pai para filho a belíssima cultura
do Amazonas e dos Estados que contemplam a Amazônia Legal,
completa.
Com o objetivo de cultivar os laços culturais e acolher os
pacientes, a própria Wanda passou a sugerir que seus hóspedes
provenientes do Amazonas, do Pará, do Acre e de outros Estados
onde a cultura é praticamente a mesma visitassem a casa de
Sandra.
Por enquanto, o CTA não tem uma sede apropriada. Os livros,
objetos e adereços amazonenses estão na residência
do casal, onde eles recebem os visitantes. Sempre que necessário,
eles transportam os objetos para os locais onde fazem exposições.
O figurino do grupo de dança idealizado por eles o
Yauaretê, homônimo de uma comunidade indígena
do Alto Rio Negro também é guardado na casa.
A nossa casa não é o lugar ideal para recebermos
visitantes, pois não temos espaço suficiente para
preparar os pratos típicos e expor os objetos, explica
Tito Pereira. Ainda assim, o casal aglomera, com esmero, objetos,
adereços, tradição e sabedoria popular no cantinho
que chamam, na intimidade, ´Casa do Amazonense`. Sempre que
pode e encontra ingredientes de sua região em casas
especializadas de Bauru ou recebe uma encomenda de sua mãe,
dona Amaziles, de 64 anos, residente em Manaus Sandra costuma
preparar alguns pratos, como pirarucu à casaca (peixe tipo
bacalhau preparado com farinha, leite de coco, banana pacovã
banana gigante parecida com a banana-da-terra , azeitonas
pretas, cheiro-verde, chicória, coentro e azeite), creme
de cupuaçu e aluá (bebida fermentada de abacaxi, muito
comum nas festas de São João, como é o quentão,
só que é servida gelada), para que sua vizinhança
experimente.
Nesta época de festas juninas e no mês de agosto, quando
se comemora o Dia do Folclore (em 22 de agosto), o Centro de Tradições
Amazônicas Thiago de Mello é muito requisitado para
proferir palestras e fazer apresentações do Yauaretê,
com danças de raízes caboclas. O grupo é composto
por 8 meninas, de 9 a 23 anos, incluindo as três filhas de
Tito Pereira e Sandra. Elas dançam com a consciência
de preservar as raízes indígenas, que aprenderam a
amar.
Também fazemos questão de organizar a festa
junina de nossa rua e de convidar todos os amigos do Centrinho,
conta Sandra. A pesquisadora admite, no entanto, que muito mais
pode ser feito para se cultivar as tradições amazônicas
e, principalmente, manter os laços afetivos com quem chega
a Bauru vindo daquela região.
Almoços em família
Dona Wanda Suano da Silva, 54, hospeda, por mês, cerca de
10 pacientes amazonenses em sua pensão. Formada em secretariado
bilíngüe, a amazonense comemora cada vez que tem a oportunidade
de ajudar um amigo, especialmente aqueles com quem tem chance de
treinar o espanhol. De boca em boca, os pacientes do Centrinho vão
espalhando a existência de uma compatrícia em Bauru.
Dos pacientes em tratamento vindos do Amazonas, Wanda hospeda mais
de 100 anualmente, o correspondente a 20% do total.
Saí do Amazonas quando me casei com o César,
que é natural de Olímpia (SP) e morou desde os 7 anos
de idade em Bauru. Em 1981, o casal se conheceu em Manaus,
onde o engenheiro mecânico César Luiz de Carvalho foi
trabalhar. Três anos depois, já casados, decidiram
deixar o Estado para tentar a vida em Bauru, onde já residia
a família de César. Foi então que a missão
de Wanda começou para valer.
Quando chegam os pacientes do Norte fazemos uma verdadeira
festa na pensão, conta, ressaltando que muitos trazem
para ela frutas da região, como cupuaçu, pupunha,
buriti e tucumã (fruta consumida no Amazonas no café
da manhã, com pão). Em 16 anos de pensão,
fiz muitos amigos e até adotei uma paciente do Centrinho,
relata. A chegada da amazonense em Bauru, no ano de 1984, realmente
foi providencial. Em 1988 ela abriu a pensão, que passaria
a hospedar, a preços populares, pessoas que vinham de longe,
cansadas e cheias de esperança no tratamento. No mesmo ano,
mudaria a vida da menina Flávia, então com dois anos
de idade e abandonada pela mãe biológica, que não
quis enfrentar os percalços de um tratamento reabilitador
de fissura labiopalatal e deficiência auditiva. Desde então,
depois dos trâmites legais, a menina passaria a ter o sobrenome
Suano de Carvalho e a conviver com a alegria colorida do imaginário
do boibumbá, dos contos do boto e das lendas caboclas
nada mal para uma carioquinha que estava no Centrinho sem ter para
onde ir.
A Flávia faz balé e parece ter a dança
no sangue, conta a mãe coruja. Em família, com
seus hóspedes- amigos, eles fazem as refeições
juntos e, se possível, com pratos típicos. A troca
de receitas e de causos amazonenses também é
comum entre eles. Até carta eu recebo desses pacientes,
já que muitos deles eu vi crescer. Ela conta que a
intimidade é tanta que muitos deixam seus pertences, como
roupas, sapatos e toalhas, na pensão para não trazer
peso na próxima viagem.
A confraternização tem seu ponto alto nos almoços
que, vez ou outra, a dona da pensão organiza com seus hóspedes.
O cardápio costuma ser bem saudosista, a exemplo do vatapá
com arroz, servido com suco de cupuaçu. Para quem pode, sobra
até um licorzinho da fruta, enviado especialmente pelo primo
de Wanda, fabricante da bebida no Amazonas.
Boi-bumbá abre passagem
Ingrid Raffaela Marinho Belém, 20 anos, paciente do Centrinho
há 13 anos, é uma manauense apaixonada pelo boi-bumbá
festa popular que se realiza no Amazonas e Pará no
São João, que abriu caminho para o intercâmbio
entre ela e o pessoal do Centro de Tradições Amazônicas
de Bauru. Nós estamos em contato permanente, porque
eu tenho enviado materiais regionais para confeccionar as roupas
da dança do boibumbá e da ciranda do pessoal do CTA
de Bauru, conta Ingrid. Aliás, desde que conheci
a dona Wanda, a Sandra e o seu Tito, quando vou a Bauru sinto que
estou num pedacinho do Amazonas. É muito bom ser acolhida
e, principalmente, conversar com pessoas que sabem das nossas tradições
e costumes.
A comerciária Julieta Conceição Corrêa
e Silva, 47, moradora de Manaus (AM), mãe do paciente Marcelo,
concorda com Ingrid: Vou para Bauru desde 1985 e me senti
em casa quando conheci a dona Wanda. O filho Marcelo começou
o tratamento com um ano de idade. Hoje, aos 20 anos, está
quase concluindo a reabilitação. Já fez 11
cirurgias, incluindo lábio e palato. Encontrar um conterrâneo
num momento delicado é muito bom. Além do mais, ganhei
uma amiga.
São
justamente esses laços de amizade, combinados com toda a
cor e sorte dos mitos e lendas que rondam o imaginário desse
povo, que tem como parâmetro de felicidade coisas simples,
como o rio, os peixes, o homem e as ervas, que mantêm viva
a esperança de pessoas como Wanda, Sandra, Tito, Julieta,
Flávia, Ingrid e tantos outros brasileiros. ´Como
sou pouco e sei pouco, faço o pouco que me cabe me dando
por inteiro, conclui Sandra, recitando Thiago de Mello,
seu poeta preferido.
Curiosas
expressões
O
gelinho ou geladinho do paulista é dindim para o amazonense.
Escavadeira é boca-de-lobo. Tampinha de garrafa para
os amazonenses é pincha. Rastelo é ciscador.
O boi-bumbá é o folguedo brasileiro mais conhecido.
Típico em diversos Estados, entre eles Amazonas, Maranhão
e Piauí, recebe nomes diferentes em cada região,
como bumba-meuboi, boi-surubi e boi-demamão. Com pequenas
variações, de acordo com a região, a
dança consiste na exibição de um boi
de pau e pano, conduzido por dois personagens Pai Francisco
e Mãe Catirina , que são acompanhados
por cavalos e uma orquestra composta de rabecas e cavaquinhos.
Na Ilha de Parintins, a 470 quilômetros de Manaus, a
festa do boi é marcada pela disputa entre dois blocos
folclóricos, o do boi Garantido, representado pela
cor vermelho, e do boi Caprichoso, da cor azul. Na culinária,
o tacacá é um prato salgado, preparado com papa
de goma (amido de mandioca), reunida a quantidade variável
de tucupi (sumo da mandioca fresca, apurada ao fogo), com
alho, sal e pimenta, a que juntam quase sempre camarões.
O tacacá difundese pelo Norte e Nordeste. Os dados
foram extraídos da pesquisadora Sandra Macedo Pereira
e do Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís
da Câmara Cascudo.
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Amazônia
Legal
A
Amazônia Legal foi instituída por dispositivo
de lei para fins de planejamento econômico da região
amazônica. Engloba os Estados da macrorregião
Norte (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia,
Roraima e Tocantins), mais o Estado do Mato Grosso (macrorregião
Centro-Oeste) e parte do Maranhão, a oeste (macrorregião
Nordeste). A área da Amazônia Legal perfaz uma
superfície aproximada de 5.217.423 km2, o que corresponde
a cerca de 61% do território brasileiro. Entre as Unidades
da Federação que a compõem destacam-se
o Amazonas e o Pará, que, respectivamente, possuem
áreas de 1.577.820 km2 e 1.253.165 km2, somando mais
de 55% do total. Pertencem à Amazônia Legal mais
de 2/3 das fronteiras geográficas do País.
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