PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


N
o último dia de agosto foram enterrados no cemitério Dom Bosco, em Perus, três moradores de rua mortos nos ataques realizados entre os dias 19 e 22. Como que reiterando em definitivo a condição de excluídos que a sociedade lhes aplicou, as sepulturas não trazem seus nomes, mas apenas os números pelos quais eles foram identificados nos laudos do Instituto Médico Legal: 3309, 3328 e 3333. "Como é que a gente se defende da morte, moça? Onde eu estiver um dia ela me alcança", disse certa vez um morador de rua à psicóloga Aparecida Magali de Souza Alvarez. Pesquisadora que trabalha com a população de rua há mais de dez anos, Magali fez dela o tema de seu mestrado e doutorado. Sua atual pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP também aborda os moradores de rua, agora com a esperança de propor caminhos para que todos os cidadãos se enxerguem como parte da solução. "Falar de políticas públicas é falar da gente, e não deixá-las apenas nas mãos de quem nós elegemos", defende. "Não nos iludamos: nós é que teremos que fazer."

São várias as contribuições da academia para o estudo e a compreensão da vida dos moradores de rua. Na USP, há iniciativas em unidades como a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), o Instituto de Psicologia, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e outras. "Muitos de nossos estudantes saem da zona de conforto e têm ido à rua para projetar e ampliar suas fontes de conhecimento. A produção dessas teses, dissertações e outras pesquisas só se tornou possível graças à inestimável contribuição dos moradores de rua e dos catadores de recicláveis para com nossos estudantes e pesquisadores", diz a professora da FAU Maria Cecília Loschiavo dos Santos, que desde 1994 trabalha com o tema.

A professora chama a atenção para o fato de que "a chocante escalada global da miséria, como produto das mudanças políticas e econômicas", fez com o fenômeno do morador de rua deixasse de ser exclusividade do Terceiro Mundo, transformando-se em problema social de escala planetária. "Em muitos países há bolsões de riqueza absoluta convivendo com bolsões de miséria absoluta", diz. Um dos seus projetos em andamento aborda exatamente esse aspecto e vai resultar na participação no livro Moradores de rua em quatro cidades globais - São Paulo, Tóquio, Paris e Los Angeles, financiado pela National Science Foundation dos Estados Unidos.

Ao lado da globalização do problema, há também a síndrome do NIMBY (Not in my backyard, ou "não no meu quintal"). "A síndrome descreve a resistência organizada das comunidades ao uso dos espaços públicos e do solo, bem como à implantação de instituições e serviços assistenciais direcionados ao atendimento das populações de rua", explica Maria Cecília. "Ou seja, tudo bem que exista o morador de rua, desde que ele não venha para perto de mim, para o meu quintal, na minha calçada."

Estigmatização

Maria Cecília desenvolveu mestrado e doutorado sobre design do mobiliário e observou, a partir dos anos 90, o descarte significativo do material por ela estudado, principalmente no meio urbano, em baixios de viadutos e outros espaços públicos. "Mas o importante não era apenas o descarte dos produtos, dos materiais, e sim o descarte dos seres humanos que vivem da sobras", reflete. O tema motivou-a a iniciar estudos, em 1994, visando compreender os repertórios e estratégias de sobrevivência dessas pessoas para facilitar sua adaptação à vida nas ruas. Graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Maria Cecília pôde estender seus estudos também a Los Angeles e Tóquio.
Para a professora, o processo de estigmatização está na base da chacina contra os moradores de rua de São Paulo, pessoas que em geral só aparecem na mídia em caso de tragédias como enchentes ou crimes, ou em campanhas de arrecadação na época de Natal ou no inverno. "Como tendência geral, no mundo, observa-se a política pública reforçando alternativas assistencialistas, como a construção de grandes albergues. Talvez, para trabalhar dentro dos valores culturais da população moradora de rua, fosse mais apropriado projetar serviços de atenção em outra escala, mais compatível com a humanização dos espaços. Afinal, a grande escala dos albergues, de uma maneira ou outra, acaba repetindo a escala das instituições correcionais, das prisões, dos grandes asilos", afirma. Para a professora, a verdadeira discussão é o direito ao espaço público: "Quão público é esse espaço se não pode ser utilizado? Hoje são os moradores de rua. E amanhã?"

Transformação

"Nasceu uma criança na sarjeta: e agora?". Com esse título, a psicóloga Aparecida Magali Alvarez, pesquisadora da FSP, publicou seu primeiro texto já como resultado da pesquisa de mestrado que iniciou em 1993 sobre os moradores de rua. Ela acompanhou de perto o caso de Célia e Hélio, que mesmo com toda a precariedade fizeram questão de ter seu filho na rua. Na época, Magali trabalhava com o conceito de resiliência, que, na definição de Edith Grotberg, é "a capacidade humana de fazer frente às adversidades da vida, superá-las e sair delas fortalecidos ou, inclusive, transformados." Para ser um indivíduo resiliente, é necessário encontrar um "ponto fixo", uma alavanca que o fará reconstruir um sentido para a vida. Esse ponto fixo pode estar na religião, no encontro com alguém ou com alguma oportunidade de se reerguer - ou num nascimento, como foi o caso do bebê de Célia e Hélio. Por causa dele, ambos deixaram o álcool e as drogas e passaram a criá-lo dando todo o carinho e providenciando os cuidados necessários com alimentação e higiene.

Mais tarde, entretanto, o crack levou Célia - a droga, que tomou as ruas no início dos anos 90, tornou a realidade delas ainda mais violenta -, e Hélio viu-se obrigado a chamar outros moradores de rua para ajudá-lo a cuidar da criança enquanto ele trabalhava como catador de papel. "Eram bêbados e pessoas que tiveram que se reestruturar para cuidar daquela criança", diz Magali. Portador do vírus HIV, contraído provavelmente já no nascimento, o menino viveria até os cerca de oito anos de idade, e seu pai despediu-se do filho que tanto amou "num enterro com todo um ritual muito bonito". No final de sua dissertação, Magali escreveu que "a resiliência é uma dança bem-sucedida na música da vida - não uma dança com bailarinos solitários: ela pede parcerias, colaborações, empartias, encontros. Ela fala de amor."

O passo seguinte, no doutorado, foi investigar o que chamou de "encontro transformador", ou seja, a possibilidade de que a interação específica entre moradores de rua e pessoas que os auxiliam gere espaços de transformação para os dois lados. Duas professoras que se dedicavam a um grupo de moradores de rua numa praça (ou "maloca") foram identificadas por Magali como portadoras das características que poderiam conduzir ao encontro transformador. A pesquisadora acompanhou o grupo durante cinco anos, ao longo dos quais tornou-se não apenas observadora, mas também participante. Nesse período, conheceu casos impressionantes como o da mulher que morava na "casa-caverna" - um buraco num viaduto -, e o do morador de rua identificado como "Soviético", que passou mais de vinte anos preso - sobreviveu ao massacre do Carandiru, em 92 -, para quem a reconstrução da própria identidade começou a partir dos desenhos que produziu sobre sua vida.


Espírito e academia

Para Magali, a chave do encontro transformador é o amor ágape - na definição da Bíblia, o amor que caracteriza o próprio Deus: é mais do que afeição mútua e expressa a valorização altruísta no objeto amado, sem ter exigências de retorno. Sua "explicação" estaria no texto da primeira epístola aos Coríntios, capítulo 13, que na maior parte das traduções usadas na Igreja Católica traz o termo "caridade": "Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria" (tradução da Bíblia de Jerusalém, das Edições Paulinas). "O ágape trata de gratuidade, é o amor que dá sem pedir nada em troca, ignora a contradoação. É o amor em ação, a caridade em movimento", diz Magali.

Quando quis, em pleno ambiente acadêmico, escrever sobre essa dimensão, a pesquisadora enfrentou resistência. Porém, bateu pé: "Como decepar essa parte espiritual do ser humano? Ele tem que ser olhado em seu todo." Em sua proposta, a reflexão teórica e o trabalho incorporam a multidisciplinaridade, trazendo conceitos da psicologia, da sociologia, da geografia, da complexidade sistêmica e de outras disciplinas. Para Magali, "nossa sociedade vive uma fratura relacional: há um lado de integrados e outro de uma humanidade de excluídos. É uma 'cidade de muros' que promove a inserção marginal às sobras do banquete da sociedade."

Romper com esse quadro implica muito mais do que o discurso da solidariedade: "é preciso ir à rua e ser ágape", defende a psicóloga. "Meu grande desafio é como capacitar as pessoas para isso." Em seu pós-doutorado, iniciado em junho deste ano com o financiamento da Fapesp - que também a auxiliou no mestrado e doutorado -, Magali está formando grupos de universitários, técnicos e profissionais que têm contato com moradores de rua. A idéia é trabalhar com contos construídos a partir das histórias da rua ("a velha estratégia das parábolas", diz). A pesquisadora imagina que esses contos darão origem a materiais que poderão ser apropriados e trabalhados por quem se dispuser a ir à rua. "É preciso ir ao âmago do ser humano, ao cerne de sua psiqué", afirma Magali. "O ser humano é um ser para o encontro. O ágape se constitui quando é exercitado neste espaço do encontro."



"Ficar lúcido o tempo todo não dá"

"- Às vezes acho que conheço essa história.
- Mas ela não foi contada ainda.
- Essa sua personagem me é muito familiar.
- Há muita coisa familiar em toda história."

O diálogo acima - como os demais em itálico a seguir - é travado pelos protagonistas da peça, ainda sem título, que o morador de rua Antônio Leite, 52 anos, escreveu para falar de sua trajetória e das coisas da rua. O exercício, como toda a sua vivência de sem-teto, "valeu para autoconhecimento e para poder passar isso para os outros". Mas Antônio quer produzir um texto, talvez um romance, que contemple também suas interpretações sociológicas do mundo, e no qual caibam considerações sobre coisas que não estão relacionadas à sua opção - e é de opção que se trata - de estar na rua. "A rua é de 1990 pra cá. Tenho outros 40 anos de vida antes disso."

"Minha visão de sociedade não consegue enxergar possibilidade de realização de certas fantasias que alimentei. Para simplificar: a de uma sociedade sem classes", pondera. "Não vejo muita gente participando dessa visão de mundo. As pessoas ou se renderam ou dançaram. Ou seja, aceitaram as condições impostas pela sociedade, ou estão presas, ou morreram. E eu, como não estou preso, nem morri, nem aceitei as condições impostas, estou flutuando, no sentido de estar na rua sem uma identidade muito clara."

Antônio teve o que chama de "vida familiar enrolada": uma casa em que conviviam pais que não se entendiam, brigas e alcoolismo. Perambulou por pensões e saltou de emprego em emprego e de cidade em cidade. Fixou-se por um período de cinco anos, quando morou com a mulher a quem se refere como "a mãe da minha filha". "Tive um caso e a mãe da minha filha sabia. A mulher que morava comigo passou a ser a outra, porque a verdadeira outra era a mais importante." A filha, hoje com 21 anos, é estudante de Direito, mora com a mãe e praticamente não tem contato com o pai.

Estudos terminados em supletivos, Antônio começou as faculdades de Ciências Sociais e de Jornalismo, mas abandonou-as ainda no primeiro ano. Mantém há décadas o hábito de estudar e de ler livros e os jornais do dia em locais como a Biblioteca Pública Mário de Andrade. "Sou um autodidata e sempre fui meio atrevido. Um dia estava lendo Bertrand Russel no intervalo do serviço e o diretor da fábrica me viu e disse que aquilo era muito profundo. Eu falei que não estava entendendo muito. De atrevimento em atrevimento, acabei me familiarizando com essas coisas das quais, se você não for atrevido, nunca vai se aproximar."

Antônio conta que já morou com outro parente, mas quando saía sempre ouvia a "intimação" de voltar cedo: "Ou seja, se for pro bar e voltar de fogo, não vai entrar. A gente que se acostumou a não ter horário pra nada... Prefiro a falta de regras a muitas regras. Algumas tem que ter, mas se forem muitas também já não dá." A vontade de querer colocar no papel a experiência coincide com a sensação de que está na hora de mudar de vida. "Morar na rua é excitante, mas paga-se um preço bastante alto. Sinto que o que eu tinha que tirar da rua já tirei. E se não tirei muito, é incompetência minha. Está acabando a resistência pra agüentar tanta coisa. Está ficando absurdo."

"- Como era ele?
- Anormal.
- Um louco?
- Não, anormal é só uma variação do normal. (...) É muito tênue a linha que separa os normais dos anormais e até dos loucos, mas existem pessoas que por fugirem à regra são tratadas às vezes como normais, às vezes como loucos.
- E você foge à regra?
- Quando não estou de acordo com elas, fujo."

A perspectiva é tentar um vestibular, para Direito ou Ciências Sociais, o que na sua proveria uma residência (como estudante) e abriria portas para bons contatos. Antônio tem uma visão otimista do futuro, no qual pretende retomar relações mais estreitas com a filha. Uma nova companheira também não está descartada: "Tem que ser uma pessoa meio indisciplinada, mas não totalmente, porque senão os dois vão pro brejo." Enquanto a nova etapa não vem, ele carrega seus pertences (no dia em que conversou com a reportagem, resumiam-se a uma sacola com uma calça, uma camisa, um caderno e seus documentos) e reconhece: "Entrar na vida da rua foi fácil. Para sair é que é bem complicado."

A pinga, reconhece, é um problema do povo da rua que também o atinge. "Não bebo todo dia, mas não sei beber, caio mesmo. Tenho um apagão e depois não sei o que fiz." Ano passado, fez alguns trabalhos e comprou os livros "O Idiota", de Dostoievski, e "Corações Sujos", de Fernando Morais. "Nem cheguei a ler. Fui para uma barraquinha de pinga, bebi, quando acordei os livros não estavam mais comigo." E por que beber? "Ficar lúcido o tempo todo não dá."

Os recentes ataques a moradores de rua fizeram superlotar os albergues, atraindo pessoas que normalmente não os procuravam. O próprio Antônio dormiu algumas noites neles, embora não goste desses locais. "Rola muito álcool, além de outras drogas. Com cara drogado é fácil arranjar confusão", conta. O velho problema com os horários e regulamentos é outra fonte de incompatibilidade. Portador de uma carteirinha que dá passe livre nos ônibus, Antônio já passou muitas noites dentro dos coletivos que cruzam a cidade na madrugada. Quando fica na rua, não deita: senta e cochila com a cabeça sobre os joelhos.

"Fala-se do povo de rua sem conhecer 10% do que seja esse meio", afirma, referindo-se à onda que se seguiu aos crimes. "Até o (psicanalista Contardo) Calligaris escreveu na 'Folha' (em 26 de agosto) que agrediram o Pantera (travesti assassinado nos primeiros ataques) para agredir o homossexual dentro deles mesmos, mas você pode ter uma bronca com o cara que independe de sua condição sexual. O povo de rua tem divergências outras que não se limitam à opção sexual."

A linguagem e os hábitos diferenciados o afastam do convívio com muitos moradores de rua. "Não faço aquelas rodinhas de pinga em volta da fogueira. Não gosto de turma, e morador de rua tem mania de se juntar." Muitos só "achacam" (pedem dinheiro) quando estão de fogo, e não são poucas as vezes em que histórias comoventes acompanham o pedido. "O pessoal cria um mundo paralelo por causa da pinga. Você percebe que é mentira, mas a história sempre tem um fundo de verdade."

E afinal por que, na cidade mais rica de um País em que os mais ricos consomem em padrões de fazer corar os habitantes das nações desenvolvidas, são tantos os seres humanos a quem a rua tornou-se a única moradia (seriam quase 11 mil pessoas, de acordo com os últimos levantamentos)? O morador de rua que está nela por opção e acha que Marx e os marxistas foram ingênuos ao achar que o proletariado derrubaria a burguesia ("o proletariado foi cooptado e preferiu se aliar à burguesia", explica) tem uma opinião: "É fácil arranjar mil razões para estar na rua. A sociedade cobra muitas coisas que não tem para dar."

"- Como não entender um lugar-comum?
- O óbvio quase sempre nos escapa."




"Só entende essa vida quem está no meio dela"

Quem tem experiência em trabalhos com os moradores de rua conhece o seu nomadismo e sabe que tão freqüente quanto o surgimento de novos sem-teto é o desaparecimento de outros. Muitos são os motivos: morte, brigas, doença, expulsão pela polícia, comerciantes ou moradores, simples desejo de mudar de cidade ou Estado, tentativas de reaproximação com a família etc. O definhar público e progressivo, que em muitos casos termina em agonia e morte, também pode ser acompanhado por quem presta atenção ao povo de rua. A psicóloga Aparecida Magali Alvarez conta que conheceu cerca de 30 pessoas que morreram durante os anos em que tem pesquisado o tema.

A rede de assistência formada por ONGs, grupos religiosos e outras entidades, com ou sem apoio do poder público, faz com que não faltem comida e recursos básicos (banho, roupas, abrigo etc.) àqueles que os procuram. Um desses trabalhos é mantido pela Paróquia Centro da Igreja Evangélica Luterana, localizada na avenida Rio Branco, a dois quarteirões do famoso cruzamento da Ipiranga com São João. Ali, toda sexta-feira à tarde, cerca de 250 moradores de rua têm um culto celebrado apenas para eles dentro do templo - fato raro, pois em geral eles não são admitidos no interior das igrejas - e recebem um ticket-alimentação para comer no restaurante popular Mesão, no Largo do Paissandu. Em 1999, por sinal, o Mesão foi cenário de uma reportagem na qual o apresentador Gugu Liberato, do SBT, se fez passar por morador de rua para mostrar um dia na vida dessa população.

Após o culto, de 20 a 30 pessoas ficam na igreja e participam de atividades como grupos de artesanato e roda de conversas. Neles colhem-se histórias como a de Isac Mateus dos Santos, que às vésperas do Dia das Mães de 2002 alcançou uma das maiores alegrias de sua vida: dar algum dinheiro para ajudar sua mãe a comprar remédios. Até o início daquele ano, Santos tinha sido um morador de rua: iniciado no circuito do álcool com apenas 14 anos de idade, nos 17 anos seguintes evoluiu para as mais pesadas formas de dependência química. A última parada foi a perambulação pelas calçadas e albergues. "Essa vida joga na sarjeta mesmo. O caminho da droga é o cemitério, a cadeia ou o hospício", diz.

Recaída

Com a lucidez que o assaltava nos momentos em que estava "limpo", Santos decidiu procurar ajuda para se tratar. Encontrou auxílio e conseguiu um emprego e um quarto no apartamento de um membro da Igreja Luterana. Alguns meses depois, uma recaída o levou outra vez ao que chama de "inferno", quando abandonou o trabalho e a moradia. Hoje com 34 anos, confessa-se "envergonhado por ter decepcionado as pessoas que me ajudaram e confiaram em mim", e novamente trilha o caminho da recuperação. Casou-se, conseguiu um novo emprego e pleiteia uma bolsa para ajudar a custear a faculdade de Direito. "O que tem me ajudado a não recair são as minhas ocupações", diz.

A profissão levou o ex-tratador de animais Amado Cordeiro, 62 anos, nascido no interior de São Paulo, a viver em lugares tão distintos e distantes entre si como Passo Fundo (RS) e Ji-Paraná (RO). Para a rua e os albergues da capital paulista foi levado, em meados dos anos 90, por acidentes de trabalho e pelo desemprego - mas nunca deixou de se ocupar, fazendo bicos e freqüentando entidades sociais e igrejas.

Uma advogada a quem prestava serviços de jardinagem interessou-se por sua história e descobriu que Cordeiro tinha encaminhado processos por indenizações trabalhistas. A advogada assumiu as causas e no ano passado o então morador de rua recebeu as indenizações e uma aposentadoria. Cordeiro comprou uma chácara num município vizinho a São Paulo e deixou para trás um passado do qual pode falar de cátedra: "Só conhece e entende a vida na rua quem está no meio dela."

Vida cigana - Entre os muitos casos dos que "somem" sem deixar rastro ou notícias está o do ex-jogador de futebol José Ortiz Cetale, que chegou a atuar ao lado de ídolos do Botafogo carioca do final dos anos 50, como Didi e Zagalo. Numa pasta surrada, Cetale guardava as fotos e documentos que sobreviveram à vida cigana e boêmia que o levou a jogar em clubes de várias regiões do Brasil, além de Colômbia e Estados Unidos. Os dois passaportes recheados de carimbos e vistos eram exibidos com orgulho. De volta a São Paulo desde 2002, com 62 anos, passou a viver em albergues com o filho adolescente Bruno - o único dos cinco que teve em quatro casamentos a permanecer com o pai. Quando deixou de aparecer, no ano passado, Cetale havia conseguido um registro no Conselho Regional de Educação Física e procurava ocupação como treinador de garotos em clubes da capital.

 

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]