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N
o princípio era o verbo. Mas não escrito. Oral, com as palavras fluindo, viajando de boca em boca, histórias contadas de geração em geração, a comunicação se fazendo pela palavra, sim, mas a palavra solta, navegante. E que, em algum momento, podia se perder nos desvãos de algum lapso de memória, na criatividade de um novo contador, no simples esquecimento de um detalhe – o risco tão popular do conto contado, em um ponto aumentado.

O homem é ser comunicacional por natureza, precisa do contato social, tem a necessidade de contar: uma novidade, um caso, uma fofoca. A comunicação oral é síntese e gênese da nossa comunicação, é o primeiro passo do nosso contato com o mundo sensível, representa a nossa primeira e mais profícua troca social. Mas o tempo, o tão terrível e temido Cronos, este se encarrega de, pouco a pouco, criar pequenas fissuras na memória do que foi dito e do que precisa ser lembrado. Para lembrar, não basta a palavra falada – para lembrar, é preciso escrever, colar post-its na memória física, como lembretes deixados a nós mesmos para o futuro, distante ou não.

Foi justamente para lembrar, para marcar a necessidade de uma fixação do que foi inferido, que o homem criou a escrita. Há 5 mil anos, os distantes sumérios – na região onde hoje se mantém, mesmo em frangalhos, o Iraque – cravaram seu nome na história esculpindo em plaquetas de argila os primeiros sinais do que podemos chamar de “escrita”. Os caracteres cuneiformes, que receberam esse nome devido à sua forma de cunha, nasceram às margens dos rios Tigre e Eufrates primeiro para registrar as trocas comerciais e, mais tarde, para firmar os intercâmbios sociais.

Desde então, o homem não cessou mais de criar formas de registrar seus negócios, suas lendas, sua própria existência – sua própria história. Das ancestrais plaquetas de argila, passando pelos papiros egípcios repletos de hieroglifos, caminhando pelo pergaminho, pelos milhares de rolos de textos guardados – e depois perdidos – na mítica Biblioteca de Alexandria, chegando ao códice, aos livros de horas medievais, ao texto impresso com tipos móveis de Gutenberg, às várias formas de impressão que advieram a partir daí, até chegar aos escritos internáuticos, ao computador, à palavra cibernética, a humanidade empreendeu uma longa viagem.

E é justamente essa jornada em torno da palavra registrada nos mais diversos suportes que o Banco Santos, em São Paulo, está ajudando a empreender com a exposição “A Escrita da Memória”, que traz um subtítulo autoexplicativo e sugestivo: “Da pedra ao palm, como o Homem eternizou o pensamento”.

“No momento em que o avanço tecnológico parece indicar um caminho virtual para preservar a informação e o conhecimento, esta exposição lembra-nos a escrita ‘de pedra e cal’ e tudo o que foi posto em obra pelo homem para tornar perene a informação, a partir do momento em que se evoluiu da tradição oral para a cultura escrita”, escreve o bibliófilo Pedro Corrêa do Lago, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, em um dos textos introdutórios do grande livro – em todos os sentidos – que faz o papel de catálogo da exposição.

Para mapear essa evolução, esse caminho nem sempre retilíneo e constante do avanço do homem em direção a formas cada vez mais sofisticadas do registro escrito, a exposição é dividida em três espaços. O primeiro acolhe peças oriundas de cinco regiões do planeta onde, a partir de 3300 a. C. , teria surgido a escrita: a Suméria, na porção sul da Mesopotâmia, o Egito, o Vale do Indo (nas franjas do subcontinente indiano), a China e a região da Mesoamérica – ou, hoje, uma fatia da América Central. O segundo espaço é reservado a textos e documentos autógrafos de grandes cientistas e artistas – brasileiros e estrangeiros –, que a partir de seus escritos deram sua contribuição para metamorfoses na sociedade.

Já a terceira ala da exposição compreende uma série de documentos de épocas as mais diversas, desde um anúncio americano de venda de escravos do século 19, um original do jornalista Assis Chateaubriand ou o cardápio de uma recepção oferecida pelo governo brasileiro ao rei da Bélgica, no século passado.

Argila e quipos

Em seu primeiro momento, a exposição “A Escrita da Memória” aparenta-se a um túnel do tempo que acelerou o processo de regressão às vidas passadas.

Nas bem cuidadas vitrines estão expostas plaquetas de argila do tempo dos sumérios – que sempre arrancam um “Ah!” surpreso dos visitantes, que continuam caminhando vagarosamente em direção à próxima vitrine tentando compreender aquele emaranhado de sinais e traços –, uma série de selos cilíndricos de metal com inscrições e figuras babilônicas e acadianas – civilizações que beberam na fonte da grafia suméria –, vasos gregos (a Grécia, é sempre bom lembrar, é a criadora do primeiro alfabeto), rolos de papel de arroz chineses, peças romanas e bizantinas e livros medievais com iluminuras e capitulares também de tirar o fôlego, entre uma variedade enciclopédica de suportes que serviram de berço original para a escrita.

Dessa visita aos primeiros momentos da escrita humana, dois acabam chamando mais a atenção, em uma curiosa competição pela atenção do visitante: a ala dedicada ao Antigo Egito, com vasos, papiros e um sarcófago salpicados de hieroglifos, e um imponderável colar inca repleto de quipos. Mas, afinal, o que quer dizer quipos? A palavra significa “nó” na língua dos ancestrais dos peruanos e era justamente assim que as informações mais importantes eram registradas: a partir de nós com grossuras e cores diferentes, formando mensagens que eram interpretadas pelos quipucamayocs, os especialistas da sociedade incaica nessa espécie de escrita.


Já a segunda ala da exposição, no andar superior da sede do próprio banco, é uma experiência sensorial e histórica diferente. Ali encontram-se vários documentos originais que têm como principal mérito apresentarem a letra manuscrita e a assinatura de quem os escreveu. Entre esses documentos estão uma carta de Getúlio Vargas, na qual ele atesta seu “desprezo” pelo poder – “Não cortejei nunca a popularidade. Repugnam-me as atitudes artificiais.

Sinto-me um campônio” –, um artigo do líder fascista Benito Mussolini contra os socialistas, partituras originais de Strauss e Lizt, uma carta em italiano de Carlos Gomes a seus empresários, na qual cobra “amigavelmente” uma quantia em dinheiro para sua viagem à Europa, um axioma de Einstein, cartas de Drummond, Villa-Lobos, Manuel Bandeira. Ali, naqueles papéis esmaecidos, estão, claro, a letra dos missivistas. Mas está, antes de mais nada, sua essência, sua alma. Esta ala da exposição, diferentemente da sua primeira parte, apresenta um outro tipo de viagem. Se nesta a viagem tem um tom mais histórico, naquela o diapasão é o do intimismo – mesmo da intimidade – com os autores apresentados. Uma viagem é para fora, outra para dentro. Ambas, fantásticas.

A última parte da exposição, que é percorrida com as pernas doídas e a alma e a curiosidade lavadas, apresenta uma grande vitrine em forma de S, serpenteando pelo enorme salão que a acolhe. Ali estão documentos, folhetos, jornais e também manuscritos que dão a última forma à mostra, apresentando as diversas nuances que a palavra escrita pode alcançar. Há objetos cujo valor histórico gritam tanto quanto o “Eu Acuso!” do escritor Émile Zola (“J’accuse!”, no original francês), estampado na primeira página do jornal L’Aurore, de 1890, colocando o dedo na ferida do anti-semitismo do governo francês no rumoroso Caso Dreyfus.

Ou que chocam, como o folheto americano divulgando o leilão de algumas dezenas de escravos, apresentando-os de uma forma que hoje poderíamos chamar muito bem de “não civilizada”, já que o que importa ali são as características físicas e as aptidões do homem, mulher ou criança (sim, havia um bebê de nove meses que seria também leiloado) a ser vendido. Ou, ainda, que representam uma curiosidade histórica, como a carta de Dom João VI ao Marquês de Marialva pedindo-lhe que encontrasse uma princesa austríaca interessada em se casar com seu filho Pedro. Era intenção do monarca português estreitar os laços com os Habsburgos, a família real austríaca, e nada melhor do que casar os rebentos das duas casas reais.

Esses exemplos, é claro, são apenas amostras, pinçadas a um certo acaso, de tudo o que a exposição tem a oferecer. Se houvesse espaço suficiente para se listar tudo o que há de interessante na mostra, correria-se o grande risco de um desfiar sem paradeiro de uma série de objetos de todos os naipes que tem a escrita como objeto principal. Na verdade, toda a exposição representa exatamente o que seu título propõe: a invenção da memória. Tudo o que está ali exposto representa as várias maneiras que o homem, ao longo dos séculos, encontrou para dizer “estive aqui”. E se perpetuar.

A exposição “A Escrita da Memória – Da pedra ao palm, como o homem eternizou o pensamento”, está em cartaz no Instituto Cultural Banco Santos (rua Hungria, 1.100, São Paulo), de terça a sexta-feira, das 10h às 17h30, sábados, domingos e feriados, das 10h às 16h30. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 3818-9591 ou na página eletrônica www.santoscultural.com.br/a escritadamemoria.

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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