
Chumbo:
Saúde confirma contaminação. Com esse destaque,
o Jornal da Cidade, de Bauru, noticiou, em 7 de março de
2002, os primeiros quatro casos de crianças contaminadas
pelo metal na periferia da cidade, onde funcionava uma fábrica
de baterias automotivas. Passados dois anos e oito meses, hoje são
314 as crianças, de zero a 12 anos, em tratamento
que, aliás, vai continuar, conforme definiram neste mês,
no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais
da USP, o popular Centrinho de Bauru, as autoridades de saúde
pública que prestam o serviço à população.
Dessa forma, moradores do Jardim Tangarás região
atingida pela contaminação devem receber, a
partir do ano que vem, cartilhas educativas para evitar abandono
de avaliação ambulatorial e repetição
de comportamentos de risco, como o contato direto com alimentos
in natura e água em riachos da área onde funcionava
o setor metalúrgico da fábrica Ájax, interditado
desde janeiro daquele mesmo ano.
Desde o início, entendemos a gravidade do problema
e formamos uma equipe multidisciplinar e multiinstitucional, numa
verdadeira força-tarefa, a fim de fazer triagem em todas
as crianças contaminadas e realizar os devidos encaminhamentos,
afirma a neuropediatra Niura Padula, da Faculdade de Medicina ta
Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, que supervisiona
toda a equipe do Projeto Chumbo, como ficou conhecido o trabalho.
O amparo às vítimas é coordenado pela Secretaria
Municipal de Saúde e DIR-10 (Divisão Regional de Saúde),
em parceria com a Unesp (campus de Botucatu e Bauru), além
do Centrinho e da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP.
A empresa envolvida oferece apoio logístico às famílias
e às equipes de atendimento. Ao todo, só na USP, por
fim de semana, participam cerca de 25 voluntários, entre
profissionais e alunos de graduação e pós-graduação
do Centrinho e da FOB.
O Centrinho e a Faculdade de Odontologia se tornaram parceiros
para oferecer suporte físico e pessoal para a avaliação
das crianças com atendimentos nas áreas de fonoaudiologia,
odontologia e otorrinolaringologia, o que foi efetivamente alcançado
no período, comenta o professor Esiquiel de Miranda,
coordenador das equipes multidisciplinares voluntárias, que
quinzenalmente, sempre aos sábados, assistem às crianças
no Centrinho. As crianças receberam toda a assistência
odontológica necessária, inclusive na parte ortodôntica,
completa a professora do Departamento de Odontopediatria, Ortodontia
e Saúde Coletiva da FOB Nilce Emy Tomita, que coordenou esses
atendimentos desde o início.
Para a diretora do Departamento de Saúde Coletiva (DSC) de
Bauru, Maria Helena Abreu, o longo período de acompanhamento
gera um desgaste natural na população envolvida. Por
isso, um dos próximos passos será a conscientização
das famílias para a importância do acompanhamento ambulatorial
dos filhos contaminados, intensificando a recomendação
de não utilizar alimentos do solo e de não tomar contato
com a água da região, enfatiza Maria Helena.
Ela observa que as crianças contaminadas devem seb acompanhadas
por um período mínimo de 5 anos.
O excesso de chumbo no sangue pode provocar anemia crônica,
alterações no crescimento, na aquisição
da linguagem escrita, problemas renais, dentários e neurológicos,
porém ainda não foram detectadas alterações
que estejam diretamente relacionadas à contaminação
por chumbo nessa população, explica o neuropediatra
Plínio Marcos Ferraz, coordenador de um ambulatório
específico de atendimento às crianças contaminadas,
criado pela Prefeitura municipal. Segundo ele, ainda há crianças
com 25 microgramas de chumbo por decilitro de sangue (as crianças
que apresentaram, na época, nível superior a 25 foram
internadas para tratamento de urgência e as que tinham mais
de 10 também receberam atendimento).
Todas elas estão sendo acompanhadas periodicamente no Ambulatório
de Neuropediatria e investigadas pelo departamento de saúde
coletiva da cidade. O nível aceito pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) é de até 10. O neuropediatra
ressalta que, na grande maioria dos casos, apenas com medidas ambientais
e de higiene o nível de chumbo no organismo foi reduzido
significativamente.
Em adultos, para considerarmos contaminação,
o nível de chumbo no organismo deve ser acima de 40 microgramas
por decilitro de sangue. Ou seja, toleram muito mais que as crianças,
esclarece a neuropediatra Niura Padula.
As parcerias entre profissionais das áreas de neuropediatria,
psicologia, odontologia, fonoaudiologia e outras especialidades
da saúde que forem necessárias devem ser ampliadas
no próximo ano. Em 2005, a equipe multidisciplinar que compõe
o Projeto Chumbo irá tabular dados de cada avaliação
(odntológica, neurológica, psicológica etc.)
e acompanhar um grupo-controle. Esse grupo fará o levantamento
clínico de um universo de crianças que vivam em condições
sanitárias e socioeconômicas semelhantes às
do Jardim Tangarás, o que vai tornar viável uma comparação
do quadro de saúde entre ambos os grupos.
O grupo-controle será fundamental para respondermos
se os achados nas crianças contaminadas são devidos
ao nível de chumbo no organismo ou se são sintomas
próprios de uma população com o perfil desta,
observa a coordenadora dos atendimentos fonoaudiológicos
Kátia de Freitas Alvarenga, docente do Departamento de Fonoaudiologia
da FOB e pesquisadora do Centrinho. Ela pondera que, na grande maioria
dos casos, foram observadas alterações de linguagem
escrita e habilidades auditivas, como memória auditiva, atenção,
análise e síntese e consciência fonológica.
A criança precisa compreender que, se trocarmos o f
da palavra faca pelo v, teremos outra palavra.
Isso é consciência fonológica, explica
a pesquisadora Patrícia Abreu Pinheiro Crenitte, também
docente do Departamento de Fonoaudiologia da FOB e integrante da
coordenação de atendimentos nessa área às
crianças contaminadas. Essas alterações,
no entanto, ainda não podem ser atribuídas ao nível
de chumbo encontrado no organismo das crianças. Precisamos
lembrar que a população do Jardim Tangarás
é de risco no que se refere à carência educacional
e às condições socioeconômicas,
pontua.
Mudança
de hábito
A maioria das famílias precisou mudar de hábitos
para se adaptar à realidade do bairro pós-contaminação.
A dona de casa Antonia Marco da Costa Sales, de 35 anos, caseira
de uma chácara no Jardim Tanwarás, relata que teve
toda a rotina da família alterada. A gente comia tudo
o que plantava e criava: mandioca, verduras, legumes, ovos, frango
e leite de vaca.
Depois do acidente ambiental, Antonia mãe de dois
filhos, Renan e Jhonatan, ambos com níveis de contaminação
considerados de risco passou por dificuldades por ter, de
repente, que comprar todos esses produtos. Foi um baque. De
um dia para o outro a gente não podia mais usar a terra e
passou a buscar tudo na cidade, recorda-se. Rosilene Francisca
Rodrigues, de 28 anos, mãe de Luciano, hoje com 12 anos,
conta que chegou a mudar para outro bairro no ano da contaminação,
mas reconhece que o estrago já estava feito.
Entre outros sintomas, o meu filho apresentou dificuldades
de aprendizado, conta. Para a professora Flávia Regina
Coelho, 24 anos, que acompanha o filho João Vitor, de 5 anos,
o que aconteceu foi uma fatalidade. Mas encontrar culpados não
vai trazer a tranqüilidade de volta para aqueles que tiveram
suas vidas atingidas. Felizmente, o meu filho está
bem, só faço o acompanhamento por prevenção.
No caso do João Vitor, a contaminação deve
ter ocorrido porque eu comprava verduras de agricultores do bairro.
Agora não consumo mais nada de lá, conta.
Antonia, a mãe de Renan e Jhonatan, que na época tinham
6 e 9 anos, respectivamente, é cearense e veio parar em São
Paulo porque quis ficar perto do marido, o pernambucano Reginaldo,
que deixou sua terra para tentar a vida na maior metrópole
da América do Sul. Depois de algumas idas e vindas, em 2000
o casal se mudou para Bauru. Quando a gente achou que tudo
ia dar certo, aconteceu esse acidente e os meus dois filhos foram
contaminados, lembra-se Antonia, pontuando sua história
de vida. A tranqüilidade, mesmo que parcial,0só chegou
à casa da família Costa Sales depois que os meninos
passaram a receber atendimento especializado. Hoje sei que
o nível de chumbo no organismo dos meus filhos é bem
menor e eu confio nos profissionais, diz. O Renan, por
exemplo, tinha 22.6 (microgramas de chumbo por decilitro de sangue)
e, agora, tem 8, nível considerado normal.
Na
comunidade
Para
2005, outra meta da equipe do Projeto Chumbo é inverter o
caminho seguido até agora. Ou seja, em vez de pais e pacientes
se deslocarem até os ambulatórios especializados,
a equipe quer ir até o bairro para mapear as dificuldades
e ampliar o acesso às informações sobre os
riscos do chumbo, as condições do ambiente e de saúde
em geral. Vejo como importantíssimo o contato direto
com pais e responsáveis das crianças do programa,
pois só assim podemos, de fato, conhecer e compreender a
dinâmica familiar vivenciada por eles, confirma a assistente
social da Secretaria Municipal de Saúde de Bauru, Fabiana
Ricci Lopes, que já visita as famílias periodicamente,
mas reconhece que esse trabalho precisa ser intensificado.
Algumas das famílias cujos filhos foram contaminados com
níveis altos de chumbo entraram com ação na
justiça, mas até o fechamento desta edição
nenhum dos casos havia sido concluído. Desde que foi interditado,
o setor vem sendo acompanhado pela Cetesb (Companhia de Tecnologia
de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo). Em outubro,
nos dias 25 e 26, por determinação judicial, o professor
Paulo Saldiva, do Departamento de Patologia e chefe do Laboratório
de Poluição da Faculdade de Medicina da USP, em São
Paulo, esteve no Jardim Tangarás vistoriando as instalações
do setor metalúrgico para planejar a perícia. O laudo
técnico preparado pelo docente irá integrar a ação
civil pública proposta por uma organização
não-governamental (ONG) da cidade, que atua na área
ambiental. Na data da vistoria, o advogado da Ajax, Roberto Abramides,
afirmou à imprensa local que a empresa só se manifestará
sobre o caso após a conclusão da perícia judicial.
Segundo ele, paralisada como está desde janeiro de 2002,
a fábrica não oferece perigo à comunidade.
Premiações
Entre
2003 e 2004, o grupo de estudo e pesquisa de intoxicação
por chumbo em crianças de Bauru, representado pela
coordenadora-geral do Projeto Chumbo, neuropediatra Niura
Padula, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), em Botucatu, ganhou dois prêmios pelo
trabalho. O primeiro, recebido neste ano, foi o Prêmio
Brasil Solidário Aché, concedido a profissionais
de saúde que se destacaram em trabalhos de caráter
humanístico. Entre mais de 500 concorrentes de
todo o País, o projeto desenvolvido em Bauru obteve
a terceira colocação, declarou Niura Padula.
A outra premiação, recebida em 2003, veio do
Ministério da Saúde. O grupo, neste caso representado
pela professora Maria Helena Abreu, foi vencedor da 3a Mostra
Nacional de Experiências Bem-Sucedidas em Epidemiologia,
Prevenção e Controle de Doenças (Expoepi),
sediada em Salvador. Com uma amostra significativa de crianças
contaminadas, o grupo teve a oportunidade de realizar pesquisas
que podem respaldar a criação de um modelo nacional
de tratamento em casos de contaminação por chumbo.
Segundo a professora Niura, a atuação do grupo
vem sendo bastante citada pelo Minisdério da Saúde.
É claro que isso é positivo, mas o nosso
maior foco continua sendo a população bauruense
atingida. O prêmio que recebemos este ano, por exemplo,
foi em dinheiro (R$ 5 mil reais) e será aplicado integralmente
em ações para essa população,
como a confecção de cartilhas educativas,
afirma.
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