Um encontro sensível. Raro. Os versos de Cecília
Meireles e os desenhos de Renina Katz encontram-se, enfim, no mesmo
tempo, no mesmo espaço, nas mesmas páginas. Em uma
edição primorosa da Edusp e Imprensa Oficial, o épico
Romanceiro da Inconfidência ressurge com mais força
entre as ilustrações da artista. Além do livro
que homenageia o cinqüentenário do poema (foi publicado
pela primeira vez em 1953), os desenhos dos versos compõem
a exposição na Estação Pinacoteca, no
largo General Osório, 66.
Não
posso mover meus passos
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação (...)
Batem
patas de cavalos.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
já louca e fora do trono
na sua Proclamação.
Logo que começou a ler esses versos que abrem o Romanceiro
da Inconfidência, Renina Katz foi imaginando as cenas. Viu
a rainha, o povo, a tropa. Quando terminei a leitura, comecei
a desenhar sem parar. Fiquei encantada por esse épico da
literatura brasileira, pelos versos fluindo com tanta força
e emoção e, ao mesmo tempo, com tanto realismo,
conta a artista. Fiz 200 desenhos, imaginando reuni-los em
um pequeno álbum. Sonhei em ilustrar a obra com uma série
de gravuras em metal.
Os versos foram se transformando em imagens. E os traços
nascendo com a mesma força e velocidade das palavras em uma
composição que surpreende pela sintonia. Como se o
poema e as gravuras fossem criados ao mesmo tempo. Renina soube
interpretar e captar o tom de cada verso.
Passei
por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado
nascer nas solidões esmeraldinas.
Largos
rios de corpo sossegado
Dormiam sobre a tarde, imensamente,
e eram sonhos sem fim, de cada lado.
Entre
nuvens, colinas e torrentes,
Uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente...
Apesar
da harmonia, Renina sabia que estava ilustrando um sonho. E o sonho
teve de esperar 48 anos. Nesse tempo, a artista lutou por uma publicação,
mas não conseguiu atravessar a burocracia dos direitos autorais.
Acabou engavetando o projeto, que só se tornou viável
graças ao empenho de José Mindlin. Agora que
estamos comemorando o cinqüentenário do Romanceiro da
Inconfidência, conseguimos a publicação,
orgulha-se o bibliófilo. Estou satisfeito por ver a
obra-prima de Cecília Meireles unida à arte de Renina
Katz. Da importância deste épico, nem é preciso
falar. A obra teve sucesso imediato, que se conservou por décadas,
e certamente continuará a ser uma das glórias de nossa
literatura. Dos desenhos de Renina deve ser destacada sua integração
ao poema.
(...)
Dorme, meu menino, dorme,
que Deus te ensine a lição
dos que sofrem neste mundo
violência e perseguição.
Morreu Felipe dos Santos,
Outros, porém, nascerão.
Não
há Conde, não há forca,
não há coroa real
mais seguros que estas casas,
que estas pedras do arraial
deste Arraial do Ouro Podre
que foi de Mestre Pascoal.
Mindlin lembra que são poucos os desenhos que chegaram a
ser gravados, muitos são apenas esboços, mas em todos
se sente a maestria da artista. Sua imaginação
e sensibilidade estão num conjunto de imagens em que talento
e espontaneidade se uniram na produção de uma obra
de arte por todos os títulos à altura da beleza do
texto.
Quando viu o livro pronto, Renina custou a acreditar. Fiquei
emocionada porque já tinha desistido da publicação.
Tinha esquecido os desenhos e, em 1975, eu estava arrumando uns
papéis velhos e os encontrei. O impressor das gravuras
da artista, Elcio Motta, deu todo o tratamento aos desenhos e a
série ressurgiu. Foi quando tive a oportunidade de
vê-los, ficando naturalmente entusiasmado, diz Mindlin.
Sugeri à Renina que deixasse os desenhos sob a minha
guarda. Durante esses anos organizei exposições na
maioria das
capitais
brasileiras, além de uma primeira na Casa de Contos, em Ouro
Preto, e duas outras em Portugal, todas despertando excepcional interesse.
Como é natural, surgiu novamente a idéia da edição,
que agora é concretizada.
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.
Recebeu trinta dinheiros...
e tu muitas coisas pedes:
pensão para toda a vida,
perdão para quanto deves,
comenda para o pescoço,
honras, glórias, privilégios.
E andas tão bem na cobrança
que quase tudo recebes!
Com as gravuras de Renina Katz, o poema de Cecília
tem uma nova dimensão. Em todos os sentidos. Conduz o leitor
através das imagens. A narrativa é desenhada em todas
as nuances, em todos os detalhes. Cecília descreve e Renina
pinta. É possível observar as cenas do Romanceiro
da Inconfidência. Ver os casarios de Ouro Preto. Os alpendres,
as janelas cerradas, o movimento misterioso nas ruas de pedra, os
vultos dos inconfidentes e a altivez de Chica da Silva com leque,
luvas, peruca e vestida de tisso, de raso e de holanda.
(...) Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!
Cara cor da noite,
Olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.
(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)
Vestida de tisso,
de raso e de holanda,
é a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!
Os desenhos evoluem com o poema em uma seqüência
dramática. O tom teatral dos versos é interpretado
através do excesso de sombras, das tintas carregadas de preto.
É possível então sentir as injustiças
denunciadas por Cecília através das imagens. Vê-se
Tiradentes sendo julgado, levado para a cela escura e a sua imagem
solitária pendurada na forca com a cidade ao fundo. Em primeiro
plano estão os casarios enegrecidos e, ao fundo, Renina estampou
as colinas esmaecidas, a torre da igreja, o céu triste e
cinza. Imagens que abrem os versos Da reflexão dos
justos:
Foi trabalhar para todos...
e vede o que lhe acontece!
Daqueles a quem servia,
já nenhum mais o conhece.
Quando a desgraça é profunda,
que amigo se compadece?
Tanta serra cavalgada!
Tanto palude vencido!
Tanta ronda perigosa,
em que sertão desconhecido!
E agora é um simples Alferes
louco, sozinho e perdido (...)
Que tempos medonhos chegam,
depois de tão dura prova?
Quem vai saber, no futuro,
a que se aprova ou reprova?
De que alma é que vai ser feita
essa humanidade nova?
Sob o projeto gráfico de Diana Mindlin, a
arte de Cecília Meireles e Renina Katz é apresentada
em um livro de tamanho exagerado. Mas que impõe ao leitor
apreciar os detalhes dos desenhos e ler o livro sobre uma mesa.
Devagar. Fazendo uma pausa entre o folhear das páginas. Com
a calma e reflexão que esse épico sugere. Como no
momento em que se vê a doce Marília bordando o enxoval.
Renina desenhou a moça com delicadeza, porém com rosto
compenetrado, prevendo o que aconteceria com Dirceu:
Aqui esteve o noivo,
de agulha e dedal,
bordando o vestido
do seu enxoval.
Em Maio, era em maio,
num Maio fatal;
feneciam rosas
pelo seu quintal.
Por estrada e monte,
neblina total.
No perfil da lua,
um nimbo mortal.
Romanceiro da Inconfidência, de Cecília
Meireles com desenhos de Renina Katz, Edusp e Imprensa Oficial,
256 páginas, R$ 160,00
Motivo da rosa
Em Romanceiro da Inconfidência, Cecília
Meireles alia a poesia à história. Ela, que
sempre cantou em versos a natureza das flores e dos sonhos,
buscando a essência do ser, revela-se uma historiadora.
Narra os fatos com precisão, realismo. Importante lembrar
que Cecília era professora e pedagoga, daí os
versos terem uma seqüência didática. Importante
lembrar também que a poeta era uma jornalista, daí
a sua visão crítica sobre os fatos da Inconfidência.
Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro no dia 7
de novembro de 1901 e faleceu no dia 9 de novembro de 1964.
O lançamento da Edusp e Imprensa Oficial reverencia,
então, não só os 50 anos do poema, mas
coincide com o mês de seu nascimento e morte.
Ao mesmo tempo em que descobre a historiadora, o leitor tem
a oportunidade de ver Renina Katz em um trabalho diferenciado.
Como Cecília, Renina nasceu no Rio de Janeiro e também
atuou até há pouco tempo como professora. Lecionou,
de 1956 a 1988, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
USP, inovando o curso de Programação Visual
e incentivando jovens artistas. Também como Cecília,
Renina é rigorosa nos detalhes, sabe se organizar no
espaço, repensa o homem e o mundo. Revela-se na busca
e inquietação. Ambas pesquisam e só revelam
liberdade de criação porque têm domínio
técnico e conhecimento. Eu costumava dizer aos
meus alunos que a disciplina não é necessariamente
uma prisão, afirma Renina. Ao contrário,
ela libera. Você precisa conhecer para ser livre. Quem
não conhece, acerta por acaso. Para ser livre, o conhecimento
é fundamental. Para se ter a liberdade de criação,
é necessário o domínio técnico
que está apoiado numa disciplina que vai orientar a
conquista dos meios.
A artista explica que na gravura, a técnica é
fundamental, tal como é na pintura ou na gramática
para o escritor e o poeta. Na gravura, tem-se um dado
a mais, que é um complicador, visto que em algumas
modalidades de gravura não há retorno. Se você
erra, precisa jogar fora e fazer de novo.
Entre Renina e Cecília, há um motivo a mais
para um encontro nessa edição do Romanceiro
da Inconfidência. Ou seja, o Motivo da Rosa, nome desse
poema de Cecília Meirelles:
Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Rosas verá, só de cinzas
franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão
me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
|
|