O
Brasil é subdesenvolvido, o resto é eufemismo. A frase
do economista Celso Furtado escancara um perfil compreendido do
que é a nação, mas certamente não digerido
pela maioria dos brasileiros. Do contrário, por que dizemos
que o Brasil é um País em desenvolvimento
ou emergente, exatamente como sugerem as teorias criadas
no Hemisfério Norte? Dono de idéias tão originais
a ponto de influenciar um número considerável de intelectuais
e políticos, o teórico acreditava que outros termos
fora do conceito de subdesenvolvimento utilizados para designar
a realidade brasileira não passavam de figuras de retórica.
Nas décadas de 50 e 60, diversas teorias, sobretudo
as norte-americanas, diziam que o subdesenvolvimento é uma
etapa a ser vencida na direção do desenvolvimento.
Mas Furtado nos mostra que o subdesenvolvimento é um tipo
específico de desenvolvimento capitalista que acontece na
periferia do sistema, pois a lógica do sistema é fazer
com que os países subdesenvolvidos permaneçam sempre
subdesenvolvidos, explica a professora Leda Paulani, da Faculdade
de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da
USP, sobre uma das principais contribuições teóricas
do economista.
Poucos dias antes de morrer em seu apartamento, no Rio de Janeiro,
no dia 20 de novembro, aos 84 anos, em conseqüência de
um colapso cardíaco, Furtado ainda perpetrou um último
ato político de peso, coerente com sua trajetória.
Assinou um documento em favor da permanência de Carlos Lessa
na direção do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social). O significado disso é que Lessa
ainda representava, para muitos, uma das últimas peças
do governo que jogavam do lado desenvolvimentista de
Furtado, em vez de preferir o monetarismo ou o neoliberalismo
iniciado por FHC e continuado por Lula.
Existem controvérsias sobre a orientação ideológica
de Lessa, é fato. Não creio que ele seja um
símbolo do desenvolvimentismo. Tem suas próprias idéias
e as segue, diz um intelectual conhecido, ex-colega de classe
de Lessa, que não quer seu nome citado para não
estragar a amizade.
Apesar disso e de sua deposição do cargo, afinal a
missão de Furtado com relação ao BNDES foi
cumprida.
Empossado em janeiro de 2003 por indicação do próprio
Furtado, Lessa conseguiu pôr em prática as orientações
do mestre e reconduziu a instituição ao seu
papel original de fomentador do desenvolvimento, segundo o
economista Paul Singer, Secretário Nacional de Economia Solidária
do Ministério do Trabalho e Emprego. Para o secretário,
o órgão havia adquirido uma característica
de banco de investimento de caráter privado como qualquer
outro do gênero. Resgatar a missão original do
BNDES foi uma das últimas grandes obras de Furtado,
diz.
Realizar grandes obras foi seu forte, tanto no papel quanto na prática.
Formação econômica do Brasil, de 1959, ainda
é leitura de referência nas disciplinas introdutórias
de economia, diz a professora Leda. Coincidência ou não,
também em 1959 Furtado deu início a outra de suas
obras-primas, ao assumir a superintendência da Sudene, órgão
que concebeu para promover o desenvolvimento do Nordeste brasileiro.
Ao criar a Sudene, Furtado mostrou que conhecia como ninguém
a realidade do Nordeste. Ao contrário de muitos escritores
e pensadores que fixavam suas idéias na zona da mata e, portanto,
tinham dificuldades de pensar o sertão nordestino, Furtado
mostrou que possuía noção das dificuldades
derivadas dos problemas fisiográficos e hidrológicos
de toda a região, diz o geógrafo Aziz AbSáber,
pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
Para AbSáber, a Sudene foi uma grande idéia
que fracassou porque, além da corrupção e do
abuso de poder das oligarquias locais, muitos projetos foram mal
orientados. Os políticos ficavam preocupados em fazer
obras faraônicas, que dão projeção.
O fim da Sudene certamente foi uma de suas maiores frustrações,
diz o historiador Jaime Pinsky, que define Furtado como uma figura
carismática e interessante. Apaixonado pela questão
da distribuição de renda e entusiasta da reforma agrária,
o economista foi o último dos grandes explicadores
do Brasil, opinião compartilhada por Pinsky e por Paul Singer.
O primeiro grande explicador do Brasil foi Caio Prado Júnior,
diz o secretário. Depois temos o Sérgio Buarque
de Holanda, o Florestan Fernandes, o Darcy Ribeiro e o Celso Furtado,
diz o historiador. Furtado mostrou que a economia pode ser
uma ciência generosa e não restritiva, como acreditam
os economistas. Sua abordagem fez toda uma geração
compreender a macroeconomia brasileira e influenciou muitos historiadores.
Sem dúvida teve uma influência enorme sobre minha forma
de enxergar a história, acrescenta Pinsky.
Presença
do Estado Apesar de identificado com o chamado desenvolvimentismo,
Furtado não usava essa expressão, segundo a professora
Leda. A economista explica que esse foi um termo criado nos
anos 80 e 90 para designar as políticas praticadas no País
entre as décadas de 30 e 80 e que se contrapõem às
visões neoliberais iniciadas com FHC.
Claramente ortodoxa, a atual política econômica adotada
pela equipe do presidente Lula preocupa-se essencialmente com a
questão monetária e o pagamento da dívida.
Nessa orientação, o crescimento é um subproduto
da política econômica e não uma meta, ao contrário
do que preconizam as propostas de Furtado, diz Leda. Daí,
entre outras coisas, as rusgas ocorridas recentemente com a saída
de Lessa do BNDES.
De acordo com Furtado, a saída do subdesenvolvimento só
é viável através da participação
ativa do Estado, que deve colocar em prática um projeto de
desenvolvimento. Além do conceito de subdesenvolvimento,
outra grande contribuição de Furtado para a história
econômica brasileira foi a teoria que preconiza o subdesenvolvimento
como fruto da dependência tecnológica e cultural.
Tradicionalmente, o Brasil tem um perfil de desigualdade muito
grande. As elites sempre aspiraram aos padrões de consumo
dos países centrais, desenvolvidos. Portanto, as mudanças
tecnológicas que aqui chegavam e chegam vêm ditadas
pela via do consumo e se impõem às reais necessidades
de mudança. Ou seja, nossa cultura, que dita as necessidades
materiais, é fruto de algo concebido lá fora e que
entra aqui pelo viés do consumo, dominando nosso processo
produtivo e de desenvolvimento. Isso produz uma dependência
perversa do ponto de vista tecnológico e cultural,
diz Leda. Autora do artigo A utopia de nação:
esperança e desalento, sobre as teorias de Furtado,
o texto foi elogiado pelo próprio. Nunca ninguém
conseguiu resumir tão bem em poucas páginas as boas
idéias que eu tive na vida, disse o economista à
professora. O texto compõe um dos 14 ensaios do livro A grande
esperança em Celso Furtado, da Editora 34, lançado
em 2001.
A
poética do desenvolvimento
CREMILDA MEDINA
À
mesa, um grupo de escritores, representando Moçambique,
Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau
e Cabo Verde. Palácio do Planalto, 1987, noite de estrelas
no céu de Brasília. O presidente José
Sarney recebe para jantar a delegação que vem
ao Brasil para o lançamento do meu terceiro livro sobre
as literaturas de língua portuguesa, Sonha Mamana
África (*). Do meu lado direito,
o ministro da Cultura, Celso Furtado (jamais imaginaria que
o autor que alimentou minha geração, no início
dos anos 1960, antes do golpe militar, e posteriormente, na
resistência à ditadura, ali estivesse, acessível
a um diálogo. Afinal, ali sentado, um artífice
da nova República que se sonhava).
A tentativa de conversa pelo viés de sua obra clássica,
o projeto social de desenvolvimento, o Nordeste brasileiro
ou a Sudene, logo se frustra. Celso Furtado, simples e curioso
como um menino, insiste em um único assunto
a literatura. Não chegamos ao fim da entrada do jantar
(não me lembro mais do cardápio, tal a tensa
mobilização do momento) e me surpreende com
uma confissão de humildade intelectual: havia mandado
buscar os dois outros livros para se informar. Dos portugueses
contemporâneos, pouco sabia; dos africanos, praticamente
nenhuma leitura; agora, dos escritores nacionais (e isso me
emociona pela honestidade), muito aprendeu na Posse da terra
Escritor brasileiro hoje. Fico muda. Para me descontrair,
brinco com meu ilustre ministro: sabe, em algumas livrarias
por aí, o livro está catalogado na prateleira
de assuntos fundiários. Celso Furtado se
diverte, mas não morde a isca, não quer falar
de reforma agrária, quer saber mais dos poetas, dos
ficcionistas, do encantamento da arte.
Na refeição austera (isso eu me recordo), o
presidente Sarney tem o compromisso de abordar as questões
políticas e sociais da luta africana e a solidária
presença do Brasil no continente. Mas, quando pôde,
ouvido atento ao que se fala em diagonal nos assentos à
frente, se inclui na tertúlia literária. Fala-se
do ensino de português, a inconveniência do massacre
gramatical e o significado profundo do texto literário.
Sarney confessa que esse é seu chão preferido.
Celso Furtado encena as maravilhas que descobre em um romance,
um conto, um poema.
Nem mesmo a visita à biblioteca, após o jantar,
apaga a magia desse banquete de sensibilidade servido pelo
apóstolo da mais justa repartição dos
pães.
(*)
Medina, Cremilda de Araújo. Viagem à literatura
portuguesa contemporânea, Rio, Editora Nórdica,
1983; A posse da terra Escritor brasileiro hoje, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985; Sonha Mamana África,
São Paulo, Edições Epopéia, 1987.
Cremilda
Medina é professora da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP
|
|