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César Lattes tinha uma boa cabeça e as boas cabeças conseguem superar as deficiências materiais e econômicas. A opinião do professor Erney Plessmann de Camargo, presidente do CNPq, acompanhada da observação do professor Iuda David Goldman, do Instituto de Física da USP, de que o iniciador da pesquisa em física no Brasil conseguia excelentes resultados usando com criatividade recursos técnicos e materiais ainda precários, é consenso entre os cientistas e autoridades que estiveram no velório e acompanharam o enterro de Lattes, quarta-feira (9), no cemitério Jardim Flamboyant, em Campinas.

Boa cabeça e criatividade colocaram duas vezes o físico brasileiro, nascido em Curitiba há 80 anos, perto do Prêmio Nobel, em conseqüência da descoberta do méson pi, que, na definição do professor Edison Hiroyuki Shibuya – continuador das experiências de Lattes na Unicamp –, é uma partícula com função comparável à de uma cola que dá estabilidade ao núcleo do átomo, apesar de ele se compor de dois elementos com carga elétrica negativa (prótons e nêutrons), que naturalmente deveriam se repelir. Da personalidade alegre, extrovertida e preocupada em ajudar os jovens dão testemunho as pessoas que conviveram diretamente com o cientista. De modo especial a professora Thereza Borello Lewin, chefe do Departamento de Física Experimental do Instituto de Física da USP, cujo pai, Luiz Borello, foi professor de Lattes no Colégio Dante Alighieri: “Lattes era personalidade excepcional, com muito entusiasmo, inteligência e perspicácia fora do comum. Um cidadão do mundo”.

Para o diretor do Instituto de Física da USP, professor Gil da Costa Marques, Lattes foi o primeiro brasileiro a fazer um trabalho científico de grande repercussão internacional, colocando o Brasil no mapa da produção científica mundial. “Através de seus estudos, Lattes mostrou que o Brasil possuía material humano competente nas áreas de pesquisa e tecnologia e condições intelectuais para desenvolver pesquisa de ponta”, observou Marques, em entrevista à Agência USP de Notícias.

Shozo Motoyama, diretor do Centro Interunidades de História da Ciência da USP, engrossa o coro daqueles que reconhecem a importância de Lattes para a ciência brasileira. “Dentro de um contexto de valorização do Brasil no pós-guerra, Lattes foi um inspirador da autoconfiança das gerações de 1950 e 60”, diz. “E sua repercussão só não foi maior porque a parcela do povo que tinha acesso à informação era bastante reduzida.”

Unidade dos físicos

O ministro Eduardo Campos disse no velório que não estava lá apenas em nome do Ministério da Ciência e Tecnologia, mas também a pedido pessoal do presidente Lula, para que transmitisse à família e aos companheiros de Lattes o tributo do governo. “Lattes viveu o início da estruturação do sistema de ciência e tecnologia que temos hoje”, disse Campos. “Em menos de seis meses perdemos dois grandes brasileiros: o físico César Lattes e o economista Celso Furtado. Devemos pensar como eles, que pensaram grande no seu tempo. Um menino (Lattes) que aos 19 anos se forma em Física e logo pensa na estruturação da ciência nos anos 50. Pensava na unidade dos físicos da América Latina; precisamos pensar no mesmo padrão. Hoje é dia de luto para a ciência brasileira e mundial.”

O professor Erney Camargo disse que a área da física é “um sorvedouro de recursos do CNPq”, e um dos seus maiores clientes. “O que estamos fazendo é recuperar as memórias das reuniões do Conselho Deliberativo ao qual Lattes pertencia. Teremos provavelmente revelações ainda pouco divulgadas do seu comportamento como divulgador científico. Oportunamente liberaremos tudo, assim que tivermos compilado todas as suas intervenções.” Depois de observar que Lattes tinha boa cabeça e que cabeça boa resolve obstáculos materiais, o presidente do CNPq lembrou que o cientista brasileiro trabalhou com Giuseppe Occhialini, então físico de renome internacional. “Houve uma associação de inteligências e isso facilita enormemente as iniciativas.”

Ainda sobre o prêmio não concedido pela Academia sueca ao brasileiro, Iuda Goldman considerou um “erro lamentável”. Quem o recebeu na época (1950) foi seu colega e orientador Cecil Powel, um pesquisador sênior, ao passo que Lattes tinha então apenas 23 anos. Indicado para o Nobel pela segunda vez, também não foi premiado porque Eugene Gardner, co-autor da descoberta do méson pi e também indicado, morreu antes da atribuição. A tradição da Academia é homenagear apenas cientistas vivos.

Iuda trabalhou com Lattes em Chacaltaya, Bolívia, onde funciona um observatório para fenômenos cósmicos. Isso foi na época (meados da década de 50) em que o professor, agora aposentado compulsoriamente do Instituto de Física da USP, fazia o que hoje se denomina iniciação científica.

Segundo ele, Lattes foi depois trabalhar no Departamento de Física, que pertencia à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – antes, portanto, da reforma de 1969. A sua transferência para a Unicamp, também antes da reforma, Iuda considera que foi “uma perda lamentável, uma vez que ele era para as pessoas esclarecidas o que Pelé é para o povão”. Afirma o professor aposentado: “Toda vez que Lattes recebia algum prêmio, e foram muitos, eu era uma das figuras lembradas para ser convidada”.

Logo depois de voltar da Europa, o mestre fundou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), instituição que continua atuante e na vanguarda, “embora um pouco esvaziada, pois não temos no Brasil essa espécie de filantropia abnegada capaz de destinar parte das heranças para manter instituições dessa natureza”. À montagem do perfil de César Lattes, Iuda acrescenta uma curiosidade: certa vez, não havia mais espaço no passaporte do cientista e ele simplesmente grampeou no documento mais uma folha. E funcionou: “O prestígio dele era de tal ordem que qualquer coisa dava certo”.


Ateu místico

Quando se trata de cientistas, há a curiosidade de saber se são ou eram religiosos. Amélia Império Hamburger, também professora do Instituto de Física da USP, contou que Lattes disse certa vez em entrevista que era “ateu místico”. A professora não se considera em condições de interpretar a expressão. No enterro do cientista não houve culto religioso. O que Amélia sabe é que Lattes “era uma pessoa de grande liberdade de pensamento, grande discernimento, intuição e coragem. Ficou famosíssimo como herói nacional aos 20 e poucos anos. Trabalhou na USP, no CBPF e na Unicamp a vida inteira, por mais de 50 anos, e teve colaboração importante de físicos japoneses”.

Edison Hiroyuki Shibuya, depois de explicar a linha de pesquisa e a descoberta de Lattes, que acabou abrindo uma nova área de estudo, a da Física de Partículas Elementares, afirmou que na Inglaterra houve tentativas de alunos de Lattes de utilizar o méson pi para fins terapêuticos. “O méson tem a característica de andar uma distância de energia bem definida. Incidindo, por exemplo, num tumor, rebenta-o sem deixar sinal ao redor. Por enquanto, só há pesquisas acadêmicas.”
Por pouco a Unicamp não perdeu a oportunidade de entregar a César Lattes o título de Professor Emérito, que o Conselho Universitário lhe conferiu ainda em 1987. Como o professor não marcava data para receber a homenagem, a universidade decidiu entregar-lhe o título na casa do cientista. Isso foi no ano passado. “A morte do Professor Emérito representa uma perda importante para a Unicamp e para a ciência mundial, mais que para a ciência brasileira. Ele trabalhou aqui desde a fundação da universidade até 1987. Sua vida foi um estímulo para os jovens cientistas. Para a Unicamp, foi grande honra contar com o nome de Lattes como um dos Professores Eméritos”, disse o professor Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp e diretor-científico indicado da Fapesp.



Brito Cruz entrega a Lattes, em sua residência, o título de Professor Emérito da Unicamp, no ano passado.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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