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Josias de Matos talha uma canoa num tronco de jequitibá, na mata de Toque-Toque Pequeno



Do alto de sua sabedoria popular, o caiçara aponta as causas do que poderá ser o sumiço da sardinha-verdadeira (Sardinella brasiliensis) da mesa do brasileiro. “Agora tem muito atuneiro (embarcações grandes para a pesca do atum) por aí. Eles caçam o peixe pequeno (no caso, a sardinha juvenil, menor de 17 centímetros e que serve de isca viva para a pesca do atum e do bonito-listado) e assim ele não pode crescer para se reproduzir e criar família. É como se eu matasse todos os meus filhos e ainda quisesse ter descendentes”, diz Orivaldo Carlos da Silva, nativo de vila Picinguaba, na região de Ubatuba, que tem na pesca artesanal sua principal atividade de subsistência, desde 1959. “Os outros peixes eu não sei, não, por que estão sumindo. Mas a sardinha eu posso garantir que é isso aí.”

As informações de Jacinta Oliveira Dias – analista ambiental da Coordenadoria Geral de Gestão de Recursos Pesqueiros do Ibama (Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) – confirmam a avaliação de Orivaldo. “A pesca intensiva da espécie e a captura de juvenis, usadas como isca para pegar o atum e o bonito, são importantes motivos que influenciam nos estoques. Além disso, a sardinha é um peixe pelágico (vive geralmente na costa, na coluna d’água próxima à superfície) e seu ciclo de vida é influenciado por diversas condições oceanográficas, como ventos, marés e fenômenos como o El Niño”, diz a especialista. Jacinta confirma que há muito mais barcos pesqueiros do que suportariam os estoques marinhos, justificando que “infelizmente nem sempre a fiscalização consegue estar no local para coibir os ilegais”.

Markus Otto Zerza, engenheiro agrônomo e fiscal do Ibama, afirma que quatro fiscais ambientais cobrem a área norte do litoral paulista no setor pesqueiro, dois deles sediados no escritório regional de Caraguatatuba e dois na Estação Ecológica Tupinambás. O efetivo da Polícia Ambiental responsável por cobrir o litoral norte do Estado não pode ser divulgado “por questões estratégicas”, segundo o major Marco Aurélio Soares Aranha, comandante interino da 3a Companhia, sediada em Caraguatatuba. “O número de homens responsáveis pelo policiamento ambiental é relativo porque varia dependendo da operação e qualquer um dos nossos quatro pelotões pode, conforme as circunstâncias e natureza da operação, acionar todo o seu efetivo disponível”, afirma.

 


Uma moradora de Camburi de Ubatuba: comunidades que resistem


Cultura em extinção

“Estou precisando de uma canoa. Já encomendei para o mestre (canoeiro), mas na medida do tronco que eu preciso ainda não apareceu nenhuma árvore na mata. Vou esperar, quem sabe ele consegue logo uma autorização para talhar um tronco do tamanho que eu quero. Porque, para pescar, tem de ser mesmo a canoa de madeira. Não adianta ser de fibra de vidro nem de alumínio, porque os arrebites estragam a rede”, diz o pescador Daniel Nerimo Moreira, que há 30 anos faz cerco em Maresias e Toque-Toque Pequeno.

A pesca do cerco ainda é o principal tipo de pescaria praticado entre os caiçaras do litoral norte. Emprega de quatro a seis homens que, com duas ou três canoas, vão sincronicamente puxando a rede e cercando o peixe, o que é realizado a cada “visita” ao mar. Segundo Paulo Noffs, mestre em Geografia Humana e autor da dissertação de mestrado “Os caiçaras de Toque-Toque Pequeno” – apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP –, esse tipo de pescaria foi introduzido pelos japoneses por volta de 1940. No lugar também se pratica a pesca de tresmalho, a de arrastão, a de espinhel e a de linha-de-mão, mostra o pesquisador no resumo de seu estudo, publicado na Enciclopédia Caiçara.

No dia 12 de março, um sábado, a reportagem do Jornal da USP acompanhou uma “visita”, da qual participaram Daniel Moreira, José Carlos de Marques, Agnaldo Santana e Edson de Góes Lima. Mas a rede emergiu vazia, com meia dúzia de lulas e peixes pequenos, que imediatamente foram soltos. “Faz quatro dias que a rede está armada e não apareceu nada ainda. Já esteve ruim, mas desse jeito nunca aconteceu”, diz José Carlos.
Para Noffs, o pequeno pescador tem cada vez menos chances no mundo globalizado. “Os caiçaras que ainda sobrevivem dessa atividade concorrem com grandes embarcações equipadas com radar e todo tipo de tecnologia para seguir cardumes. Tem até barco estrangeiro. É óbvio que são menos competitivos e a tendência é a pesca artesanal desaparecer como atividade principal”, afirma.

Assim como as sardinhas-verdadeiras e uma série de outras espécies da biodiversidade brasileira, os saberes e hábitos caiçaras correm o risco de se extinguir. Em sua extensa bibliografia sobre o tema, o professor Antônio Carlos Diegues, do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub) da USP, enumera como principais ameaças àquela cultura o avanço da especulação imobiliária, do turismo de massa e da urbanização, que surgiram sem levar em conta o modo de vida caiçara.

Além disso, destaca-se o fato de grande parte do território caiçara ter sido transformado em áreas naturais protegidas, provocando o fluxo migratório, a subocupação de seu território e a conseqüente favelização dos entornos urbanos, o desemprego e o subemprego, assim como a perda de identidade e desconhecimento das novas gerações a respeito dos saberes tradicionais acumulados por décadas.

 


O cerco, tradicional tipo de pesca dos caiçaras do litoral norte paulista: saberes em vias de extinção



Pescadores voltam do cerco


Um jeito de ser

Para fazer a canoa que o pescador Daniel precisa, o mestre canoeiro Josias Marcelino de Matos, morador de Toque-Toque Pequeno, precisará aguardar até cair um jequitibá maior do que o que encontrou na mata, hoje transformada em Parque Estadual da Serra do Mar. “Pode ser também cedro ou alguma de igual qualidade. Mas depois de achar a tora, a outra questão vai ser esperar sair a autorização do DEPRN (Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais) para eu poder trabalhar a madeira”, diz o mestre canoeiro.

Mas nem sempre foi assim. Até o final da década de 70, muitos caiçaras artesãos que usavam a caxeta ou outras madeiras para seus trabalhos provavelmente não enfrentariam aqueles obstáculos. As leis ambientais, no entanto, restringem o uso do solo e dos recursos materiais em áreas protegidas e o que antes era utilizado livremente, como fonte de subsistência, atualmente tornou-se bem protegido pela legislação.

Os entraves legais se intensificaram entre as décadas de 1980 e 1990, período em que foram criadas cerca de 2.098 unidades de conservação de âmbito nacional, como cita o professor Antônio Carlos Diegues em seu livro O mito da natureza intocada. “Foi justamente nesses espaços territoriais litorâneos, de mata tropical úmida, habitados por essas populações tradicionais, que se implantou grande parte das chamadas áreas naturais protegidas, a partir dos anos 30, no Brasil”, registra o livro.

Dono de conhecimentos sobre a biodiversidade da floresta e do mar e de engenhosos sistemas tradicionais de manejo, o caiçara, numa definição dos pesquisadores do Nupaub, é o descendente da mescla étnico-cultural de indígenas, de colonizadores portugueses e, em menor grau, de escravos africanos, cujas comunidades tradicionais subsistiam através da agricultura itinerante, da pesca artesanal, do extrativismo vegetal e do artesanato. No litoral paulista, as comunidades tradicionais caiçaras foram mantidas até a década de 1950, quando começaram a ser abertas as primeiras estradas ligando a região litorânea ao planalto. Apesar de até já ter sido preso por praticar extrativismo de subsistência, Josias pretende continuar sendo mestre canoeiro e passar seus conhecimentos para os filhos. “Insisto em fazer isso por uma questão espiritual”, afirma.

Vento forte é sinal de árvore caída. Depois de um temporal, lá vai Josias trilhar a mata para encontrar alguma espécie que sirva para uma encomenda que eventualmente tiver. De posse de uma autorização, atualmente ele está talhando uma canoa de competição. Mas reclama da demora e da burocracia para obter o documento. “Há pouco tempo perdi uma encomenda porque, quando a autorização saiu, a árvore já tinha apodrecido. Era um tronco bonito que só vendo”, conta. Procurados pela reportagem, os responsáveis pelo DEPRN no litoral norte não deram retorno para se pronunciar sobre as razões do entrave burocrático nas autorizações dadas a artesãos caiçaras.





aspectos da vida comunitária dos caiçaras: cultura é o resultado da mistura étnica de indígenas, de colonizadores portugues e, em menor grau, de escravos africanos



Competição desleal


Nunca teve um período tão ruim para a pesca. De um ano para cá a gente não está capturando nem a metade da quantidade de peixes que conseguia um ano atrás. Essa declaração, feita quase em uníssono por caiçaras de todo o litoral norte de São Paulo, apenas confirma o que muitos estudos realizados no mundo inteiro e particularmente no Brasil já constataram: com exceção de variações sazonais, existe de fato uma tendência mundial de redução da capacidade de exploração de diversas espécies marinhas.

Marcus Henrique Carneiro, pesquisador do Instituto de Pesca do Estado de São Paulo, afirma que os peixes demersais (das águas mais profundas e geralmente pegos pela pesca de arrasto) têm apresentado queda nos desembarques portuários do litoral paulista, principalmente aquelas espécies capturadas desde há muitos anos, como corvina, goete, cação, pescada, bagre e camarão. Carneiro diz que, de todas as espécies capturadas no mundo, 50% estão dentro de sua capacidade-limite de exploração e 25% já são consideradas recursos esgotados, enquanto apenas 25% ainda podem ter alguma possibilidade de aumento de captura.

No caso específico do Brasil, preocupa particularmente a redução drástica da sardinha-verdadeira, espécie de peixe que já foi abundante entre os Estados do Rio de Janeiro e Santa Catarina e que ainda tem grande importância na cadeia produtiva pesqueira brasileira, por envolver uma parcela significativa de trabalhadores direta e indiretamente ligados à atividade. “Aqui não dá mais para viver da sardinha. Os navios grandes vêm perto da costa e não sobra nada para a gente. Acho que tinha que rever essa lei aí”, diz Orivaldo Carlos da Silva, pescador caiçara de vila Picinguaba.

Para o engenheiro agrônomo e fiscal do Ibama Markus Otto Zerza, a legislação de pesca é complexa e envolve muitos interesses. Numa briga de desiguais, na qual “os mais competitivos sempre terão mais vantagens”, Zerza aponta falhas na legislação, que, em última análise, colaboram para a redução dos estoques pesqueiros e até extinção de algumas espécies. “Estou cansado de ver, nas peixarias, robalos e garoupas em tamanhos menores que o permitido, mas não posso fazer nada porque existe uma brecha na legislação que diz que, se essas espécies forem pegas através da pesca de arrasto, os menores são permitidos”, afirma Zerza. A pesca de arrasto envolve barcos maiores a motor e é feita em alto-mar.

Lucy Satiko Hashimoto Soares, professora do Instituto Oceanográfico da USP, já afirmou em textos de divulgação científica que a pesca industrial sem controle poderá acabar com as sardinhas dos mares brasileiros. Para se ter uma idéia, a captura industrial, que atingiu o pico de 228 mil toneladas em 1973, foi reduzida ao total de 32 mil toneladas em 1990 e 17 mil toneladas em 2000.

A lei permite a pesca da sardinha juvenil desde que esta seja utilizada estritamente como isca viva para a captura do atum e do bonito- listado. Historicamente, diz o pesquisador Marcus Carneiro, houve um aumento da procura por isca viva e também do número de barcos pesqueiros voltados a esse fim. A sardinha juvenil passou então a ser comercializada indevidamente. “Uma grande quantidade de embarcações voltadas à pesca desse recurso o utilizava indevidamente. Eram comuns bares e restaurantes vendendo sardinhas pequenas como petisco. Por conta disso, uma nova regulamentação permitiu apenas aos atuneiros a pesca das juvenis”, diz.

Vigente até hoje, salvo modificações introduzidas por portarias e decretos, o Código de Pesca brasileiro remonta ao final da década de 60, segundo Carneiro. O pesquisador afirma que a defasagem das leis em relação à prática tem resultado em sérios conflitos territoriais. “Leva muito tempo até que um instrumento legal incorpore a realidade ou as necessidades do setor, prejudicando os diversos elos da cadeia produtiva. Uma das grandes questões para os órgãos governamentais é saber como repartir os recursos pesqueiros”, diz.

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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