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Documentos do Deops analisados
por equipe da USP: sigilo
é um dano à memória
do País, dizem pesquisadores

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




 

 

 




N
o momento em que a Medida Provisória 228/04 – que trata da salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado – acaba de ser aprovada na Câmara dos Deputados para ser encaminhada a votação no Senado, a Universidade aguarda a visita de pesquisadores e escritores que debaterão o tema no seminário Intolerância, Direitos Humanos e Arquivos Secretos. O encontro acontecerá no dia 10 de agosto, no Anfiteatro do Departamento de História, com a presença de Luis Roniger e Mario Sznajder, autores do livro O legado de violações dos direitos humanos no cone sul, recém-lançado pela Editora Perspectiva. A historiadora argentina Patricia Funes discorrerá sobre os procedimentos e legislação adotados sobre a matéria em seu país. A professora Elisabeth Cancelli, da Universidade Federal de Brasília (UnB), dará um panorama acerca do acesso a arquivos policiais nos Estados Unidos. A professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – responsável pelo evento –, e o professor Boris Kossoy, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, falarão sobre a abertura da documentação do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP).

Pouco se ouviu falar na mídia sobre a referida MP, mas o debate do assunto se faz necessário, entre outras razões, para garantir que a informação faça parte do exercício democrático da cidadania e da construção da memória do País, lembra a professora Maria Luiza. A produção historiográfica vigiada ergue barreiras entre a história oficial e a não-oficial e é da omissão de fatos e dos silêncios da história que muitas vezes se constroem mitos ou a figura do ídolo no imaginário coletivo, afirma Maria Luiza num artigo publicado na revista Acervo (volume 4, número 2), editada pelo Arquivo Nacional.

A MP 228/04 e decretos editados entre 1998 e 2004 ultrapassaram alguns limites constitucionais e demonstram que o Brasil, igualmente aos vizinhos sul-americanos que ainda passam por um processo de redemocratização após décadas de regimes ditatoriais, “ainda não conseguiu definir uma política de Estado relativa à salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado”, na visão de Aurélio Wander Bastos, doutor pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Lei de Arquivos

A Lei de Arquivos (8.159/91) “é um bom instrumento legal”, na opinião de Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores e professor da Faculdade de Direito da USP, uma vez que o texto providencia o acesso a arquivos sigilosos públicos para quem dele necessitar, incorporando o pressuposto de publicidade inerente ao Estado Democrático de Direito como regra e o segredo, como exceção.

Segundo Lafer, a lei 8.159/91 prevê quatro categorias de sigilo e prazos: cinco anos para os documentos “reservados”, dez anos para os “confidenciais”, 20 anos para os “secretos” e 30 anos para os “ultra-secretos”, sendo que estes podem ser reclassificados e seu prazo, renovável por uma única vez.

No entanto, os sucessivos instrumentos legislativos editados após a Lei de Arquivos e inclusive a MP 228/04 “traduzem o poder de pressão de grupos circunstanciais e ameaçam, justamente pelas exceções inseridas em seus textos, esvaziar a elogiada Lei de Arquivos”, afirma Wander Bastos.

Especialista em Direito Constitucional e legislação de Arquivos e Informações, Wander Bastos avalia que um dos maiores problemas da MP é usar de artifícios técnicos que “indiretamente viabilizam a dilatação para cem anos do prazo para acesso a documentos que estejam relacionados à intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas comprometidas em circunstâncias especiais que envolvam a segurança do Estado”.

O decreto baixado na gestão FHC (4.553/2002) dilatou os prazos da Lei de Arquivos e também permitiu que certos documentos pudessem ser vetados indefinidamente, até quando não representassem mais uma ameaça à segurança do Estado e da sociedade. “Isso é inadmissível, porque indeterminados não são nem mesmo os Estados e as sociedades”, diz o advogado.

Um dos méritos da atual MP proposta pelo Executivo é acabar com os prazos indeterminados. Além disso, retoma os prazos da Lei de Arquivos, mas só para os documentos desclassificados ou que não sejam ultra-secretos. Para Wander Bastos, “isso, na verdade, é uma estratégia, pois a MP remete à Lei de Arquivos, mas excepciona a proteção e sigilo dos ultra-secretos”.

A proteção da imagem e da honra é um limite válido para o acesso aos documentos públicos sigilosos, concordam Maria Luiza e Odete Medauar, professora da Faculdade de Direito da USP, embora a classificação de mais alto grau de sigilo sirva, em muitos casos, para “encobrir corrupção, apropriação de territórios ou acordos de bastidores”, na visão da historiadora.

Porém, mesmo que a proteção da vida privada seja um parâmetro, “o que acontece se uma vítima, para se defender, precisar ter acesso àqueles arquivos fechados por cem anos? A MP não prevê isso”, questiona Wander Bastos.

Se no direito público o que vale é a proteção do direito do cidadão, a MP tem aí um sério problema. “Um militar que atuou na repressão tem todo o interesse que o documento fique preservado. Mas o que fariam vítimas e familiares ou um guerrilheiro que lutou no Araguaia, por exemplo, se precisassem daqueles documentos como prova para defesa?”, aponta o advogado.

Representatividade

Originária do Executivo e sob a relatoria do deputado Sérgio Miranda (PCdoB-MG), a MP 228/04 cria, no âmbito da Casa Civil, a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, que decidirá sobre os casos em que o sigilo for considerado imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Formada pelos ministros José Dirceu (Casa Civil), que coordena os trabalhos, Márcio Thomaz Bastos (Justiça), Nilmário Miranda (Direitos Humanos), José Alencar (Defesa), general Jorge Felix (Gabinete de Segurança Institucional), Álvaro Ribeiro Costa (Advocacia Geral da União) e Samuel Pinheiro Guimarães (secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores), ela decidirá quais documentos terão o mais alto grau de sigilo e poderá optar por uma única prorrogação do prazo desses documentos. Qualquer interessado poderá pedir à comissão uma nova análise da decisão, segundo informações da Agência Câmara.

No entanto, a baixa representatividade da comissão é criticada pela professora Maria Luiza e o pelo advogado Wander Bastos, que a chamam de “comissão governamental”. “Em 1994, foi criada uma Comissão de Notáveis do Estado de São Paulo, composta por intelectuais, advogados, religiosos, membros da sociedade civil organizada e representantes do governo, que recomendaram a abertura total dos arquivos do Deops-SP. Foi a partir disso que o Estado de São Paulo liberou os acessos àqueles documentos. Agora também deveria ser criada uma comissão naqueles moldes, com maior representatividade da sociedade”, diz Maria Luiza.

Para o advogado Wander Bastos, o texto da MP deveria determinar que a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas fosse composta “por representantes de órgãos especializados da Casa Civil, Ministério da Defesa, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Justiça, Gabinete de Relações Institucionais, Ordem dos Advogados e representantes da sociedade civil escolhidos pela própria Comissão e designados pelo chefe da Casa Civil, com a finalidade de classificar os documentos de informações de alto grau de sigilo”.

A MP está sendo encaminhada para votação no Senado e depois retornará para a Câmara, quando então se transformará em projeto de lei de conversão, segundo informações de consultores legislativos da Câmara. Com isso, o que era medida provisória funcionará como lei, diz Wander Bastos.

 



Pesquisa recupera fichas do Deops

Alguns grupos e organizações não-governamentais no Brasil têm colaborado para recuperar a memória do País e obter informações importantes para famílias de vítimas da repressão política. Entre esses grupos estão o Brasil: Nunca Mais e alas progressistas da Igreja Católica. Na academia, um projeto pioneiro de pesquisa coordenado pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, tem atuado na mesma frente.

Graças ao trabalho de uma equipe de graduandos do Departamento de História, 164 mil fichas do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP) – compreendendo o período de 1924 a 1983 – foram catalogadas por nome do cidadão ou da instituição prontuariada (“fichada”). Digitalizadas com financiamento da Fapesp, as fichas serão oficialmente entregues ao público em uma cerimônia conjunta com a Secretaria de Estado da Cultura, que deve acontecer em abril, ainda com data a confirmar. “A abertura total dos documentos do Deops-SP foi possível graças à atuação da Comissão de Notáveis do Estado de São Paulo, que recomendou a abertura total dos arquivos. Desde 1995, todo cidadão pode ter acesso àquelas informações, desde que apresentem RG e assinem um termo de compromisso se responsabilizando pela divulgação e uso dos dados. Isso só existe no Estado de São Paulo. Nos outros Estados brasileiros isso não é possível e cada governo adota uma postura. “Na Bahia, alegam que esses documentos simplesmente desapareceram”, diz Maria Luiza. No Rio de Janeiro, onde o órgão é federal (Departamento de Ordem Política e Social, Dops), há documentos liberados e outros que precisam de autorização expressa da família do prontuariado, afirma a professora.

Como resultado da pesquisa, a historiadora conta que já foram lançados 14 livros, desde 1999, pela coleção Inventário Deops-SP, da Imprensa Oficial do Estado. Embora outros nove títulos já estejam prontos, a editora suspendeu a publicação. “Sem qualquer aviso prévio, resolveram não publicar mais nada do projeto. Isso dá a dimensão do tratamento dado pelo Estado aos seus arquivos confidenciais e à reconstrução da memória”, desabafa Maria Luiza.

Apesar do contratempo, Maria Luiza planeja inventariar e digitalizar também os dossiês do Deops-SP e diz que já entrou com proposta de pesquisa na Fapesp. O levantamento compreenderá o período de 1940 a 1983, cujas 9.626 pastas já foram mapeadas e sistematizadas por grupo coordenado pela professora Maria Aparecida Aquino, também do Departamento de História da FFLCH.



Maria Luiza: informação é cidadania
Lafer: elogios à Lei dos Arquivos




A Argentina busca política para seus documentos

A historiadora argentina Patricia Funes, que no dia 10 de agosto participará do seminário Intolerância, Direitos Humanos e Arquivos Secretos, na USP, afirma que em todo o século 20 a história argentina foi marcada pela ausência de políticas para o acesso aos documentos públicos de caráter sigiloso. A lei 15.930, que trata do Archivo General de la Nación, é de 1961 e está “obsoleta e inadequada para a regulação dos arquivos sensíveis à segurança do Estado e da sociedade”, segundo a pesquisadora.

Além da falta de políticas estatais e de longo prazo para regular a questão, Patricia aponta as más condições de conservação dos edifícios onde estão guardados os documentos sensíveis e as formas obsoletas de catalogação, além da falta de recursos humanos especializados para
o arquivamento.

Na visão de Patricia, a criação do Archivo Nacional de la Memoria, em 2003, demonstra a vontade do atual governo de trabalhar na recuperação dos arquivos de todo o país. Mas apesar disso e do fato de muitos tipos de documentos já estarem abertos para consulta, ainda resta muito por fazer, pois permanecem inacessíveis informações estratégicas para a reconstrução do passado histórico e político do país. “A legislação nacional sobre arquivos é imprescindível em um Estado de direito, porque regula a aplicação das normas, o valor legal, probatório, administrativo e cultural dos documentos”, defende.

A historiadora conta que tem sido primordial o papel de alguns organismos de direitos humanos para exigir do Estado políticas de conservação e acesso às informações de acervos referentes ao terrorismo durante a última ditadura militar daquele país (1976-1983).

Até 2001, os arquivos do terror eram guardados pela Dirección de Inteligencia de la Policia de la Provincia de Buenos Aires (Dipba). A transferência da administração desses documentos para a Comisión Provincial por la Memória foi uma experiência pioneira na gestão de arquivos sensíveis
à segurança do Estado, segundo Patricia.

Diante da situação, a Comisión por la Memoria vem elaborando pautas de acesso às informações sigilosas de acordo com as diretrizes de um documento da Unesco, intitulado Los Archivos de la Seguridad de Estado de los Desaparecidos Regímenes Represivos, elaborado por um grupo de especialistas mundiais no tema,
presidido por Antonio González Quintana.

 

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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