Sociólogos da religião e estudiosos da
comunicação concordam nisto: o papa João Paulo
II, cuja vida pessoal, atuação no cargo, doença,
morte e sepultamento foram marcados por lances teatrais, manteve
forte controle sobre a Igreja e até sobre a própria
sucessão, tendo imposto regras aos cardeais eleitores, numa
espécie de restrição à comunicação
interna, que inclui a proibição de reuniões
em grupos e debates sobre candidatos. A observação
de Ismar de Oliveira Soares, professor da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP e presidente do Pontifício Conselho
para as Comunicações Sociais do Vaticano cargo
para o qual foi nomeado pelo próprio papa e em razão
dele foi recebido seis vezes em audiência no Vaticano ,
é reforçada, ainda mais criticamente, pelo sociólogo
Antonio Flávio Pierucci, do Departamento de Ciências
Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da USP. João Paulo II, ele diz, freou toda a linha
de atuação de Paulo VI, abriu mais de 200 processos
contra teólogos e acabou com o diálogo na Igreja.
Mesmo assim, Pierucci considera Karol Wojtyla uma figura interessante,
homem de grandes certezas, fechado às discussões,
incomodado pelo estilo colegiado das conferências episcopais
e pela prática de Paulo VI de convocar sínodos. Preferiu
governar com os bispos nas dioceses, individualmente, e por isso
enfrentou a oposição do episcopado em vários
países, nomeadamente Holanda, Espanha, Bélgica, Estados
Unidos, Peru e Brasil. Os atritos teriam sido agravados quando o
papa polonês decidiu ampliar os poderes do secretário
de Estado nas questões administrativas, transformando o detentor
do cargo (principalmente quando nas mãos de Agostinho Casarolli)
em chefe de Estado e fortalecendo o poder da Cúria Romana.
Cúria que, segundo o sociólogo da USP, o Concílio
Vaticano II quis eliminar. Assim se fecharam as influências
externas dos bispos considerados mais avançados em questões
de teologia e moral. Puxaram o tapete de uma arena em que
os teólogos influenciavam de modo incisivo, observa
Pierucci.
Vaticano
III Na ECA
unidade da Universidade que no seu universo de pesquisa inclui o
estudo do fenômeno religioso como objeto da prática
da comunicação, abrangendo a Igreja Católica,
evangélicos, cultos afro-brasileiros, e mais recentemente
o islamismo e o judaísmo , o professor Ismar Soares
faz um perfil menos severo do papa falecido, mas não deixa
de indicar algum traços surpreendentes, como o fato de cercar-se
de um forte marketing pessoal, trabalhar com grande variedade de
culturas e incluir nas missas que rezava durante as suas muitas
viagens pelo mundo danças típicas, cantos regionais
e produtos da terra levados ao altar na hora do Ofertório
(parte da missa); mas, ao mesmo tempo, reduziu por decreto a participação
dessas manifestações populares nas missas comuns.
Em síntese, os acréscimos da terra visitada eram permitidos
quando o papa se encontrava presente, mas proibidos no ritual oficial.
A razão disso, segundo o professor, deve estar no temor de
a Igreja perder a ortodoxia e o controle sobre a liturgia, pois,
ao contrário, por exemplo, dos evangélicos, que são
mais autônomos na forma de cultuar Deus e interpretar a Bíblia,
os cultos católicos devem seguir o mesmo rito em todo o mundo.
Daí que o projeto de comunicação da Igreja
está voltado para o esforço dessa garantia. Podem-se
usar muitas vozes, mas para anunciar a universalidade, pondera
Ismar Soares, que é autor do livro Do Santo Ofício
à libertação (Paulinas, 1988).
Na questão da Teologia da Libertação, a dualidade
de atuação do papa também se manifestava, observa
do professor da ECA. Enquanto nas viagens pelo Terceiro Mundo João
Paulo II chegou a assumir muitas posições defendidas
por essa corrente teológica, logo pôs freios nas Comunidades
Eclesiais de Base e em outras ramificações do movimento.
Segundo Ismar Soares, a Teologia da Libertação representou
a primeira grande corrente teológica fora da Europa, e são
os europeus que controlam o Vaticano. A Igreja, que não admite
luta de classes, temia esquemas de pensamento próximos do
marxismo e a dialética da luta pela libertação
política, apesar de os representantes da nova corrente teológica
garantirem que eram fruto do humanismo cristão e da certeza
de que Cristo fez a opção pelos pobres, além
de seguirem o aggiornamento (atualização) e a abertura
recomendadas pelo Concílio Vaticano II. O papa também
fez a opção pelos pobres contra o capitalismo, mas
ofereceu como antídoto a solidariedade cristã,
disse o professor. É verdade também que a Teologia
da Libertação afirma que Roma não é
só o papa; tem os bispos, os sínodos, os concílios,
que no conjunto representam a hierarquia eclesiástica.
Ismar Soares entende que, na hora em que se processa a mudança
na chefia da Igreja Católica, há uma tendência
em parte dos teólogos e entre fiéis atuantes (que
no Brasil são estimados em 4% da população
que se declara católica, e são 70% dos brasileiros;
eram 90% há 30 anos) de pedir um novo concílio, a
fim de refletir sobre os últimos 50 anos da Igreja e os maiores
problemas do mundo contemporâneo. Seria uma oportunidade para
analisar essa espécie de confronto entre o Concílio
Vaticano I e o Concílio Vaticano II e rever posições
sobre temas polêmicos, como celibato dos padres, ordenação
de mulheres e uso de preservativos, sem contar assuntos mais dogmáticos,
como eutanásia e pesquisa com células-tronco embrionárias,
que envolvem a questão da vida.
De qualquer modo, na opinião do professor da ECA, o
novo papa não chegará com a mesma força de
João Paulo II, que construiu uma assessoria, uma força
hegemônica de governo, em razão de sua personalidade
e das novas condições do mundo. Agora é
hora de novo diálogo, mas sem se voltar contra o papa morto,
e que foi sepultado em meio à excitação popular
e da mídia. Um fenômeno midiático em que
empresas privadas, cadeias de televisão às vezes até
com posições contrárias às da Igreja
em questões como aborto e secularização
em geral , cederam tempo integral ao espetáculo. João
Paulo II adoeceu e agonizou na mídia, observa Ismar
Soares. Teatro que acompanhou o papa em toda a sua vida, desde a
infância em país oprimido pelo totalitarismo.
Sucessão
A sucessão de João Paulo II seria um assunto fácil
de entender se todos os analistas pensassem tão tranqüilamente
sobre ela como Evaristo Eduardo de Miranda, que foi durante dez
anos professor de Ecologia no Instituto de Biociências da
USP, é agrônomo da Embrapa, assessor de rádios,
televisões e jornais nesse campo, estudioso da religião
nos aspectos rituais, atuante no Instituto de Ciência e Fé,
autor de vários livros e ministro das exéquias. O
próximo papa já está escolhido por Deus há
muitos anos, afirma. Aos cardeais eleitores só resta
se entender logo, se não quiserem ficar trancados no conclave
por longo tempo.
Não é assim que pensa Flávio Pierucci, que,
embora reconheça não ser um especialista em questões
do Vaticano, lembra que os processos contra teólogos deixaram
muita angústia em membros da Igreja. Cita os casos dos bispos
Pedro Casaldáliga e Hélder Câmara, do Brasil,
e Ernesto Cardenal, da Nicarágua, que chegou a ser repreendido
em público por João Paulo II. Imagine se todos
começarem a falar agora. O sociólogo da USP
diz que seria interessante que o debate saudável que marcou
o final da década de 60 e toda a de 70 fosse retomado. Como
Ismar Soares, Pierucci quer na mesa dos debates as questões
espinhosas e os dilemas morais da ciência, como eutanásia
e células-tronco. Como acompanhar os avanços
civilizatórios sem o debate, se uma das características
da ciência é progredir a cada segundo?, pergunta.
O diálogo, insiste o professor, não era o forte de
João Paulo II, que desejava a aproximação com
outras religiões, era um homem de oração e
visitava mesquitas e o Muro das Lamentações com o
mesmo fervor que manifestava nas igrejas, mas não entrava
em diálogo, repetindo que a verdade é Cristo.
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